'Contribuição Para Uma Análise Revolucionária do Direito' (Lucas Moutta)

O objetivo dessa tribuna é demonstrar como nós comunistas devemos nos posicionar assertivamente contra os presídios e contra a manutenção da superestrutura jurídica.

'Contribuição Para Uma Análise Revolucionária do Direito' (Lucas Moutta)
"Os presídios são o exponencial máximo do poder legal do Direito Penal que caça os indesejados; podemos ter a certeza disso quando analisamos os dados: segundo informações de 2023 da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), cerca de 61% da população carcerária são pretos ou pardos; quase 28% são presos provisórios."

Por Lucas Moutta para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Introdução

Camaradas, o objetivo dessa tribuna é demonstrar como nós comunistas devemos nos posicionar assertivamente contra os presídios e contra a manutenção da superestrutura jurídica. De forma alguma tenho a aspiração de esgotar o tema, comparto com vocês apenas um pouco de conhecimento específico sobre a questão.

Mercantilismo e Direito Penal 

Nossa forma de punir é intimamente ligada com nossa forma política e econômica de organização social. Dessa forma, como nossa estrutura político econômica, os métodos de punição também passaram por reformas: dos suplícios até o encarceramento baseado no tempo. Esse último, trataremos com mais atenção, uma vez ser o que vigora hoje com ar de justiça e humanidade.

A punição por encarceramento só tem apoio lógico em uma sociedade onde o tempo disponível se torna uma mercadoria, tanto é que, antes do iluminismo e revoluções burguesas, o encarceramento só era aplicado excepcionalmente até que a fiança fosse paga, contudo, o foco principal não era a punição por tempo, apenas constituía uma garantia que o Estado receberia o dinheiro. (PACHUKANIS, 2017) É a burguesia que em seu momento de luta pelo poder e com sua ideia mercantil, onde o tempo é o produto mais valioso, que garante um avanço instituindo códigos positivistas e mais humanistas a serem seguidos, a fim de garantir uma pena certa e equivalente para cada tipo de delito – sobretudo a criação de delitos contra a propriedade – superando os castigos físicos (essa superação na forma, pois continua a ser aplicada até hoje) e as incertezas do poder absolutista do monarca ao aplicar as sanções penais; conseguindo, assim, garantias legais para a sua própria segurança. (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004).

Mudando seu status de oprimida para opressora, a burguesia, como toda classe dominante, firma seu poder através da Força Estatal; em poder dessa máquina, a molda para que possa suprimir a classe operária. Portanto, não é raro que as penas mudassem de acordo com a classe social de quem estava diante dos tribunais, o que acontece até hoje.

Retornando a introdução da estrutura do poder penal burguês, o encarceramento por tempo passa ser a pena ideal capitalista, pois corresponde ao seu modo de encarar as relações sociais, capital-trabalho assalariado; onde o tempo disponível que se converte em força de trabalho é única coisa que o proletariado tem para que possa trocar por mercadorias, a sanção penal por cometimento de um delito não poderia ser outra senão a privação desse tempo. (PACHUKANIS, 2017)

Portanto, devemos sempre ter no horizonte que o Direito faz parte da estrutura de dominação de classe; o Direito Penal é uma ferramenta de opressão de classe e se molda de acordo com a classe que o projeta (PACHUKANIS, 2017). Sendo assim, não podemos tratar o tema com revisionismo, buscando uma reforma do Direito, mas devemos ter como objetivo sua extinção absoluta, extinção essa que virá com o fim da sociedade de classes, e essa só será plena quando não mais existir estruturas jurídicas. (PACHUKANIS, 2017).

Higienização Social: O encarceramento dos indesejados

Os presídios são o exponencial máximo do poder legal do Direito Penal que caça os indesejados; podemos ter a certeza disso quando analisamos os dados: segundo informações de 2023 da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), cerca de 61% da população carcerária são pretos ou pardos; quase 28% são presos provisórios.

Dados ainda mais alarmante são os números de presos por homicídios doloso e estupro (13%); de acordo com esse estudo é fácil rebater o argumento raso: “mas se acabar os presídios para onde vão os estupradores e homicidas?’. Ora, eles sequer estão nos presídios.

O encarceramento em massa no Brasil se baseia na defesa da propriedade privada e na higienização social, forma de retirar do seio da sociedade aqueles considerados marginais: sobretudo negros, pobres e favelados. Em nosso país não foi o viés econômico do uso da mão de obra barata (quando não escrava) através do trabalho forçado dos internos para inciativa privada que motivou o encarceramento em massa, mas o racismo, o genocídio dos povos indígenas e as chacinas dos marginalizados; é através dessa lógica de higienização popular que se fundamenta os presídios brasileiros. Não adianta almejarmos uma reforma desse sistema, uma vez que sua função essencial histórica é suprimir, apagar, transformar em força dócil de trabalho os indesejados da sociedade, bem como reeducar para as fábricas e exercer controle sobre a reserva de força de trabalho.

Recentemente, no Brasil, está em curso uma tentativa de adicionar mais uma razão para encarcerar, qual seja: o lucro por cada pessoa encarcerada e uso da mão de obra barata (escravidão) dos encarcerados. Através do Decreto n° 11.498 de 2023 do Governo do Presidente Lula, que coloca o sistema prisional como projeto prioritário na área de infraestrutura, sendo passível da realização de parceria público-privada através de investimento do BNDES. No geral, o Governo deixa de investir em outras políticas públicas para financiar o projeto racista de privatização dos presídios, onde as empresas lucrarão com cada indivíduo privado de liberdade.

Ineficácia da luta pela legalização das drogas sem debater o fim das prisões

Tema recorrente entre a esquerda progressista é a luta pela legalização das drogas, contudo, debater legalização das drogas sem discutir as políticas de encarceramento em massa e o fim das prisões é ineficaz para a classe oprimida, isso porque o que não falta são medidas criminalizantes para mandar os indesejados para os presídios, e foi assim por toda a história; o crime por vadiagem que legaliza institucionalmente a prisão de todo aquele que estivesse desempregado e ocioso, dessa forma, criminalizando o samba, a capoeira, o funk, o hip hop, as Torcidas organizadas, o jogo do bicho... Tudo aquilo que é manifestação popular. A vadiagem hoje é considerada uma contravenção penal, com pena de prisão simples de até 3 meses.

Não obstante, hoje há a figura do usuário (art. 28, Lei 11.343/06) que já não prevê mais prisão para o usuário de drogas, porém, não são raros os exemplos que demonstram para quem essa despenalização serve; a lei muda sua aplicação e validade a depender do tom de pele e cep do acusado. Assim sendo, a repressão continuará ocorrendo, nas abordagens policiais, será requisitada a nota fiscal do produto entorpecente para os negros, assim como ocorre hoje nas favelas quando solicitam tal documento para provar a propriedade da bicicleta que um jovem negro está em posse; se delimitada uma quantidade máxima de gramas que poderão ser trazidas consigo, os policias continuaram plantando drogas e forjando flagrantes como ainda fazem.

Portanto, deve-se manter a atenção ao pedir a legalização. Legalização tão somente, significa confiar nas instituições para que controle algo tão presente em nossa vida social, significa crer na burocracia do Estado burguês para que melhore ou alivie a vida dos operários, significa entregar ao legislador - em sua maioria vendido aos detentores do capital - a disposição da organização da compra e venda de entorpecentes, passando por cima de muito sangue derramado por jovens negros na guerra as drogas.

Ouso dizer que: se a futura legalização das drogas não vier de um debate social e com ampla participação das comunidades (o que dificilmente ocorrerá) não surtirá qualquer efeito prático nas vidas da juventude negra, nem sequer um avanço mínimo. Pois, (i) a legalização através do lobby empresarial, movimento esse que ganha força visando apenas o lucro e o acumulo do capital,  e que ignora as vidas perdidas, futuros aniquilados e famílias despedaçadas por esse infame guerra as drogas, manterá os conflitos por compra e venda, uma vez que jovens que hoje atuam no varejo de droga arriscando suas vidas serão excluídos desse novo mercado legal, ou seja, continuaram a margem da lei e sofrendo os mesmos tipos de violência estatal; (ii) por motivo da quantidade que traz consigo, onde comprou ou ausência de provas de que aquelas drogas foram compradas em local legalizado, jovens marginalizados continuarão a ser criminalizados, mortos e encarcerados.

Assim sendo, não devemos concentrar nossa força de luta em movimentos pelo positivismo das leis, mas devemos entender que a criminalização das drogas é só mais uma das inúmeras formas de encarcerar a juventude operária. Para que não haja confusão, não estou dizendo que a luta pela legalização das drogas é ineficaz, porém, se apenas debatermos esse ponto, sim! Não terá qualquer valia para as classes subalternas. Devemos pautar a luta pela legalização das drogas, todavia, sempre mantendo o nosso horizonte que deve ser a luta pelo fim das prisões.

A farsa do garantismo 

Garantismo é uma corrente jurídica que presa pela máxima observação e respeito pelos direitos fundamentais e pelas medidas judiciais que garantem o devido processo legal. Contudo, o apego por dispositivos legais ainda que visando igualdade e respeito pelo Homem, permanece como uma forma de preservar o status quo, ou seja, a dominação da burguesia.

Outrossim, os dispositivos legais garantistas nada mais são que ferramentas para aliviar a pena daqueles que, ainda que tenham caído no julgamento penal, a classe dominante não quer punir.

É o garantismo penal que fundamenta o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), que surge como uma medida despenalizadora, mas que na verdade, beneficia, em sua maioria, os crimes de colarinho branco. Ou seja, mais uma medida voltada para beneficiar a classe média; se assim não fosse, os institutos despenalizadores seriam igualmente aplicados, o que não acontece. 

Superação do Estado e de Suas Ferramentas

Camaradas, se enquanto comunistas lutamos por uma sociedade sem contradições de classes, sociedade essa sem Estado, uma vez que se torna desnecessário e incompatível. Devemos superar toda sua estrutura, inclusive a estrutura jurídica, e com ela o Direito. 

O que dizer então das prisões - sobretudo em sua forma burguesa de privação de liberdade por tempo - que são a potencialidade do Direito Penal e o que garante a força coercitiva legal do Estado? Devemos, portanto, entender que nossa luta não deve ser pela reforma dos sistemas penais e carcerários - discurso esse tão antigo quanto o surgimento das prisões - mas devemos lutar pela sua abolição, pois sua existência só é possível enquanto existir classes antagônicas.

O Direito Penal e toda superestrutura jurídica moderna não carece de reforma, mas precisa ser extinta. Precisa ser extinta porque é característica da exploração e da opressão de classe, porque traz consigo os interesses da classe que a realizou, porque além de tudo é a ferramenta que dá legitimidade e força ao poder repressivo do Estado. Como assertivamente coloca Pachukanis (2017), “A Jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de classe organizado que apenas em certo grau diferencia-se das assim chamadas medidas excepcionais aplicadas no momento de guerra civil”. As prisões precisam ser extintas porque compõem o aparato de repressão do Estado baseados na ideologia burguesa de opressão dos negros, pobres e de todos aqueles que se encontram à margem da sociedade.

Portanto, quando sobre superação do Estado, devemos saber de forma clara e objetiva o que compõe o Estado, qual sua estrutura e ferramentas, e atacar cada uma; as suprimindo e destruindo, até que não sobre nenhum vestígio seu, só assim teremos superado o Estado. 

Um Novo meio de Punição

Reconhecendo que os presídios são ineficazes quanto a responsabilização e ressocialização, devemos pensar em formas alternativas para “punir” os desviantes no momento da transição. 

O método punitivo deve ser focado na responsabilização do desviante, bem como na melhor forma de compor o dano causado à vítima; deve ser um método que foque no acolhimento, responsabilização e reintegração dos envolvidos; onde a punição será um dispositivo residual; um método voltado para educação e que vá de encontro com a razão do cometimento do delito, visando sufocar sua origem; deverá ser um método popular comunitário universal, que sirva para todos sem exceção, que tenha ampla participação popular em todas as suas fases (investigação, julgamento e execução). 

Porém, sem jamais esquecer que o Direito existirá tão somente no processo de transição para o Comunismo; que assim como o Estado, deverá a todo momento caminhar para sua superação.


  • Referências

RUSCHE, GEORGE; KIRCHHEIMER OTTO. Punição e Estrutura Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004.

PACHUKANIS, EVGUIÉNI B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida; revisão técnica Alysson Leandro Mascaro; Pedro Davoglio. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2007