'Contra o liberalismo na liberdade de crítica: Resposta à “militante vacilante”' (Deutério)
A liberdade de crítica e a liberdade de polêmica para os comunistas não exclui a necessidade do convencimento. A disputa no partido, igual a qualquer disputa, é uma questão de força, não de consenso ou acordos.
Por Deutério para Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Aqui farei uma crítica, ou melhor, uma resposta, a tribuna “Algumas questões de uma militante vacilante”, enviada de forma anônima. Durante a tribuna, me referirei a camarada como “vacilante” visto que ela não usou nenhum pseudônimo que eu pudesse me referenciar, mas isso não é um julgamento a sua firmeza nem se pretende a ser.
O texto em questão é essencial por ser o primeiro a analisar o próprio PCB-RR de forma crítica dentro do próprio espaço organizado pelo movimento. Primeiro, coloca em questão quem é militante da Reconstrução Revolucionária e como isso abre alguns riscos. Segundo, crítica a agressividade de alguns membros nas redes sociais. Terceiro, critica algumas figuras e conceitos “reivindicados” por alguns participantes da reconstrução revolucionária. Por fim, questiona os limites da liberdade de disputa no PCB-RR. Entendo, no entanto, que com exceção das duas primeiras questões, a militante faz uma defesa esquerdista/dogmática e liberal que precisa ser firmemente criticada.
Aqui não irei desenvolver muito sobre as duas primeiras questões. Sobre a segunda apenas apontar que concordo integralmente com a crítica a forma como alguns camaradas defensores da Reconstrução Revolucionária deixaram se levar pela emoção e atacaram pessoas sem que isso levasse a nenhum avanço. Sobre a primeira, a preocupação com quem entra no PCB-RR, entendo que é algo impossível de impedir integralmente, pois muitas vezes não há qualquer forma de saber o histórico da pessoa, e o que podemos fazer para amenizar essa situação é conversar com a própria para perguntar seu histórico e com quem mais aderiu a RR para ver se alguém conhece. Dadas as limitações, a prioridade deve ser de fortalecer internamente as identidades oprimidas para cada um impor a expulsão daqueles que tentarem manter privilégios pessoais através da reprodução de opressões, pois mesmo a política internamente no partido é uma disputa de força. Colocado esses apontamentos sobre as primeiras questões, sigamos as próximas.
Na seção “Sobre a confusão política” a militante vacilante critica a utilização do termo “ala esquerda” para designar aqueles que defendem a Reconstrução Revolucionária. O argumento que ela usa é que o termo começou fazendo sentido, mas que passou a surgir pessoas se colocando enquanto ala esquerda que reivindicam socialismo juche, elogiam Stalin e que defendem o socialismo com características chinesas e o “realismo político de corte italiano”. Ao invés, a camarada indica que uma “verdadeira” ala esquerda reivindicaria os nomes Trótski, Bordiga, Bukharin, Pannekoek, Rühle, Luxemburgo e Pankhurst.
A militante, no entanto, faz uma análise reducionista e personalista, e portanto liberal, consequentemente não faz nenhuma análise política da posição daqueles que ela critica. No exemplo de Stalin, ela afirma “O mesmo se repete com a crítica à crítica de Mauro Iasi sobre o polêmico post da UJC sobre Stalin, vi pessoas que se reivindicam ‘ala esquerda’ se indignando por não poderem fazer elogios a Stalin nas páginas da UJC” sem nenhum momento dizer quais são esses elogios que foram proibidos de ser feitos ao camarada. Por acaso o post estaria elogiando o “lassalianismo e proudhonismo disfarçados de marxismo” que ela associa a Stalin? Não, ao invés, o post estaria elogiando a direção do camarada durante a Segunda Guerra. A militante discorda disso? Não sabemos pois não foi apresentada nenhuma crítica política da situação real, apenas críticas moralistas a certas figuras.
Esse moralismo colocado é uma manifestação da lógica pequeno-burguesa de seita se manifestando ao invés da lógica proletária de partido. Ao invés de debater a justeza da ação a partir de suas consequências concretas, a militante vacilante idealiza um certo e errado que não tem consequência na prática. E o mesmo é feito nos outros exemplos.
Essa análise moralista está relacionada com a visão a-histórica das disputas que a camarada mostra ter. Diversas vezes ela coloca que “ala esquerda” deve ser usada da forma que era antes, como se as alas não fossem determinadas pelo contexto, e que a própria utilização do termo que ela reivindica como “histórica” já não fosse uma adaptação do termo a novos contextos que surgiram pós Revolução Russa. Dessa forma, a camarada mistura a crítica esquerdista e dogmática feita a Stalin, ao socialismo juche e ao “socialismo” chinês, que idealiza do processo de transição socialista, com a crítica oportunista, que se coloca como oposição a estes para ser mais palatável para a burguesia, mostrando defender a crítica esquerdista mas estando disposta aceitar taticamente a crítica oportunista.
É uma falsificação afirmar que reinvindicar Stalin é uma posição da ala direita, visto que historicamente ambas as críticas oportunistas e esquerdistas existiram no Movimento Comunistas Internacional, com Kruschev como um exemplo da primeira e Trotski da segunda. Inclusive a crítica oportunista (de direita) sempre foi muito mais forte, não à toa os representantes da crítica esquerdista nunca hesitaram em se aliar ao oportunismo. No fim das contas, essa falsificação acaba sendo apenas a perspectiva dos próprios atores que a vacilante mesma reivindica como a “verdadeira” ala esquerda (que melhor seria chamada de “ala esquerdista”). Da mesma forma, reivindicar Stalin não é inerentemente de uma ala direita ou de uma ala esquerda, visto que os oportunistas do PCdoB reivindicam Stalin tanto como os esquerdistas do maoísmo.
Nem a crítica oportunista nem a esquerdista a Stalin, ao Socialismo Juche, ao (falso) Socialismo com Características Chinesas, ou seja o que for interessam aos revolucionários, pois apenas confundem os trabalhadores sobre a concretude da transição socialista. Críticas e elogios devem ser feitas a linhas políticas determinadas e a ações concretas com base em suas consequências, e não a pessoas e países com base em onde elas se encaixam dentro de certos valores morais. Sigamos.
Na seção “Quais os limites da disputa do PCB-RR?” a militante questiona quais os limites da disputa dentro do PCB-RR, exemplificando com o debate sobre “marxismo-leninismo” versus “marxismo e leninismo” e versus apenas “marxismo”. A militante também discorre um pouco sobre sua posição sobre esse debate, ao qual eu não contra-argumentarei para focar na questão principal: O questionamento da vacilante mostra liberalismo na concepção de liberdade de crítica e disputa. Vejamos.
Comecemos pela hipocrisia dentro do próprio texto: Ao final da seção, a militante coloca o questionamento “Poderei beber de autores divergentes do marxismo-leninismo ou serei taxada de ‘troska’, ‘ultraesquerdista’, ‘reformista’ etc.?” como se isso fosse de alguma forma injusto contra ela, quando logo antes ela firmemente desqualifica quem defende a inutilidade da categoria “stalinismo”: “no clima de ‘demarcação de posições com firmeza’ devo advertir: caso alguém queira responder com ‘não existe stalinismo’, não se dê o trabalho, desprezo tua opinião”. O que dá o direito de ela desprezar a opinião de alguém, mas que não dá o direito a outros de desprezar a opinião dela sobre o marxismo-leninismo?
Essa hipocrisia é consequência da concepção liberal de liberdade, que é incoerente e individualista por natureza. Ela pergunta “Por mais que eu possa estar errada e estar falando as idiotices mais idiotas, terei o direito de polemizar acerca disso?” e eu respondo: Claro! Mas nós teremos também o direito de desprezar sua opinião, bem como o direito de taxá-la de esquerdista. Teremos também o direito a não colocar você para ser direção, e temos até mesmo o direito de não queremos estar no mesmo partido que você!
A liberdade de crítica e a liberdade de polêmica para os comunistas não exclui a necessidade do convencimento. A disputa no partido, igual a qualquer disputa, é uma questão de força, não de consenso ou acordos. Uma visão errada que atrapalha o andamento do partido deve, sim, ser isolada, e o problema do velho PCB não foi o isolamento em si, mas sim o isolamento pelos métodos de seita. A fração CC decidiu por conta própria isolar representantes de certas linhas políticas com o objetivo de impedir a disputa de acontecer, ao invés de impedir ações prejudiciais ao movimento sob uma linha que o conjunto do partido julga errada. Da mesma forma, o problema do velho PCB não foi ter ocorrido uma cisão, mas sim a cisão por métodos de seita. A fração CC decidiu por si mesma que o partido inteiro deveria não estar associado a representantes de certas linhas políticas com o objetivo, novamente, de evitar a disputa de acontecer, ao invés de impedir ações prejudiciais ao movimento sob uma linha que o conjunto do partido julga errada.
O proletariado, enquanto classe unida, não pode limitar sua ação por burocracias ou por valores morais. Da mesma forma, o partido do proletariado, enquanto conjunto unido, não pode se limitar por liberdades individuais de seus membros. Tudo o que for necessário para a revolução, e apenas o que for necessário para a revolução.
Assim, se analisarmos a crise do velho PCB a partir das liberdades individuais de cada agente envolvido, ficaremos num debate eterno e irrelevante. Podemos até concluir que tanto a fração CC quanto a fração RR tinham simultaneamente o direito de agir como agiram. Ao invés, precisamos analisar a crise a partir do espírito partidário do proletariado, para assim concluir que foi a fração CC quem agiu como seita e decidiu sozinha os rumos da organização contra a maioria partidária. É, portanto, sob os princípios da revolução, que necessita da construção de um partido que unifique os mais avançados quadros revolucionários, que conseguiremos entender a cisão do PCB para construir um partido realmente capaz de tomar o poder.
Saúdo a militante vacilante pela tribuna que abre diversas questões centrais. Mas reitero: as duas últimas questões estão permeadas de esquerdismo/dogmatismo e de liberalismo. E da mesma forma que a camarada tem todo o direito de ter enviado sua tribuna, eu tenho o direito de enviar esta a criticando. Por fim, espero que essa tribuna não a disincentive de militar no PCB-RR, pois é na crítica aberta e pública que o conjunto da militância e da classe são capazes de distinguir as diversas linhas e avançar no sentido da linha correta.