'Clóvis Moura e a “Revolução Farroupilha”' (Eduardo Castro)

O ponto chave do conflito entre o Sul e o Império foi, como já mencionado anteriormente, a preferência, por parte do Império, pelo charque platino e não o rio-grandense.

'Clóvis Moura e a “Revolução Farroupilha”' (Eduardo Castro)

Por Eduardo Castro para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Palavras iniciais

Buenas, camaradas. Trago aqui uma singela contribuição à crítica da assim chamada  “Revolução Farroupilha”, que chamarei doravante de Revolta Farroupilha, a partir de um debate com Clóvis Moura. No seu Rebeliões da Senzala, lançado em meados dos anos 1980, Moura dedica algumas poucas - cerca de cinco - páginas à Revolta Farroupilha, essas inseridas no capítulo onde debate a participação dos escravizados nos movimentos políticos. É evidente que num espaço tão curto de páginas é impossível que se abarque todo o sentido social da Revolta Farroupilha. Contudo, o que considero e pretendo sustentar nesta tribuna é que Clóvis Moura cometeu graves erros na compreensão do movimento farrapo. Erros que, mesmo num debate tão repleto de divergências como é o que diz respeito ao sentido da Revolta Farroupilha, estão calcados numa análise errada da conjuntura da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul nos anos que vão de 1835 a 1845. Moura tem como principal referência a obra de Dante de Laytano História da República Rio-grandense. O autor é reconhecido como importante juiz e folclorista no estado, formado no colégio Júlio de Castilhos (famoso Julinho) e com influência positivista. Tem, nesta obra, importante contribuição. Contudo, ela desempenha mais um papel de importante organizador de fontes historiográficas do que propriamente uma interpretação da República, interpretação essa que Clóvis Moura toma quase que por inteira.

O objetivo da tribuna, para além da polêmica com o autor é trazer à tona para es camaradas a necessidade de debatermos a história que forma a região em que estamos inseridos social, política e economicamente, história essa que, no caso do Rio Grande do Sul, ou é pautada pelo reacionário Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), ou por leituras superficiais de organizações sociais-democratas e sociais-liberais.

A leitura  de Clóvis Moura: elementos para polêmica

O debate sobre a Revolta Farroupilha aparece em sequência ao debate sobre a Confederação do Equador (movimento revolucionário de caráter republicano e separatista que estourou em 2 de julho de 1824 em Pernambuco), relacionando ambos os movimentos. Nos diz o autor: “Enquanto no Nordeste movimentos como a Confederação do Equador apareciam como sintoma insofismável da disposição emancipacionista de diversas camadas da população - o que decorria de uma série de fatores que, na sua essência, afirmava a formação da nossa consciência nacional -, no Sul a efervescência não era menor após a Independência” (MOURA, 2021, p. 142). A relação da Confederação do Equador com a Revolta Farroupilha se explicaria por ocasião da prisão de Bento Gonçalves em Salvador, após derrota militar na Batalha do Fanfa: “Para o Rio Grande do Sul, por seu turno, seguiu o padre José Antônio Caldas, que foi um dos organizadores da Confederação do Equador em Alagoas; seguiram da Bahia o coronel Rocha e o professor João Rios Ferreira Firmino Teles, todos eles elementos ativos durante o tempo que durou a República Piratini” (ibid, p. 143).

Aqui já é possível apontar uma diferença não mencionada entre a Confederação do Equador e a Revolta Farroupilha: o separatismo de origem. As lideranças farroupilhas não iniciaram o movimento separatistas. Exigiam uma única coisa - o reconhecimento por parte do centro do Império. Esse reconhecimento viria através da autonomia política (possibilidade de eleger o presidente da província) e segurança econômica, garantindo preferência ao charque sulino em detrimento do charque platino, que tinha a produção barateada principalmente porque não pagavam taxas de importação de sal, insumo fundamental para a produção de charque. O que o autor de referência para Moura afirma, na verdade, é que “o separatismo foi um momento da Revolução, ou, melhor, um condicionamento que se achou para galvanizar a opinião pública, orientá-la para uma doutrina que desse novos resultados até mesmo militares” (DE LAYTANO, 1983, p. 24). Ou seja, foi uma opção tática para aproveitar um momento em que a principal liderança militar estava presa  e fora do estado (o que poderia desanimar as tropas) e se havia há pouco vencido uma importante batalha, a Batalha do Seival. É só então que Antônio de Sousa Netto proclama a República Rio-Grandense.

Em seguida, Clóvis Moura apresenta o seguinte argumento que reproduzo, mesmo que extenso, na íntegra: “Na Revolução Farroupilha eles [os escravos] se sentirão à vontade porque, afora a insurreição dos alfaiates, na Bahia, nenhum outro movimento foi tão enfática  e ostensivamente antiescravista como o chefiado por Bento Gonçalves. A participação do escravo tinha um caráter racional, lógico. Não havia a contradição existente nos demais acontecimentos quando eles participavam das lutas por ordem dos seus senhores, como já vimos. Além do mais, como não pesava muito fortemente na economia da região conflagrada, o escravo se transformou em soldado rapidamente, adaptando as suas técnicas de combate aprendidas no Continente Negro às lutas da campanha. As próprias autoridades farroupilhas se encarregavam de emancipá-lo.” E, mais adiante: “O tipo da economia pastoril prescindia do escravo africano. Os trabalhos agrícolas, especialmente o da erva-mate, também não eram molde a exigir uma concentração de braços escravos como a que a economia dos engenhos ou da mineração impunha” (MOURA, 2021, p.143). O autor se esquece (literalmente não menciona) do peso das charqueadas na economia sulina. Tão fundamental era que foi um dos principais motivos para deflagrar a guerra. Segundo essa leitura, a escravidão aqui seria mais branda, menos dura, já que não tinha tamanho peso na economia pastoril. É um erro assim interpretar a economia do Sul. O que se conformou na então Província foi uma economia de fornecimento de charque e couro para o mercado interno. A economia rio-grandense se fundamentou na dependência em relação ao centro do império e à política cafeeira. O charque era usado fundamentalmente para alimentar os trabalhadores pobres e os escravizados. O ponto chave do conflito entre o Sul e o Império foi, como já mencionado anteriormente, a preferência, por parte do Império, pelo charque platino e não o rio-grandense.

Desta leitura se segue o seguinte raciocínio: “Daí não terem as camadas dirigentes da região conflagrada interesse em manter o estatuto da escravidão, tão acirradamente como aconteceu no Nordeste, onde ela era o esteio que se escorava a toda a economia regional” (MOURA, 2021, p. 143-4). Na verdade, a república manteve a escravidão e se escorou nela durante todos os dez anos em que o Sul se levantou contra o Império, mesmo com a proposta de fim da escravatura feita por José Mariano de Matos, em novembro de 1842, na primeira Assembléia Constituinte da República Rio-grandense, proposta essa que foi amplamente derrotada (MAESTRI, 2010, p. 172). Ao mencionar as estatísticas populacionais da Província, aponta a densidade da população escravizada, essa que configurava algo em torno de ⅓ da população (segundo Dante de Laytano), o que é, de fato, uma densidade baixa se comparada às demais províncias, particularmente as cafeeiras. Mas um olhar mais atento nos levaria a observar a cidade de Pelotas, um dos principais pólos da economia rio-grandense, concentrando grande número de charqueadas. Pelotas tinha, em 1833, de 10.872 habitantes, 5.623 trabalhadores escravizados, grande parte empregados nas charqueadas (MAESTRI, 2010, p. 175). 

Para comprovar, então, a firmeza anti-escravista dos farroupilhas, Moura cita consagrado trecho de um documento de 11 de maio de 1839, assinado por Bento Gonçalves e Domingos de Almeida (ministro da Justiça e Interior): “o Presidente da República para reivindicar Direitos inalienáveis da humanidade, não conseguindo que o livre rio-grandense de qualquer cor que os acidentes da Natureza os tenham distinguido, sofre impune e não vingado o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso tratamento que lhe prepara o infame Governo Imperial, em represália, a que lhe é provocado, Decreta: Artigo Único: Desde o momento em que houver sido açoitado um homem-de-cor a soldo da República pelas autoridades do Governo do Brasil, o General Comandante-Chefe do Exército, ou Comandante das diversas divisões do mesmo, tirará a sorte aos Oficiais de qualquer grau que sejam das tropas Imperiais nossos prisioneiros e fará passar pelas armas aqueles que a sorte designar” (MOURA, 2021, p. 145) Se sucede a isso a menção de que a jovem República comprava centenas de escravos para que lutassem livres nas fileiras farrapas, seja como lanceiros, soldados de infantaria ou na Marinha (ibidem). Esse trecho demonstra, na verdade, importante elemento de barganha militar, buscando incentivar ex-escravizados que, tendo fugido da condição de escravos e se refugiaram ou em quilombos ou passando a fronteira até a Banda Oriental, avaliem a possibilidade de lutar nessa luta que, queriam fazer acreditar as lideranças farroupilhas, também era sua. Fosse real o “abolicionismo dos chefes da República Piratini” que “não arrefeceu mesmo nos momentos mais críticos” e que, “reconhecidamente derrotados, não abdicaram das suas posições antiescravistas [sic]”(MOURA, 2021. p. 146), não teria a maior liderança farroupilha, Presidente da República Rio-Gradense, Bento Gonçalves, ao morrer “legado aos herdeiros mais de meia centena de homens negros escravizados, juntamente com terras, bois e cavalos” (MAESTRI, 2010, p. 184). A verdade é que, no momento da assinatura da Paz “honrosa” de Poncho Verde, mesmo que derrotados, os farroupilhas tinham um poderoso elemento de barganha: a conjuntura no Prata. Na Argentina, Rosas - representando o setor rural - comprava uma briga contra a burguesia portenha, aliada da Inglaterra. No Uruguai, com o apoio de Rosas, Manoel Oribe venceu Frutuoso Rivera e tinha intenção de levar o país ao domínio argentino. Com iminente conflito no Prata, o Império ofereceu a paz em excelentes condições: elevação de 25% na taxa alfandegária sobre o charque importado; direito à escolha do presidente da província; todas as dívidas adquiridas pagas pelo governo central; possibilidade de passar para o exército brasileiro com os mesmos postos que lutaram nas forças rebeldes e, por fim, reconhecimento de liberdade para ex-cativos que lutaram ao lado dos farroupilhas. Tudo isso em troca de continuar fazendo parte do império. “Mais uma vez entrara em cena o poder militar do Rio Grande do Sul como elemento de barganha frente ao poder central” (PESAVENTO, 1997, p. 39-40).

Ensaio de conclusão

O que pretendi com esse debate, camaradas, é apresentar um pouco da leitura que faço da Revolta Farroupilha em contraponto com a do grande pensador Clóvis Moura, fundamental para pensar as lutas dos povos oprimidos no Brasil. A fiz por perceber a ausência de qualquer interpretação a respeito dessa que foi a mais longa das rebeliões regenciais. Ainda pretendo apresentar um balanço da Revolta Farroupilha, perspectivando compreender seu sentido social e o articulando com os anos seguintes da província e do estado, mas a esse me falta estudo, acúmulo e tempo.

Considero importante falar ainda algumas coisas. Uma delas é que a guerra farroupilha não foi um movimento de todas as classes dominantes. Os farroupilhas tiveram muita dificuldade para conseguir chegar às cidades principais (do ponto de vista econômico), como Rio Grande, Porto Alegre e a própria Pelotas. Essas, sempre estiveram alinhadas ao Império, a capital inclusive recebendo o título de Leal e Valorosa. A briga foi entre os estancieiros e o centro do Império e a luta tomou vários matizes, teve diversos momentos e lideranças, as quais me falta conhecimento e espaço para aprofundar. Outro fator importante é que não esteve em jogo a distribuição da propriedade, a organização social ou a liberdade dos escravizados. E nisso se diferenciou muito da experiência liderada por José Artigas na Banda Oriental, que tinha como pressuposto a divisão das terras entre todos os habitantes da região que peleassem pela independência da Banda Oriental. Como Moacyr Flores disse: “infelizmente, os farroupilhas não eram abolicionistas, pois se tivessem libertado os escravos, concedendo cidadania a todos, formariam um grande exército capaz de destruir o império”(FLORES apud MAESTRI, 2010, p. 181). E sabe-se lá o que mais teria acontecido se tivesse sido feita diferente.


Referências:

DE LAYTANO, Dante. História da República Rio-Grandense. Porto Alegre: Sulina, 1983.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Anita Garibaldi, 2021.

MAESTRI, Mário. Breve História do Rio Grande do Sul: da Pré-História aos dias atuais. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2010.

FLORES, Moacyr. A revolução Farroupilha. Editora da Universidade, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1990.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Mercado Aberto, 1997.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Revolução Farroupilha. Brasiliense, 1985.

SPALDING, Walter. A Revolução Farroupilha: história popular do grande decenio seguido das" efemérides" principais de 1835-1845, fartamente documentadas. Brasiliana, 1939.