Crescimento de instituições privadas “sem” fins lucrativos reforça privatização velada do SUS
Essas instituições têm se comportado com uma lógica mercantilista, com estratégias que garantem a captação de fundos públicos e o aumento de receitas.
Por Redação
Nas últimas décadas, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem passado por um preocupante crescimento das instituições privadas sem fins lucrativos, como os hospitais filantrópicos, que ganham cada vez mais espaço dentro da estrutura pública de saúde no Brasil. Embora esse fenômeno não possa ser apontado como uma causa direta para a diminuição do número de leitos disponíveis no SUS, ele reflete uma correlação que levanta questões alarmantes sobre a presença crescente do setor privado na oferta de serviços de saúde pública.
Entre 2010 e 2023, o Brasil perdeu cerca de 25 mil leitos de internação no SUS, o que representa uma redução de 8%. Áreas essenciais como psiquiatria e pediatria foram particularmente afetadas, com queda de mais de 50% e 28%, respectivamente, no número de leitos. Ao mesmo tempo, a população brasileira aumentou, passando de 190 milhões para 203 milhões, intensificando a demanda por atendimentos enquanto a oferta diminui. Tal redução, somada ao aumento das filas de espera para cirurgias eletivas, mostra um enfraquecimento do SUS, que, ironicamente, tem visto crescer a participação de hospitais filantrópicos em sua estrutura.
Essas instituições, embora rotuladas como "sem fins lucrativos", têm se comportado com uma lógica mercantilista, com estratégias que garantem a captação de fundos públicos e o aumento de receitas. Entre 2018 e 2023, os recursos do SUS destinados a hospitais filantrópicos triplicaram, subindo de 4,65% para 12,77%, com uma receita que alcançou R$ 6,87 bilhões no ano passado. O Hospital Israelita Albert Einstein, que gerencia 30 unidades públicas e 868 leitos, recebeu contratos públicos de R$ 1,18 bilhão em 2022. Já o Hospital Sírio-Libanês, com 10 unidades e 668 leitos públicos, somou R$ 335,6 milhões em contratos no mesmo ano.
Os números revelam a crescente dependência dessas instituições de fundos públicos, enquanto mantém uma fachada de organizações "sem fins lucrativos". Em muitos casos, esse rótulo é utilizado como uma estratégia para obter isenções fiscais e outros benefícios legais, como no caso do Proadi-SUS, que concede renúncia fiscal a hospitais privados para a realização de projetos e pesquisas. Pesquisas apontam que essas instituições “comem o SUS”, utilizando recursos públicos e atuando como organizações sociais para gerenciar hospitais públicos. Além disso, a utilização de hospitais públicos como campo de prática para faculdades de medicina reforça o viés mercantil dessas entidades.
Esse aumento do número de estabelecimentos sem fins lucrativos no Brasil, com um crescimento de 30% entre 2012 e 2020, também reforça essa tendência de mercantilização no SUS. Muitos desses hospitais operam de maneira semelhante a empresas com fins lucrativos, oferecendo serviços diferenciados e privilegiados para determinados usuários. A mudança de natureza jurídica de instituições de "com" para "sem" fins lucrativos não trouxe, na prática, melhorias significativas para os usuários do SUS. Em muitos casos, a mudança é percebida como uma estratégia jurídica para acessar incentivos financeiros públicos, sem que haja impactos reais na qualidade do atendimento.
A expansão dessas instituições dentro do SUS não ocorre de maneira silenciosa. No último ano, o governo federal anunciou repasses bilionários a hospitais filantrópicos. Em 2023, R$ 1,5 bilhão foi destinado a esses hospitais, incluindo as Santas Casas de Misericórdia, dentro de um pacote total de R$ 2 bilhões. Este ano, mais R$ 1 bilhão foi anunciado dentro do Programa Mais Acesso a Especialistas (PMAE), reforçando a importância desses hospitais na prestação de serviços especializados, como cirurgias oncológicas e ortopédicas.
Apesar do caráter "sem fins lucrativos", essas instituições buscam maximizar a captação de recursos públicos, enquanto o SUS enfrenta desafios crescentes, como a redução dos leitos e o aumento das filas de espera. Esse cenário aponta para uma correlação preocupante: o crescimento dos hospitais filantrópicos e seu uso de recursos públicos ocorre paralelamente ao enfraquecimento da rede pública de saúde, o que levanta dúvidas sobre uma possível privatização velada do SUS. Embora não se possa afirmar uma relação causal direta entre esses fenômenos, o avanço do setor privado no SUS é uma realidade que merece atenção e debate, especialmente à luz da crescente participação desses hospitais na gestão de unidades públicas e na captação de fundos federais.
Para enfrentar essa tendência e garantir a universalidade e qualidade dos serviços de saúde, é imperativo reverter todas as privatizações e concessões que transferem recursos públicos para interesses privados. Além disso, é fundamental lutar contra o Novo Teto de Gastos e a favor da manutenção do piso constitucional da saúde, ameaçado pela lógica da austeridade encampada pelo governo federal. A luta por um sistema de saúde público e eficiente é uma extensão das batalhas contra as medidas neoliberais que visam precarizar as condições de vida da classe trabalhadora e deve ser encarada como uma frente crucial na resistência à crescente privatização e mercantilização dos serviços públicos.