Criminalização do aborto escancara brutalidade da monarquia marroquina
A política marroquina em relação às mulheres faz surgir diversas questões, uma vez que grande parte do movimento de resistência no Saara Ocidental conta com a liderança de centenas de mulheres muçulmanas.
Por Redação
Nos últimos meses, o Marrocos tem sido palco de intensos debates e discussões em torno da reforma do Mudawana (abreviação de mudawwanat al-aḥwāl ash-shakhṣiyyah), o Código da Família, legislação que regula aspectos fundamentais da vida familiar e social no país. Considerado um marco entre as legislações sobre família no mundo árabe, o Mudawana passou por uma série de revisões ao longo das últimas décadas. Com certa expectativa de avanço em relação aos direitos das mulheres, a reforma vem explicitando as contradições entre o movimento feminista e o campo da esquerda marroquina e os grupos defensores da jurisprudência tradicionalista dos textos religiosos.
A legislação de 2004, fruto da última reforma do código, incluiu entre outras mudanças o aumento da idade legal de casamento para meninas de 15 para 18 anos e a colocação da família sob a responsabilidade conjunta de ambos os cônjuges. No entanto, apresentando inúmeras lacunas, a reforma pouco alterou uma realidade de contínua violência e ataque aos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente em razão da criminalização do aborto, que segue encarcerando e vitimando centenas de milhares de mulheres marroquinas.
O Código Penal do Marrocos, no capítulo intitulado Dos Crimes e Delitos contra a Família e a Moralidade Pública, indica a pena de seis meses a dois anos de prisão e multa para as mulheres e profissionais da saúde envolvidos na tentativa ou consumação do aborto. A pena pode chegar até 20 anos dependendo do caso e, além disso, as condenações se estendem a qualquer um que publicamente falar sobre a prática e seus métodos, seja através de livros, escritos, pôsteres, desenhos ou discursos, mesmo que no intuito de apenas informar.
Ao contrário da legislação brasileira, no Marrocos não há previsão para o aborto legal em casos de estupro ou má formação do feto. A única exceção para a prática é caso a vida da mãe corra algum risco, onde o médico ou cirurgião não necessita de nenhuma autorização. Do contrário, a realização do aborto precisa de autorização do cônjuge ou, na ausência deste, das autoridades provinciais ou municipais de saúde.
Para além das inúmeras restrições, um dos aspectos que agrava a conjuntura de ataque aos direitos reprodutivos e sexuais no Marrocos é a criminalização das relações sexuais fora do casamento. Dessa forma, mulheres solteiras raramente tem acesso a contraceptivos ou ao próprio serviço de saúde, dado que a gravidez fora do matrimônio é tratada na sociedade marroquina como um grande tabu, o que ocasiona no isolamento completo dessas mulheres. Segundo o Mudawana, a mãe solo não possui qualquer direito na guarda de seus filhos. O pai, caso reconheça a paternidade, tem direito absoluto sobre a tutela da criança e, caso não o faça, o que ocorre em grande parte dos casos, tanto a mãe quanto o filho não são reconhecidos como uma entidade familiar, segundo a Constituição marroquina e o Mudawana.
Uma vez que o aborto não é classificado como uma questão de saúde pela legislação marroquina, não há coleta de dados sobre o aborto por parte dos organismos oficiais do governo. Contudo, em um Inquérito Nacional sobre População e Saúde, produzido pelo Ministério da Saúde em 2018, o mais recente sobre o tema, foram coletados dados sobre gravidez indesejada e utilização de contraceptivos entre mulheres casadas. Neste, é apontado que 30% das gravidezes ocorridas eram indesejadas e uma parcela considerável de mulheres indicaram não ter acesso a contraceptivos ou mesmo a consultas médicas.
No Marrocos, a violação conjugal, também conhecido como estupro marital, não é considerado crime pelo Código Penal, que tem uma redação jurídica pouco protetiva em matéria de violência contra mulher. Um Inquérito de 2021 produzido pelo Alto Comissariado para o Planejamento (HCP na sigla original), intitulado A Mulher Marroquina em números: 20 anos de progresso, aponta que no período entre 2009 e 2019, os casos de violência sexual aumentaram de 8,7 para 14% entre mulheres de 18 a 64 anos no âmbito doméstico, onde a ação pode ser cometida por familiares ou cônjuges. Além disso, entre mulheres de 15 a 74 anos, 57,1% relataram terem sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses antes da pesquisa, feita em 2019. Nesse último caso, 49% das mulheres relataram terem sofrido violência psicológica.
A ausência da criminalização da violação conjugal, somada ao crescente número de casos de violência, seguem números baixíssimos de mulheres que procuraram as autoridades depois de serem vítimas, com menos de 8% delas apresentando queixa à polícia. Adiciona-se nesse ponto o fato de que grande parte dos acusados não são sequer julgados, com uma parcela muita baixa de casos chegando à fase de audiência em tribunal (4,6%).
Dado que as autoridades marroquinas não produzem dados sobre o aborto, diversas ONGs no país realizam estudos e pesquisas autônomas. A Associação Marroquina de Planejamento Familiar (AMPF), num estudo de 2021 intitulado Gravidez Indesejada e Aborto Inseguro no Marrocos, aponta que a taxa de aborto no país entre faixa etária de 15 a 49 anos é de 30 a 40 por 1000 mulheres.
Estima-se que, em cifras, ocorram de 280 a 370 mil abortos por ano, o que implica em 700 a 1000 abortos por dia. Destes, 72% são inseguros. Para efeito de comparação, a taxa de abortos na Europa e EUA varia entre 15 a 20 por 1000 mulheres. Ainda, leva-se em consideração a população feminina do Marrocos, estimada em cerca de 19 milhões de habitantes, o que torna os números proporcionalmente altos.
Em 2015, o rei Muhammad VI indicou aos Ministros da Justiça e de Assuntos Islâmicos do país a elaboração de uma reforma na legislação sobre aborto. Passados alguns anos, em 2021 tramitava no congresso marroquino um Projeto que ampliava o direito ao aborto para casos de estupro, má formação do feto e em casos de doença psicológica da mãe. Contudo, este foi retirado das pautas, sem nenhuma discussão.
Movimentos feministas e ONGs atestam que apesar de certo progresso realizado nas últimas décadas, especialmente com a ratificação de tratados internacionais que versam sobre direitos das mulheres, o país aparenta regredir, ameaçando a vida das mulheres trabalhadoras e a atuação de milhares de militantes na luta pelo direito ao aborto.
Em 2019, a jornalista independente Hajar Raissouni foi presa e condenada a prisão por supostamente ter realizado um aborto e ter relações fora do casamento. Além de Hajar, seu marido, um ginecologista e outro profissional também foram julgados. O caso contou com comoção internacional e suscitou a acusação de que Hajar estava sendo politicamente perseguida por sua posição profissional. Em outubro daquele ano, o rei perdoou os envolvidos no caso, agindo especialmente para abafar o caso e evitar que internacionalmente o regime fosse contestado por suas ações.
Mesmo com a clara violação dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e um número cada vez maior de abortos clandestinos no país, além do não cumprimento de tratados internacionais, os principais aliados internacionais da monarquia marroquina, a saber, França e EUA, fazem vista grossa para a problemática. Exemplo disso é o anúncio por parte do presidente francês, Emmanuel Macron, de que reconheceria e trabalharia pela soberania do Marrocos sobre o Saara Ocidental. Zona de disputas há décadas, Marrocos violou em 2020 um tratado de cessar-fogo, revivendo o conflito com os combatentes sarauís, organizados majoritariamente na Frente Polisário.
Nesse contexto, a política marroquina em relação às mulheres faz surgir diversas questões, uma vez que grande parte do movimento de resistência no Saara Ocidental conta com a liderança de centenas de mulheres muçulmanas. Caso a soberania marroquina na região venha a ser consolidada, pela via da força ou pelas manobras imperialistas a favor da monarquia do Magrebe, é certo que o tradicionalismo propagado por Muhammad VI não encontrará aceitação entre os sarauís, que são constantemente ameaçados de genocídio.