'Cultura e juventude para além do hip hop: O potencial revolucionário do metal extremo' (Vaca e Francisco K.)
Muitas vezes assumimos a falsa premissa de que apenas alguns estilos musicais têm um potencial revolucionário e assumimos que o proletariado e a massa que queremos atingir e disputar a consciência se resume a isso.
Por Vaca e Francisco K. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Gosto pessoal e planejamento político geralmente se misturam em atividades que necessitam de coração quente, paixão e motivação, como a militância. Quando falamos de inserção no movimento cultural e inserção na juventude, o debate se encerra quase que completamente no movimento hip hop, provavelmente pelo estilo ser do gosto pessoal da maioria dos militantes. Entretanto, existem outros movimentos culturais de jovens da classe trabalhadora que também carecem de organização, e que são pouco discutidos. O metal extremo é um só um dos inúmeros exemplos. Deve-se ressaltar, para evitar espantalhos, que não advogamos pelo abandono do movimento hip hop, mas no alargamento dos nossos horizontes culturais. Essa tribuna é uma provocação para instigar um amplo debate.
Há, claramente, um problema quando limitamos nosso embate cultural-musical apenas ao hip-hop, rap e funk. Primeiramente, tomamos de pressuposto falsa premissa de que apenas esses estilos musicais têm um potencial revolucionário e, sem demais estudos, também assumimos que o proletariado e a massa que queremos atingir e disputar a consciência se resume a isso. É claro, porém, que isto não condiz com a realidade.
Um gênero musical formado por uma série de subgêneros específicos que surge como uma nova possibilidade de inserção, para a expansão da nossa influência política, é o metal extremo. Este tem origem principalmente entre o proletariado urbano dos países centrais, e se expande em uma subcultura fortemente polarizada politicamente e com práticas que beiram o ganguismo. Sua disputa não é uma questão de opção, mas um processo que já está ocorrendo e, enfim, uma batalha ideológica que nosso campo vem perdendo.
O metal extremo é uma definição ampla que não corresponde à realidade das inúmeras subdivisões do estilo, mas funciona como identificação para um movimento cultural amorfo que abriga diversas posições políticas. Para além de um punhado muito pequeno de bandas no circuito profissional, o metal extremo é constituído de pequenas cenas locais com pouca ou nenhuma expressão financeira. O metal extremo entretanto apresenta uma contradição central: Ao mesmo tempo em que ele se apresenta majoritariamente com uma estética anti conservadora, com símbolos satanistas e antissistêmicos contestando a prevalência de valores cristãos, nutre um sentimento misantrópico forte. A misantropia no centro do movimento deu legitimidade para o surgimento de grupos neonazistas, espalhados principalmente, mas não apenas, nos subgêneros “War Metal” e “National Socialist Black Metal” (NSBM). No Brasil, bandas com esse viés se concentram principalmente em Santa Catarina. É inocência pura achar que o maior problema é a pura e simples disseminação de músicas neonazistas. Essa cena é instrumental para a radicalização de jovens de classe trabalhadora para a extrema direita. No mesmo estado em que bandas neonazistas participam da cena local, temos o maior número de células neonazistas do país. Essas bandas fazem parte de um esforço organizado para popularizar o neonazismo no Brasil e mundo afora.
Periodicamente acontece, no maior centro urbano ucraniano (Kiev), o maior festival neonazi de metal extremo do mundo, o Asgardrei. Ele não apenas advoga por ideologias nefastas, mas também tem ligações diretas e efeitos práticos em milícias paramilitares e grupos mercenários de extrema-direita, como o Batalhão Azov. É notável, neste e em outros exemplos, não apenas a articulação massiva da direita no estilo musical em discussão. Ainda assim, o Asgardrei, como outros festivais, passam impunes pelas autoridades burguesas, totalmente complacentes com essas manifestações.
Em países como Finlândia, Rússia, Polônia e Ucrânia, as bandas de metal extremo com viés de extrema-direita praticamente hegemonizam a politização do estilo, com festivais de grandes proporções dedicados às ideologias de extrema-direita ocorrendo, especialmente, com base na Ucrânia. A formação de um campo, entre os jovens radicalizados e a velha guarda do movimento, que combata e contraponha essas movimentações que, inclusive, tem ligações diretas, por exemplo, com o Batalhão Azov, se tornam absolutamente necessárias para que não se desvirtualize o caráter contestador do metal extremo.
Ainda assim, uma parcela de bandas apresenta um claro viés de esquerda, pouco interessado em conciliação. O ódio de classe é tema candente nas letras do Surra, Cérebro de Galinha, Ratos de Porão, Black Pantera, Sangue de Bode, como exemplos no Brasil, e uma grande quantidade de outras bandas mundialmente. A diferença é que o ódio de classes não aparece tão organizado na cena quanto o neonazismo. Ainda é uma ideia difusa e desorganizada, com pouco potencial de organizar a juventude em torno de pautas revolucionárias, mesmo que estas estejam presentes nas bandas. Não existe nenhuma organização, nem no sentido mais amplo de esquerda, que tenha expressado interesse em se inserir nesse movimento cultural. Ao mesmo tempo, é de suma importância organizar o ódio e potencial de lutas na cena cultural, tanto para evitar o avanço do neonazismo quanto para avançar pautas revolucionárias.
Existem experiências diversas de organizações radicais se apropriando do metal extremo que podem servir de exemplo do potencial dessa cena cultural. A banda anarquista Trespasser tem direcionado todos os lucros com a venda de discos para a revolução em Rojava. Também existem diversos coletivos de “Red and Anarchist Black Metal” (RABM), que organizam artistas de metal extremo comunistas e anarquistas. O subreddit “RABM” se tornou referência na Internet para pessoas que querem pegar referências de bandas que não estejam atreladas à extrema-direita e, também, para a divulgação em massa de bandas com abordagens revolucionárias. Entretanto, no Brasil, esses coletivos são pouco expressivos.
O RABM tem uma abrangência temática bastante vasta. Isso pode ser visto em alguns exemplos de bandas que podemos citar. A banda The Committee aborda em suas músicas especialmente o período soviético staliniano e eventos marcantes dos anos 1930-1940 da URSS. Outra, a banda Feminazgûl, faz um trocadilho entre “feminismo” e “nazgûl” (personagens tolkianos) para aludir à acusação clássica de “feminazi”, é uma banda formada inteiramente por mulheres e trata com radicalidade sobre a questão feminina. Ainda podemos ver bandas como Sankara (em homenagem ao líder burkinabé), que, tocando war metal, toca em temas como a irreconciabilidade de classes e o veganismo revolucionário. Não obstante, como mais um exemplo, temos a banda de blacknoise Neckbeard Deathcamp, que em meio a grande cacofonia faz piadas com os estereótipos da extrema-direita e suas pautas rebaixadas. Podemos ver, assim, que o RABM tem grande amplitude de potenciais.
Organizar esses movimentos não significa necessariamente ter uma banda, ou construir grandes festivais, apesar de ambas as ações serem muito bem vindas. O metal é um gênero com quase nenhuma expressão comercial atualmente, o que significa que no geral os espaços em que essa expressão cultural ocorre são espaços marginalizados e com quase nenhuma estrutura. Se inserir e organizar esses movimentos significa aplicar os princípios marxistas-leninistas de organização para, mas não para apenas, auxiliar na produção de material autoral, estabelecer redes de apoio locais, organizar pequenos shows e, mais importante, estabelecer contatos. Através desses contatos, direcionar o ódio. Essa cena é formada em sua maioria por jovens pobres que sentem ódio, e se não estivermos lá para disputar esse ódio, a extrema direita vai estar. Dando a devida importância para o metal extremo, com inserção e organização, podemos não apenas tornar o metal extremo um espaço perigoso para extremistas de direita e um local seguro para minorias, mas podemos hegemonizar a linha política.