'Cultura política e as imbricações de gênero e raça na radicalização da crítica' (Isadora Maria)
O fato da maior parte dos quadros do nosso Partido serem homens brancos não é uma falta de capacidade das mulheres e pretes que militam conosco. É um interesse ativo de falta de vontade de formar novos quadros
Por Isadora Maria para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, escrevo essa breve contribuição para pensarmos o que é a tal “cultura política”, como ela afeta segmentos diferentes da nossa militância de diferentes formas e como efetivamente modificamos ela.
O termo “cultura política” tem sido muito utilizado para justificar métodos de direção ditos tradicionais e isentá-los de crítica e reflexão, como se a cultura política sobredeterminasse condições concretas de militância. A nossa militância, tanto os que aderiram ao PCB-RR quanto os que permanecem para tentar a luta interna no PCB-CC, tem problemas com o termo “cultura política”, pois estamos em um processo de amadurecer nossas críticas em termos programáticos e teóricos, não mais utilizando métodos já conhecidos para justificar nossa falta de avanço; passamos a saber identificar e criticar efetivamente o burocratismo, o mandonismo, amiguismo e coleguismo como elementos políticos concretos.
Em qualquer organização, partidária ou não, há uma cultura política; qualquer movimentação organizada em torno de demandas cria parâmetros de relações entre seus membros, parâmetros de execução de tarefas, de métodos de convencimento e métodos decisórios, sejam eles explícitos de forma transcrita ou apenas legados oralmente. No caso de um partido comunista, a cultura política será tão boa quanto seu estatuto e resoluções, seus métodos de direção, táticas e programa político.
A forma organizativa - ou seja, a estrutura da organização, as condições concretas de efetivação do trabalho militante, os avanços ou retrocessos políticos dentro e fora da organização sobre os quais os militantes comunistas agem e constroem suas relações - constrói a cultura política, que por sua vez reforça essas formas concretas.
O movimento dialético entre a cultura gestada e o reforço das estruturas que a gestaram perpetua uma aceitabilidade da militância aos métodos de direção, sua legitimidade e à forma com que se apresentam relações de camaradagem, inclusive entre as direções.
Quando somos furtades do debate acerca de métodos de direção (por sermos silenciades ou por simplesmente nunca sermos incitades a pensar sobre eles) haverá uma grande aceitação à qualquer método de direção previamente reconhecido, e quaisquer questionamentos sobre o método irão soar como esquerdismo ou outro desvio (basismo, moralismo, carguismo, personalismo, etc).
Quando se coloca o elo da cultura política como mais determinante do que a forma partidária para solucionar nossos problemas políticos, permanecemos no campo do idealismo.
Há de se fazer uma ressalva de que o agrupamento de opiniões na forma de alas não é, necessariamente, um problema: conclusões parecidas vão surgir na militância porque a vivência militante em conjunto, o andamento das tarefas, o pensar militante, enfim, a manifestação da unidade de ação levam a sínteses conjuntas, e, muitas vezes, a formação de linhas de disputa efetivamente. Quando a luta de linhas é incompreendida, pessoalizada e não politizada nas devidas formas, o grupismo se torna um elemento no fracionismo. Devo citar o texto do camarada Andrey Santiago:
“Alas são agrupamentos de militantes em torno de convergências em determinados posicionamentos políticos. Todos os partidos políticos tem suas alas, sejam elas mais estruturadas, ou menos estruturadas. Dificilmente há um partido em que cada um de seus militantes atue de forma individual sem com que outras pessoas também tenham entendimentos políticos compartilhados.”
O não-tratamento ou o tratamento incongruente da luta de linhas dentro de uma organização leva métodos de mandonismo, amiguismo, coleguismo e clubismo a se tornarem cada vez mais aceitáveis, e esses métodos reforçam, por sua vez, um tratamento incongruente e/ou incorreto da luta de linhas.
Para um exemplo mais concreto da relação de estrutura da organização com cultura política, que afeta a própria formulação teórica: a falta de cotização progressiva e política de finanças formulada e organizada gera uma segregação racial e social na militância, levando militantes pobres (e, por muitas vezes, pretes) a não conseguirem participar de atividades da militância por custos de deslocamento, alimentação e até socialização. Disso decorre que a representação nas tarefas, as avaliações políticas e balanços das atividades e até as formulações continuarão sendo pensadas majoritariamente por pessoas brancas e/ou favorecidas financeiramente, perpetuando e reforçando uma política de finanças amadora, que não tem em perspectiva as necessidades de sobrevivência e atuação dos militantes mais pobres, e sendo tocada exclusivamente por meio do tarefismo. E o tarefismo precisa da divisão sexual, racial e social do trabalho pra existir.
Nesse sentido, utilizar a cultura política ou a materialização dos métodos formais (o estatuto) para justificar métodos de direção burocratistas é, simplesmente, conservadorismo; como se fosse o estatuto o grande regente da cultura política, e não a materialidade dos trabalhos políticos do Partido. É pelo elo materialista - a reformulação da estrutura organizativa - que devemos atuar para a superação das nossas insuficiências.
Aqui, devo abarcar um ponto sensível. Em muitos locais vejo resistência de camaradas do CFCAM em aderir à RR, pesando um tanto na cultura política de militantes que estão defendendo de forma incisiva a RR - majoritariamente da UJC. No Paraná, temos uma UJC composta de muitos homens brancos e cis; quando os camaradas se colocam de forma incisiva, tensionando o debate, fazendo críticas radicais aos métodos de direção e ao CC, muitas camaradas se incomodam como se essa fosse uma tentativa de implodir os espaços, alegando machismo dos camaradas nas suas posturas em momentos de críticas à nossa assistente, Marta Barçante. Isso gerou um grande rechaço por parte da militância feminista, prete e LGBTQIA+ em aderir à RR. Mas esse elemento pesa mais ainda quando são pretes fazendo críticas incisivas às direções, como é o exemplo da camarada Paula Ana da Bahia, sendo acusada de tentar implodir espaços por meio da crítica.
É inegável, camaradas, que quando homens e pessoas brancas utilizam de seus privilégios para serem debochados e deixarem outras pessoas desconfortáveis, ainda que não recaia diretamente sobre outra mulher, isso também é machismo, e quando pessoas brancas podem se permitir ferir o centralismo democrático e faltar com camaradagem (como Mazzeo e Manzano o fazem, repetidamente) por serem quase intocáveis, isso também é um reflexo de uma cultura política de supremacia branca.
Mas o machismo e a supremacia branca que permeiam a nossa cultura política não são determinados pela radicalização da crítica; não é o tensionamento revolucionário, o conteúdo político da disputa, que gera a segregação militante. A crise escancara essa segregação.
Analisando quem está formulando para a tribuna (até o momento de levantamento dos dados no dia 09/setembro), o resultado foi: 8 tribunas foram escritas por mulheres; 41 tribunas foram escritas por homens; 2 mistas; 20 não identificadas (anônimas ou com vulgos). Há 1 tribuna sobre luta antirracista (escrita por ex-militantes do CNMO), 1 tribuna sobre luta feminista (escrita por ex-militantes do CFCAM) e 2 tribunas sobre questões LGBT. A maioria das tribunas dos homens discorre sobre geopolítica, organização partidária, economia, áreas estratégicas, enquanto a maioria das tribunas das mulheres discorre sobre saúde mental.
Assim como para fazer falas em espaços públicos, mulheres, pessoas pretas e LGBTQIA+ tendem a encontrar mais dificuldades para formulação teórica. Não irei me aprofundar tanto nas raízes históricas, sociais e econômicas, externas à nossa organização, dessa dificuldade, mas devo mencionar algumas: I) relação entre a divisão intelectual do trabalho e o racismo; II) divisão sexual do trabalho; III) proletarização atuando de forma mais intensa na população preta, de mulheres e LGBTQIA+. Compreendendo essa realidade, e compreendendo que não estamos falando meramente de “minorias”, mas sim da composição ampla e orgânica da nossa classe, seria dever de um partido comunista que visa a libertação dos povos explorados e oprimidos atuar para que isso pudesse ser, em alguma medida, superado dentro de nossas fileiras.
Aqui, camaradas, cabe esclarecer que “superar” não é utilizado no sentido de dissolver a contradição; ela não desaparece, ela permanecerá enquanto permanecer a contradição capital-trabalho. Entretanto, sua superação se dá pelo gérmen de uma divisão revolucionária de trabalho; assim como a camaradagem é o gérmen de uma relação social ainda por vir - uma relação política, com bases materiais da congruência de tarefas e perspectivas de futuro - a divisão revolucionária do trabalho também é o nascimento de novas perspectivas de trabalho - coletivas, não-alienadas. Talvez, camaradas, estudar os quilombos como forma alternativa de divisão social do trabalho, concepção de território, pertencimento e luta, pudesse fazer avançar a própria concepção de divisão do trabalho nas nossas fileiras, por exemplo.
O PCB-CC tanto não faz esforços para avançar na divisão revolucionária de trabalho dentro de suas próprias fileiras, quanto ativamente mina as possibilidades desse avanço. Mina as possibilidades, especialmente, se negando a combater de forma sistemática a divisão sexual e racial do trabalho em suas fileiras. Quando se recusa a criar uma Escola de Formação de Quadros para formar quadros da juventude, do CFCAM, do CNMO, do LGBT Comunista; então, como esses quadros se formam? De forma tão boa quanto sua organização permite. Sobre a política de formação de quadros, algumas palavras de Ademar Bogo:
“Além de os quadros atuarem orientados por um programa político - que é a formulação clara daquilo que a organização política pretende alcançar -, há ainda a preocupação com os princípios políticos, organizativos e metodológicos que estabelecem o perfil prático do ser de toda a militância. Estes princípios se tornam características e valores, como disciplina consciente, companheirismo, lealdade, compromisso, honestidade, solidariedade etc. Estes e outros elementos permitem que os quadros verifiquem a cada instante se a sua competência política está respondendo a todos os desafios implicados e quais são as deficiências que precisam ser superadas. Os princípios organizativos, como direção coletiva, democracia participativa, distribuição de tarefas, prestação de contas dos gastos etc., se desenvolvem à medida que são executadas as tarefas planejadas. As tarefas dos quadros e das massas, cada qual com suas responsabilidades, desempenham um papel fundamental para o fortalecimento da organização, elas abrem caminhos que estavam obstruídos e, ao abri-los, impõem novas tarefas.”
O fato da maior parte dos quadros do nosso Partido serem homens brancos não é uma falta de capacidade das mulheres e pretes que militam conosco. É um interesse ativo de falta de vontade de formar novos quadros - quadros que sejam incisivos e propositivos na disputa política, que formulem com a radicalidade possível para a nossa estratégia e clareza necessária para a nossa tática, e que poderiam, talvez, mudar o rumo efetivo da disputa de linhas dentro do PCB. É, também, um interesse de manter a dependência de velhos quadros.
O escamoteamento das pautas feministas, antirracistas e da população LGBTQIA+, a falta de incentivo (tanto por escola de formação de quadros quanto por tribuna interna de debates) para que setores da nossa militância formulem, o acúmulo absurdo de tarefas e instâncias que desestabilizam mentalmente nosses camaradas (isso quando não chega em casos absurdos como o da Bahia, se utilizando de machismo e racismo para ativamente quebrar militantes) é o que dita o “protagonismo” dos rumos dessa crise.
A crítica radical, formulada, parte de homens brancos na maior parte das vezes porque são eles que tem (e sempre tiveram) as condições, o tempo, o incentivo para fazer tais formulações, e a confiança para colocá-las de forma incisiva e tensionar o debate. O fato que nós não nos sentimos confortáveis no tensionamento não é um fator de pura e simples falta de camaradagem (inclusive, porque camaradagem não é concordância e conciliação de linhas em nome da paz e educação), mas é fruto, sim, de não termos tido a mínima condição dentro dessa organização de podermos ser assertivas, de polemizar em voz alta sem sermos taxadas de arrogantes, de palestrinhas e que estaríamos querendo implodir o espaço. Portanto, camaradas, defendo a tese que o tensionamento do debate não é o gerador de incômodo; o incômodo é muito anterior, e existe um problema político nesse incômodo, que é precisamente a insistência à conciliação, e não ao consenso.
Em um espaço estadual de discussão sobre a crise, muitos camaradas da UJC (mas não somente) tensionaram o debate de forma acusatória (e justa!) aos membros do CC ali presentes; houveram respostas no sentido de dizer que as falas “amenas” estavam sendo soterradas por militantes que supostamente não teriam o interesse de “realmente resolver as coisas” - por estarem tensionando o espaço. Faço coro com uma militante que, naquele momento, trouxe elementos essenciais para pensarmos a luta de linhas: o consenso não é a mesma coisa que a conciliação. O consenso é o convencimento efetivo, através do debate aberto e franco, pelo método do materialismo histórico-dialético, onde se conseguem superar certas contradições - ou visar sua superação prática, primeiro elaborando teoricamente sobre elas. A conciliação é o recorte de posições inconciliáveis em uma colagem incongruente, um movimento ativo para a não-superação - um movimento reacionário. Como diz Francisco Martins Rodrigues em Receitas Para Controleiros:
“É sempre possível demonstrar que uma ideia viva, arrojada ou inovadora é ‘unilateral’. Inspire-lhes o horror pelo unilateralismo, pela precipitação, pela imaturidade. Encaminhe pacientemente mas com mão firme os membros sob o seu controle para as análises ‘multilaterais’, equilibradas, bem doseadas, inertes. Se lhe disserem que isso é chato, académico e inútil, demonstre-lhes que isso é que é a verdadeira ciência marxista.”
Quando desconsideramos as críticas radicalizadas porque elas não são conciliáveis com certa cultura política (ou, até, porque elas “faltam com camaradagem”), estamos fazendo um movimento, primeiro, anti-dialético, e segundo, anti-materialista. Estamos pesando o elo idealista ao invés do elo materialista de resolução. Dessa forma, é simples continuar reforçando as estruturas partidárias concretas que perpetuam o machismo e o racismo na nossa organização, porque o método da conciliação nunca irá debater as questões políticas concretas, ele irá, apenas, debater as formas (“isso é fracionismo”, “isso é anti-estatutário”, “isso é tentativa de implodir os espaços”).
Ao abraçar os métodos de unidade a qualquer custo, camaradas, nós continuaremos no idealismo que isso pode ser feito sem mudança na forma organizativa, e que é pela simples boa-vontade de nossos dirigentes que vamos acabar com vícios que permeiam nossa cultura política, e não pela mudança efetiva na materialidade do nosso Partido. É como ironiza Rodrigues: “Tudo o que existe no universo move-se pelas suas contradições internas. Exceto o Partido, que se move pela sabedoria da sua direcção. Ámen.”
Por isso, camaradas, essa tribuna é um apelo ao materialismo e ao debate político revolucionário. É evidente que há um grande masculinismo e muita supremacia branca ainda permeando o movimento comunista, mas isso não foi gestado - e nem perpetuado durante 101 anos - na RR, e também não é a RR que está aglutinando essas tendências. Isso não será superado dentro de um Partido que, na prática, se demonstrou não apenas monolítico, mas que efetivamente relega aos Coletivos gerarem os acúmulos de raça, classe e gênero na construção da Estratégia.
Não podemos esquecer que: I) as contradições de gênero, raça e sexualidade não irão desaparecer dentro da nossa organização; e II) em todas as organizações existe luta de linhas, na RR não será diferente. Essa luta de linhas pode não se apresentar da forma que conhecíamos até então (giro à direita e mandonismo vs. avanço da democracia interna e aprofundamento da reconstrução revolucionária, por exemplo), mas aparecerá em novas análises sobre a formação social brasileira, a composição do proletariado e os setores estratégicos para avançarmos, táticas de sobrevivência do povo preto e LGBTQIA+, questão agrária e a própria Estratégia da Revolução Socialista no Brasil. Não devemos ter medo de aprofundar e radicalizar as críticas também dentro da RR; não devemos ter medo de sermos tachados de esquerdistas - ou mesmo de cair no esquerdismo, porque desvios ocorrerão, nós temos que saber identificá-los e sair deles. Em uma das últimas reuniões que participei do meu núcleo do CFCAM, uma camarada, mãe, levantou um debate até então inexistente nas nossas fileiras: se não tivermos métodos adequados para o espaço kids dos eventos e continuarmos colocando qualquer militante que se disponha
espontaneamente à estar lá, surgem dois problemas: I) não é pelo espontaneísmo que superamos a divisão sexual do trabalho; e II) é uma questão de tempo até ocorrer um abuso sexual infantil. Isso é um exemplo claro de não ter medo de levantar uma polêmica e radicalizar uma crítica que efetivamente irá nos ajudar a superar contradições que se apresentam como entraves ao nosso avanço político-organizativo.
Referências:
“O que é Ala, Fração e Tendência na tradição marxista-leninista”
https://traduagindo.com/2023/08/14/o-que-e-ala-fracao-e-tendencia-na-tradicao-marxista-leninista/
“Receitas para Controleiros”
https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1986/02/receitas.html
DEAN, Jodi. Camarada: um ensaio sobre pertencimento político. São Paulo: Boitempo, 2021.