Conglomerados privatistas atacam os serviços públicos em São Carlos (SP)
O governo municipal vem privatizando cada vez mais os serviços públicos através das Organizações Sociais (OSs), Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e OSCIPs (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Matéria publicada em colaboração com Tribuna São Carlense
O projeto privatista tem avançado em São Carlos por meio de organizações do chamado “terceiro setor”, que justificam através da filantropia, o recebimento de investimento público nos últimos anos. Essa prática se configura como um dos pilares do neoliberalismo, auxiliando inclusive na disseminação da ideologia burguesa em meio a classe trabalhadora.
Contextualizando as OSs, OSCs e OSCIPs
Segundo a nossa Constituição Federal Brasileira de 1988, são direitos sociais: a saúde, a educação, a assistência aos desamparados, entre outros, dos quais pressupõe engajamento sólido dos três entes federativos. Sabemos que todas as conquistas de direitos sociais e políticos foram forjadas por décadas de árduas lutas da classe trabalhadora. Um importante fruto desse penoso processo foi a constituição do Sistema Único de Saúde (SUS). Antes do SUS, a saúde era privilégio de alguns grupos, muitas vezes o acesso era somente pelas Instituições de caridade. O mesmo ocorreu com a assistência social, hoje amparada pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), sendo direito de todos/as que dela necessitam e deixando a lógica caritativa.
Foi instituído o SUS (através da Lei 8.080 de 1990) e o SUAS (através da Lei 8.742 de 1993). Em período de avanços da classe trabalhadora e enquanto o SUS começava a tomar forma, o neoliberalismo embruteceu suas opressões e se intensificou em nosso país a partir da década de 90, através de políticas de ajuste fiscal. No governo de Fernando Henrique Cardoso, houveram privatizações de várias indústrias estatais brasileiras, um extenso corte de gastos públicos, austeridade fiscal e a desvinculação de receita da União, permitindo que o governo tirasse 30% do financiamento da seguridade social (saúde, previdência e assistência social) e alocasse esse valor em outros tipos de gastos públicos. A partir dessas medidas, o governo federal passa a quebrar os acordos Constitucionais de destinação da receita, desrespeitando diretamente os programas sociais e políticas públicas e ocasionando problemas crônicos como o desfinanciamento do SUS, o qual nunca chegou a ter financiamento suficiente para se nacionalizar.
A Lei da Responsabilidade Fiscal, votada nos anos 90, é incompatível com a construção de um Sistema Público de Saúde, tal como está colocado na Constituição Federal. A limitação de investimentos colocada através dessa lei, força o Estado a recorrer a sistemas de gestão que não respeitam os princípios do SUS e a sustentabilidade dos direitos sociais. A lei passa a ser entrave justamente para o sistema de seguridade social não funcionar, abrindo caminho para a iniciativa privada “salvar” a gestão dos serviços.
Nesse contexto de contrarreforma do governo FHC, desfinanciamento do SUS, precarização da condições de trabalho dos trabalhadores do SUS e dos serviços, temos a criação das OSC – Organizações da Sociedade Civil, recebendo incentivos governamentais, e tidas como solução para atender às demandas sociais e de saúde, intensificadas pelo neoliberalismo e ajuste fiscal realizados pelo próprio governo.
A maior dificuldade relatada pelos gestores públicos é a falta de controle sobre a gestão do serviço, principalmente na saúde. Não é possível a contratação de mais trabalhadores (visto a área da saúde como demandante de força de trabalho intensiva), não podem ampliar serviço e cobertura, não podem garantir uma maior produção de bens e serviços e nem tecnologizar os processos, pois tudo isso se choca com a Lei da Responsabilidade Fiscal. Consequentemente temos o sucateamento da saúde pública, péssimas condições de trabalho, serviço precário e a venda da salvação para todos esses problemas: a gestão a partir da iniciativa privada (OS’s – Organizações Sociais).
Apropriando-se de um caráter nobre com objetivo de auxiliar e garantir o cumprimento de direitos sociais e o desenvolvimento social (que legalmente é dever relevante do Estado), tais organizações buscam se beneficiar da terceirização causada pela precarização e desfinanciamento da saúde e da educação, sobretudo impossibilitando a contratação de trabalhadores pelo Estado e seguindo a lógica predatória de mercado.
Além do retrocesso aos velhos moldes de oferta caritativa dos serviços , como se esses não fossem direitos constitucionalmente conquistados, há também uma permeabilização entre público e privado com graves consequências para a classe trabalhadora, sendo a mais afetada em suas condições objetivas e subjetivas de vida, tanto os usuários como os funcionários públicos. Nesse modelo neoliberal privatista, há mercantilização da saúde e da educação através da terceirização. Tudo isso sendo realizado com o incentivo do Estado.
A situação da saúde, educação e da assistência social em São Carlos
São Carlos não foge da lógica neoliberal. O governo municipal vem privatizando cada vez mais os serviços públicos através das Organizações Sociais (OS’s), Organizações da Sociedade Civil (OSC’s) e OSCIP’s (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Tais organizações e qualificações jurídicas fazem parte do que chamamos de terceiro setor, porém possuem diferenciações em suas funções de atuação. Basicamente, as OSC’s são entidades privadas sem fins lucrativos (fundadas muitas vezes pelo grande empresariado), sociedades cooperativas e organizações religiosas. OSCIP é uma qualificação jurídica para garantir benefícios, como o fomento estatal. Geralmente, OSC’s e OSCIP’s se concentram mais em áreas de assistência e serviços sociais.
As OS’s também fazem parte da natureza de qualificação jurídica, mas possuem funções específicas de atuação, como a gestão dos serviços públicos, substituindo e absorvendo funções do Estado nos equipamentos públicos. No caso de São Carlos, temos a privatização de: Unidade de Pronto Atendimento em Saúde (UPA), Ambulatório Médico de Especialidades (AME), Unidade de Saúde da Família (USF), Unidade Básica de Saúde (UBS), Centros Municipais de Educação Infantil (CEMEI), entre outros. As áreas mais afetadas são a saúde e a educação e quem sofre as consequências é a população de São Carlos.
Em nossa cidade, há um conglomerado do terceiro setor que vem investindo forte na privatização de serviços de saúde, educação e assistência social. Mulheres do Brasil, Instituto Angelim, Sociedade São Vicente de Paulo (Vicentinos), ONG Nave Sal da Terra, MOVA, e entre outras organizações concorrem orçamento público e gestão dos serviços. Temos dois grandes exemplos de Termos de Colaboração com as OSC’s Instituto Angelim e ONG Nave Sal da Terra.
O Instituto Angelim, tramita com um Projeto de Lei (PL) na Câmara Municipal visando a terceirização do Centro de Referência da Mulher (CRM), equipamento que integra a rede de serviços socioassistenciais, compondo o SUAS e oferece acolhimento às mulheres em situação de risco e violência. Em 2016, o CRM foi fechado pelo governo Altomani. Em 2021, São Carlos já contava com verba na Lei Orgânica do Município para reabertura do equipamento. Na 7ª Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres, no dia 31 de março de 2024, foi aprovada por maioria popular, a pauta prioritária para reabertura do CRM com gestão pública. Além disso, há concurso público vigente para contratação de recursos humanos. Então, qual é a justificativa legal para conceder a entrega desse serviço nas mãos da iniciativa privada?
A ONG Nave Sal da Terra atualmente gere o serviço de convivência para pessoas idosas do Jardim Zavaglia – Centro de Convivência do Idoso “Roberto Kabbach” e o mesmo foi construído pela Empresa Tenda Atacado. O Centro de Convivência do Idoso encontra-se tipificado como Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, no âmbito da Proteção Social Básica e conforme Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. Serviços do SUAS, gerido por OSC’s, desobedecem pactos de gestão integrada no âmbito do SUAS. Além disso, a gestão de equipamentos públicos só é permitida às OS 's, ou seja, essa concessão está ilegal.
Ambas OSC’s possuem parcerias com empresas do setor imobiliário e bancário. A linha entre o público e o privado fica cada vez mais tênue, e a regra é a privatização e o entreguismo dos direitos sociais nas mãos do empresariado. São Carlos já possui inúmeras polêmicas por conta da administração terceirizada dos serviços por OS’s, como a falta de pagamento dos médicos das UPA’s, mesmo com os repasses da prefeitura em dia e problemas com falta de transparência.
De maneira geral, muitas organizações dessa natureza são investigadas em processos que envolvem fraudes, nepotismo, desvios, entre outros crimes. E quando não cometem tais atos ilícitos, são ferramentas de violação de direitos trabalhistas, precarização do trabalho, fragmentação e sucateamento do serviço, visando apenas obter lucro e alimentar o capital às custas da mercantilização dos direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora.
O avanço de políticas neoliberais, desde o corte orçamentário e a austeridade fiscal no início da década de 90, até o Novo Teto de Gastos, sustentado pelo governo Lula-Alckmin, escancaram as portas de maneira proposital para a investida do capital sobre nossos direitos e mercantilização da vida. Faz-se necessária a organização da classe trabalhadora na resistência e combate ao modelo neoliberal, além de sua organização na proposição de novas formas de política pública.