Cresce a greve na USP: Entenda a luta contra o desmonte e a privatização

A greve do dia 3/10 será um momento decisivo. A unificação das pautas ao redor de sua causa comum é fim e meio da nossa própria união, em ação e pensamento, entre estudantes, trabalhadores e professores, de dentro e fora da USP.

Cresce a greve na USP: Entenda a luta contra o desmonte e a privatização
Até agora, as pautas do movimento estudantil estão impulsionando uma considerável unidade de ação, mas é na unidade ideológica que aguarda o problema: é perder o que amarra as pautas que desfazemos também os nós entre quem se mobiliza.

Por Marina Alves Kawamura para o Em Defesa do Comunismo

A nº1 do país para novamente. Em 2002 a reivindicação era a contratação de professores e democracia na Reitoria. Em 2007, contratação de professores, reformas e mais vagas nas moradias estudantis, autonomia universitária. 2009: reajuste salarial e direitos trabalhistas de funcionários, contra a PM no campus. 2014: reajuste salarial e direitos trabalhistas de funcionários, políticas de permanência, problemas ambientais na EACH, cotas. E em 2023: contratação de professores e funcionários, políticas de permanência, democracia universitária, defesa do caráter público da universidade. Os motes que fazem a USP parar em diferentes épocas refletem os atores das greves e sua contínua reivindicação dos mesmos interesses. O acirramento das contradições da universidade burguesa que hoje se vê obrigada a abrir frestas para a entrada de um demográfico diferente faz com que pautemos políticas de permanência como nunca antes mas, como sempre, seguimos tendo que nos opor ao sucateamento e consequente privatização da universidade pública.

Como se articulam hoje os três setores da USP

Estudantes

Os cursos e institutos que mais sentem os efeitos imediatos das políticas de sucateamento são, em sua maioria, de humanidades, mais proletarizados, associados a profissões femininas (ou os três juntos), e foram eles os primeiros a se mobilizar. EACH, FFLCH, ECA, já há mais de um ano buscavam pelas vias institucionais lutar pela manutenção de seus cursos e eram respondidos com indiferença e promessas enganosas. Em julho deste ano, os alunos da EACH ocuparam o prédio principal de seu campus por 8 dias em protesto contra a falta de professores. A ocupação já recebia apoio de docentes da EACH, do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp) e até da Confederação Internacional de Obstetrizes – dado que um dos cursos mais ameaçados do campus é o de Obstetrícia, único no país. Na FFLCH, desde 2022 os alunos buscam diálogo com a Reitoria a respeito de habilitações como a de Coreano, que conta com apenas uma professora e estão prestes a fechar caso nada seja feito. A Reitoria negou diálogo.

O movimento foi se massificando, tendo o DCE Livre da USP convocado uma reunião aberta com a comunidade para organizar um relatório sobre a contratação e o programa de auxílios e, posteriormente, um ato-arrastão. Os cursos começaram a convocar suas respectivas assembleias, mas foi quando a Letras estava prestes a aprovar greve que se atingiu o estado irreversível: para impedir a construção de piquetes, a diretoria da FFLCH cancelou as aulas minutos antes delas acontecerem e acionou a Guarda Universitária, que começou a retirar todos os estudantes e docentes das salas de aulas e trancá-las. A revolta generalizada culminou em um ato em frente ao prédio da administração da FFLCH, em que o diretor da FFLCH, Paulo Martins, fez gestos obscenos aos manifestantes e os insultou.

Assembleias para pautar adesão à greve se espalharam rapidamente pelos cursos e já chegamos ao histórico marco de apoio por todos os institutos do campus. O apoio de institutos mais tradicionais ou conservadores, como Medicina, Direito, Engenharia, Economia e Administração foi determinante. O caminho, é claro, não foi simples. Na Escola Politécnica, o Grêmio Politécnico, órgão que centraliza os interesses dos cursos de engenharia, tentou atrasar ao máximo a convocação de uma Assembleia deliberativa, se utilizando de métodos burocráticos inventados para justificar a necessidade de um plebiscito anterior à Assembleia. Sobretudo em cursos de ciência e tecnologia, a coerção anti-greve por parte de professores e diretores é marcante, mas é justamente a mobilização de alunos dessas áreas que mais destaca a greve de hoje das demais na história da USP. Historicamente, greves gerais da USP são protagonizadas por cursos de humanidades e mesmo as maiores tiveram baixa adesão proporcional de alunos de C&T. O potencial de hoje é inegável: vemos os institutos de Física, Matemática, Química, a Poli, não só aderirem à greve como também organizarem grupos de trabalho de análise de dados, grupos de estudo e escalas de vigília aos seus piquetes. O movimento estudantil cresce em meio aos que mais diretamente constroem a produção e a infraestrutura de circulação de capital.

Em Assembleia Geral, decidiu-se pela criação de um Comando de Greve eleito em cada curso, que tem como função executar as deliberações coletivas, capilarizar a comunicação nas unidades e negociar as reivindicações diretamente com a Reitoria. Até agora, foram feitas duas reuniões de negociação — sendo apenas uma delas com o Comando — marcadas pela evasão por parte da Reitoria. Na última reunião, a evasão foi literal: o reitor havia partido para a Europa no dia anterior, de última hora, e a reunião foi com a Vice-Reitora, que se retirou depois de cerca de 15 minutos, não assinando o Termo de Compromisso produzido pela União da Juventude Comunista (UJC) que compõe o DCE. O documento pautava a não punição de estudantes e a reposição das aulas, mas permanece em branco.

Funcionários

A experiência histórica atesta: não se mobiliza a USP efetivamente sem a participação dos funcionários da Universidade. A categoria teve protagonismo em todas as mobilizações de sucesso anteriores, e nessa não deve ser diferente. Desde o começo do ano os associados ao SINTUSP reivindicam a contratação de funcionários, que foram de 17 a 13 mil em 9 anos, além do descongelamento de benefícios como o vale alimentação e aumento de salário, que teve uma perda proporcional desde 2013. A redução do quadro de trabalhadores é acompanhada da sobrecarga dos que restam e do avanço da terceirização de serviços como os restaurantes e hospitais universitários, segurança e limpeza. Os terceirizados enfrentam condições ainda mais precarizadas e não contam com o subsídio do sindicalismo e não podem nem mesmo ter acesso ao ônibus da USP de maneira gratuita, como é para toda comunidade uspiana. Além disso, “sem os trabalhadores administrativos e operacionais, sequer os concursos para contratar docentes são possíveis de ocorrer em tempo hábil.”, como alerta um boletim do sindicato.

Para Alexandre Pariol, membro da diretoria do SINTUSP, o fôlego que faltava ao sindicato foi transmitido pelos estudantes nas mobilizações do dia 21/09. Em entrevista ao EDdC, ele comenta que a adesão histórica dos estudantes à mobilização vem incitando os trabalhadores a somar na luta. “Vocês estão mudando a universidade. Vocês estão mexendo num vespeiro de pessoas que queriam colocar a Universidade como instrumento do mercado. Eles estão conseguindo, mas junto com as outras categorias, estamos mudando isso aí. Essa mudança é definitiva? Não. Isso é um processo dialético, e a reitoria vai continuar a desviar a nossa linha. [...] Mas não tem outro caminho que não unificar ”. Além disso, pontua que a atual geração de estudantes voltou a contestar o que é a universidade: “vocês saíram da sala de aula e estão dando aula a todos nós.”

Quando perguntado sobre o que precisamos na greve de hoje para conseguir nossas demandas, Alexandre não hesita: “O que falta é gás. Precisamos conversar bastante. Uma correnteza perde força fácil, precisamos sempre fazer chover.” Além disso, ressalta a importância de pautar não apenas a contratação de mais professores, como também de funcionários “Não basta pedir pela contratação de professores se os funcionários estão terceirizados, precarizados e sobrecarregados”. E finaliza com um conselho: “O cuidado que se deve ter na luta é lutar”.

A pauta da unificação é posta com materialidade. No dia 3/10, próxima terça-feira, os trabalhadores da Sabesp, metrô e CPTM entrarão em greve contra os avanços privatistas em seus ambientes de trabalho. Além dos estudantes da USP, os trabalhadores do SINTUSP também prometem estar fortemente mobilizados em solidariedade. Se a raiz do problema é a mesma, a luta também deve ser.

Docentes

Dos três setores, o posicionamento dos docentes-trabalhadores é o que mais causa apreensão aos estudantes, que entram em contato diariamente com professores fura-greve e devem lidar com a incerteza acerca da realização de aulas e atividades avaliativas. Já em abril do ano passado, quando foi atingido o patamar de mil docentes a menos comparado a 2014, a Adusp já vinha denunciando a queda em seus números. Em Assembleia no dia 26/09, com participação das unidades do interior do estado por videoconferência, a Adusp aprovou paralisação da categoria até a segunda-feira seguinte (2/10), quando ocorrerá nova assembleia geral deliberar sobre indicativo de greve.

Em entrevista ao EDdC, a presidente da Adusp, Michele Schultz, reforça a importância do respeito às instâncias de deliberação das entidades, como as Assembleias, que podem e devem ser compostas por todos os associados. “É preciso que se entenda que a greve é um instrumento legítimo e legal de manifestação, além de ser também um movimento de resistência dos setores que estão sub-representados nos espaços institucionais. Quando os movimentos não são ouvidos ou são alijados das discussões e decisões, obviamente, se utilizarão de meios para que se façam ouvir. Não se pode criminalizar ou desqualificar o direito à organização ou manifestação se não quiserem ser acusados de antidemocráticos.”. O posicionamento de Michele está respaldado na nota do Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP sobre a greve.

A Adusp divulgou uma carta aberta em que “manifesta total apoio ao movimento das e dos estudantes que, ao reivindicarem a recomposição do quadro docente, estão de fato defendendo a universidade pública!”. Dentre os cinco pontos da Associação, estão: abertura emergencial de concurso público para docência com reserva de vagas para docentes PPIs e avaliação sobre paridade de gênero e inclusão de pessoas trans. A Associação também se coloca contra processos de abertura de vaga que levem em conta critérios de produtividade, que se trata de mais uma estratégia de mercantilização da educação. Em suas redes, a Adusp divulga gráficos com base em dados dos Anuários Estatísticos da Universidade, que demonstram que o encolhimento da proporção docente:aluno é generalizada.

A presidente também comenta sobre a centralidade das políticas de inclusão e permanência: “Se a USP pretende ser de fato inclusiva, tem de pensar uma política de inclusão que garanta não só condições materiais de permanência por meio das bolsas e auxílios, mas também tem de pensar em medidas para acolher a diversidade, que permitam uma mudança atitudinal das pessoas.”, ressaltando ainda que todos os setores da comunidade devem estar integrados a esse processo,  “não adianta baixar decisões dos gabinetes sem dialogar com os movimentos.”.

Quanto a suas perspectivas para o futuro, Michele diz esperar que “a reitoria, além de reconhecer os problemas e as legítimas reivindicações das/os estudantes, apresente propostas concretas de soluções. Até agora, as respostas são as mesmas e o movimento já disse que isso não aceita! A bola está na mão da reitoria e é ela é que tem de nos entregar respostas!”

Do particular ao geral: radicalidade rumo à Greve Geral

Sabemos o que há em comum entre a falta de contratação de professores, o sucateamento das políticas de permanência, a sobrecarga dos funcionários, o avanço da terceirização, o desamparo dos terceirizados, os investimentos privados na universidade e a revolta dos trabalhadores da Sabesp, metrô e CPTM: são todos filhos das políticas neoliberais que usam a falsa necessidade de austeridade de desculpa para primeiro sucatear e depois privatizar serviços básicos como água, transporte e educação, de maneira a, em última análise, afastá-los da classe trabalhadora que os constrói.

Até agora, as pautas do movimento estudantil estão impulsionando uma considerável unidade de ação, mas é na unidade ideológica que aguarda o problema: é perder o que amarra as pautas que desfazemos também os nós entre quem se mobiliza. Cabe lembrar que até no nível da mesa de negociação a fragmentação foi  uma estratégia usada contra nós: logo na primeira reunião de negociação da reitoria, foi reiteradamente proposto que a negociação se dividisse em grupos de trabalho, e não usando a estratégia histórica de negociação de greve: a mesa única de negociação. Naquele dia, conseguimos unificar a discussão, cabe agora fazê-lo em todos os conseguintes.  A unificação das pautas é uma barreira de potencial: ou atingimos, coletivamente, consciência política suficiente para construir uma revolta radicalizada, massificada e orientada, ou cedemos à fragmentação das pautas.

Perspectivas de futuro

Olhando para trás, podemos ousar ser propositivos sobre o que vem por aí: temos hoje os mesmos problemas, mas mais, e mais diversos, atores. Maiores contradições, raízes mais expostas. Vamos conseguir, juntos, desenterrá-las?

Nesse sentido, a greve do dia 3/10 será um momento decisivo. A unificação das pautas ao redor de sua causa comum é fim e meio da nossa própria união, em ação e pensamento, entre estudantes, trabalhadores e professores, de dentro e fora da USP.

Pela contratação de professores e funcionários!

Pelo ingresso e permanência da classe trabalhadora na Universidade popular, pública e de qualidade!

Pela união de estudante, trabalhador e docente, dentro e fora da universidade!

NO DIA 03/10, ÀS RUAS!