'Contra a fofoca em nossas fileiras' (Iuri Ota)

A fofoca faz parte da política do velho PCB. É o único caminho que militantes de base têm para conhecer quais as reais posições dos militantes que estão em instâncias superiores e qual é o verdadeiro rumo que o Partido está tomando.

'Contra a fofoca em nossas fileiras' (Iuri Ota)
"Muitos de nós, educados por anos na cultura da fofoca do velho PCB, nos acostumamos a ela e por hábito tendemos a nos refugiar nela, compartilhando nossas críticas apenas com camaradas que sabemos que concordam conosco e aumentando nosso rancor a camaradas que não confiamos. Mas precisamos, conscientemente, superar essa cultura. "

Por Iuri Ota para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Apesar de não parecer, escrevo essa tribuna para tratar de um assunto sério. Fomos formados no velho PCB, nessa formação tivemos incentivo em desenvolver e fortalecer alguns desvios liberais. Um desses desvios são as constantes fofocas referentes à organização e atividades de nosso Partido assim como à posição política de nossos militantes. Devemos eliminar esse desvio, assim como outros, de nossas fileiras.

A ideia de que a fofoca é um desvio liberal vem de Mao Zedong. Em Contra o Liberalismo[1], o camarada afirmou:

Em privado entregamo-nos a críticas irresponsáveis, em vez de fazermos ativamente sugestões à organização. Nada dizemos de frente às pessoas, mas falamos muito pelas costas; calamo-nos nas reuniões, e falamos a torto e a direito fora delas. Desprezamos os princípios de vida coletiva e deixamo-nos levar pelas inclinações pessoais.

Reservar nossas discordâncias políticas (seja referente a uma posição teórica ou à organização do trabalho do Partido) a conversas pessoais, fora de nossas reuniões, não nos ajuda em nada a avançarmos nessas questões e incentiva a criação de um clima de desconfiança política entre nossos militantes estimulando a formação de grupismos em nossas fileiras, podendo gerar novos afastamentos, desligamentos e até cisões.

No velho PCB, a fofoca era o único meio que militantes de base tinham para se informar das decisões e polêmicas internas nas instâncias superiores do Partido e, em alguns casos, até expressar suas reais posições políticas.

Nós militantes de base nunca recebemos as atas das reuniões do CC e do CR (ao menos em São Paulo), não sabíamos o que havia sido deliberado muito menos o que havia sido discutido nessas reuniões. Todos os militantes que não foram delegados nacionais do XVI Congresso não tiveram acesso às tribunas de debate e assim só puderam ficar sabendo dos temas que foram discutidos neles após a publicação das novas resoluções, meses após o fim do Congresso, não sabemos quais resoluções foram polêmicas pois, novamente, não recebemos ata nenhuma.

Perdi as contas do número de “informes” que recebemos em célula após algum camarada pedir para subir uma crítica ao CR e camaradas que também compunham a instância (que não eram nosso assistente) nos informar que tal assunto já havia sido debatido e votado lá. Como exemplo, trago o caso de uma de nossas últimas reuniões antes do início da crise atual do PCB: debatemos a necessidade de criar um processo disciplinar contra o nosso secretário político de São Paulo referente à uma publicação que fez em suas redes sociais defendendo Boaventura de Sousa Santos que estava sendo denunciado por assédio. Após muito debate, quando estávamos encaminhando que tipo de PD gostaríamos que fosse discutida pelo pleno do CR, nos foi informado que o último pleno o CR já havia debatido o PD ao secretário e que este não havia passado na votação, portanto, se quiséssemos fazer uma contribuição que fosse lida pela instância deveríamos tirar o processo disciplinar e fazer outra proposta.

Além dessa escolha política do CC e CRs de manter os militantes de base no escuro, não era raro em reuniões de célula ouvirmos falas como: “a célula é o espaço para se fazer críticas, mas não é dessa forma que fazemos críticas aqui” ou “esse não é o tipo de crítica que alguém que quer construir o Partido faz” vinda de militantes que hoje comemoram todas as expulsões que o velho PCB vem realizando nas últimas semanas. Era preciso tanta coragem para fazer uma crítica às instâncias superiores em nossa célula que ler o Rondó da Liberdade de Carlos Marighella se tornou um hábito para mim. Essas dificuldades em realizar nossas críticas nos espaços oficiais de nosso Partido foi outra forma de incentivar que reservássemos nossas críticas às mesas de bares e conversas pessoais com camaradas que sabíamos que não questionariam nosso compromisso com o Partido e com a Revolução Brasileira.

Não bastasse essas dificuldades (intencionalmente criadas pela cultura política do velho PCB), era comum, que militantes que hoje compõe a “ala direita” do Partido fizessem eles mesmo fofocas sobre outros camaradas. Era comum fofocas sobre o que camaradas faziam ou deixavam de fazer em suas células ou secretarias que ocupavam e qual a posição que camaradas haviam tomado no XVI Congresso ou no Congresso da UJC do ano passado. Nos últimos meses o nível de fofoca chegou ao ponto de eu, que sempre fui apenas um militante de base da capital de São Paulo, receber diversas informações sobre camaradas de outros estados que eu nunca havia visto ou ouvido falar.

A fofoca faz parte da política do velho PCB. É o único caminho que militantes de base têm para conhecer quais as reais posições dos militantes que estão em instâncias superiores e qual é o verdadeiro rumo que o Partido está tomando. É um ótimo meio para “queimar” camaradas com a base do Partido e é nessas conversas particulares que a “ala direita” sempre filtrou quais eram os militantes dos coletivos confiáveis o suficiente para serem recrutados ao Partido e quais militantes podiam se tornar secretários de células (aqui na capital de São Paulo).

Fomos expulsos do velho PCB e agora precisamos romper com essa cultura da fofoca que nos foi ensinado. Estamos realizando plenárias abertas em diversas cidades, já temos as tribunas do XVII Congresso (extraordinário) abertas para contribuições e leitura e, em São Paulo, já recebemos a ata, com os debates e encaminhamentos, da reunião de nosso Comitê Regional Provisório, inclusive, recebemos uma proposta de reorganização das cotizações que não foi deliberativa (como foi, por exemplo, a “contribuição” de R$ 25,00 por militante que as células deveriam fazer para o CC no velho PCB), mas que deveria ser avaliada e debatida por nossos núcleos, comitês e células e cujas contribuições voltariam ao Comitê Executivo para que a proposta fosse reavaliada. Acredito que, diferente do velho PCB, nossos camaradas que agora estão nas direções provisórias mostram-se dispostos a deixar nossas posições e ações o mais transparente possível e a trabalhar para tornar nosso organismo partidário o mais aberto possível a críticas e contribuições dos camaradas que compõem sua base.

Portanto, é nosso papel como militantes de base também nos livrarmos desse desvio liberal. Caso tenhamos discordância com a posição de um camarada, o encaminhamento de um de nossos comitês ou comissões, a organização de um trabalho de base ou qualquer outra coisa referente ao Partido, podemos expor nossa posição por diversos meios: podemos fazer contribuição diretamente aos Comitês Provisórios, falar nas plenárias que estão sendo realizadas, publicar tribunas (que podem ser anônimas), além de, é claro, levarmos como pauta de debate nas reuniões de nossas células, núcleos ou comitês.

As tribunas e as reuniões devem tornar-se os melhores espaços para esses debates e críticas. Para isso é preciso que sejamos pacientes, acolhedores e verdadeiros camaradas, tanto para realizar nossas falas quanto para ouvir as falas de outros. É no debate franco e aberto que resolveremos nossas discordâncias, que encontraremos o caminho que parece ser o mais correto para seguirmos e que revigoraremos a confiança que temos uns nos outros e nossos laços de camaradagem. É por meio desse debate que nossa unidade de ação se fortalecerá.

Se estamos incomodados com algo ou se temos alguma discordância com outro camarada, não podemos ficar calados, é preciso ter a coragem de dizer. É normal termos receio de nos expor, pensar que não somos bons o suficiente para fazer determinada crítica, de que seremos escrachados por fazê-la ou de que ela se tornará uma contribuição que será esquecida nos e-mails das instâncias superiores. Muitos de nós, educados por anos na cultura da fofoca do velho PCB, nos acostumamos a ela e por hábito tendemos a nos refugiar nela, compartilhando nossas críticas apenas com camaradas que sabemos que concordam conosco e aumentando nosso rancor a camaradas que não confiamos. Mas precisamos, conscientemente, superar essa cultura. Agora temos a chance de construir o PCB como um partido verdadeiramente democrático e isso depende não só de nossas instâncias superiores, mas também da ação de todos os militantes da base.

Camaradas, reservemos aos bares e conversas cotidianas as fofocas banais. Aquelas que não dizem respeito ao nosso trabalho político partidário. Não condeno a fofoca em si, apenas as fofocas que dizem respeito ao nosso organismo. Ainda concordo com Djonga: a fofoca sobre a vida dos outros engrandece o convívio.


[1] https://www.marxists.org/portugues/mao/1937/09/07.htm