“Cidadãos fardados em defesa da pátria”: a Revolta da Chibata
Alimentação deficiente, sobrecarga de trabalho e, principalmente, castigos corporais, foram as causas próximas do motim. Poderosas naves de guerra assestavam os seus canhões para terra e exigiam para a tropa tratamento humano.
Trecho do livro História militar do Brasil, Nelson Werneck Sodré, pp. 243-248
Dentro da sistemática eleitoral brasileira, as condições de vitória do candidato da oposição eram nulas. Hermes foi reconhecido como vencedor. Mal se empossara, porém, e rebentou a rebelião dos marinheiros. Alimentação deficiente, sobrecarga de trabalho e, principalmente, castigos corporais, foram as causas próximas do motim. Casos esparsos já haviam ocorrido, devidamente sonegados ao conhecimento geral; agora o caso era gravíssimo: poderosas naves de guerra dominadas pelos marinheiros assestavam os seus canhões para terra e exigiam para a tropa tratamento humano. A rebelião surgiu quando um marinheiro sofreu o castigo de 250 chibatadas e foram sacrificados, de início, alguns oficiais e praças. A situação, para o governo, era alarmante, pois não contava com as condições necessárias para sufocar a rebelião, embora as perspectivas dela fossem limitadas. Encarregado de entender-se com a marujada revoltada, o almirante José Carlos de Carvalho, então deputado federal pelo Rio Grande do Sul, dirigiu-se aos barcos dominados por ela. Foi neles recebido com todas as honras, verificando que os bens nacionais estavam guardados, havia disciplina e não desordem. Ouviu os reclamos dos marinheiros, que lhe mostraram a vítima do castigo corporal: “Examinei esse praça e trouxe-o comigo para terra, para ser recolhido ao Hospital da Marinha. Senhor presidente, as costas desse marinheiro assemelhava-se a uma tainha lanhada para ser salgada”, explicará o almirante, em seu discurso de informação à Câmara.
O documento dirigido pelos marinheiros ao governo reivindicava particularmente a extinção dos castigos corporais, mas frisava também o regime de escravidão em que viviam, “porque, durante 20 anos de República, ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da pátria”. Em 24 de novembro, Rui Barbosa apresentou ao Senado o projeto de anistia, saída para o impasse criado. Pinheiro Machado declararia que “todos, quando surpreendidos pelo levante, reconhecendo as causas que o geraram, nos inclinamos, desde logo, a proclamar a justiça das reclamações que o determinaram: alimentação escassa, serviço exagerado, castigos corporais, que não se coadunam mais com o nosso regime liberal, com a lei, nem com a civilização atual e a cultura democrática a que temos atingido.”
A intervenção de Rui Barbosa constitui precioso depoimento a respeito do tratamento que o latifúndio concedia aos militares, discriminando-os por classes: “Direi mais: nunca compreendi como na República se tenha feito, com tanta liberdade, com tanta profusão, aumentos de soldos, todos os anos, sob pretextos vários, às classes armadas, aos oficiais, ora sob pretexto de equiparação, ora notificando-os a organização do quadro de generais, estabelecendo-se um quadro especial, de modo que temos no país um quadro numeroso de generais, sem termos soldados. Nunca compreendi que, para atender às necessidades da organização das forças armadas, fosse este o processo republicano, abandonando-se o interesse dos praças e dos desfavorecidos. A parte do senador Alfredo Ellis, de São Paulo, foi elucidativo também: “São deserdados da República oligárquica.” Concedida a anistia, os rebelados dirigiram ao governo o último radiograma: “Confiando na vossa justiça, esperamos, com o coração transbordando de alegria, a vossa resolução, pois os culpados da nossa rebelião são os maus oficiais de Marinha, que nos fazem escravizados deles e não da bandeira que temos. Estaremos ao vosso lado, pois não se trata de política e sim dos direitos dos miseráveis marinheiros.” O comandante designado para o Minas Gerais aproximou-se do navio em lancha do gabinete do ministro da Marinha. Era o capitão de mar e guerra João Pereira Leite. À aproximação do barco, João Cândido, comandante dos rebelados, mandou a tripulação toda formar no convés e prestou as continências de estilo: dirigiu-se à escada e recebeu o novo comandante com um vigoroso aperto de mão, enquanto a banda de música executava um hino. Após a leitura do decreto que concedia anistia, o comandante Pereira Leite percorreu o navio, achando tudo na mais perfeita ordem.
Em 28 de novembro, desrespeitando o decreto de anistia, o governo deliberava dar baixa do serviço aos marinheiros que mais se haviam destacado na rebelião. Em princípios de dezembro, começaram as prisões. Em 9, irrompeu o motim na ilha das Cobras, onde aquartelava o Corpo de Fuzileiros Navais, e no cruzador Rio Grande do Sul. Foi logo dominado, sendo a ilha bombardeada. Decretado o estado de sítio, as autoridades aprisionaram os que haviam participado da rebelião de novembro. Meteram-nos em cubículos, de onde a maioria, desses cubículos e de presídios, foi transportada para o navio Satélite, que os levaria para a Amazônia. A carga do barco, segundo a Folha do Norte, de Belém, consistia em 250 ladrões, 180 facínoras e desordeiros, 120 cáftens, 250 marinheiros revoltosos e 44 meretrizes. Na viagem, devidamente marcados desde o Rio, foram fuzilados 9 dos marinheiros rebelados. O desembarque, segundo depoimento de testemunha, no destino, as selvas amazônicas, foi assim: “A guarnição formou ao longo do navio armado em guerra, de carabinas embaladas, os portões foram abertos, e à luz de um sol amazonense, os 400 desgraçados foram guindados, como qualquer coisa menos corpos humanos, e lançados ao barranco do rio. Eram fisionomias esguedelhadas, mortas de fome, esqueléticas e nuas, como lêmures das antigas senzalas brasileiras. As roupas esfarrapadas deixavam ver todo o corpo. As mulheres, então, estavam reduzidas às camisas. Imediatamente uma porção de seringueiros apresentou-se e foram escolhendo aos lotes os que mostravam restos de uma robustez passada.” Esse depoimento foi lido, na íntegra, no Senado Federal, por Rui Barbosa, em sessão de 15 de agosto de 1911.
O governo Hermes da Fonseca não foi manso para as oligarquias, como seria de esperar: “Entendeu desmontar as oligarquias que datavam do princípio do século, substituiu-as pelas salvações, as intervenções e os estados de sítio que se prolongam pelo quatriênio.” As oposições locais se alçaram: “Pois bem, a partir de 1911 essas oposições começaram a se servir da força federal para destruir violentamente as situações de seus Estados as oligarquias, como as chamavam mas para destruí-las, não em benefício de um sistema democrático mais evoluído, porém para a implantação de novos bandos, de novas oligarquias.” Em Pernambuco, Dantas Barreto destrói a máquina partidária de Rosa e Silva; na Bahia, Seabra depõe o governador, a tiros de canhão; no Ceará, Franco Rabelo encerra a trajetória dos Acioli e acaba deposto pela rebelião sertaneja comandada pelo padre Cícero.
Tais acontecimentos viriam revelar, entretanto, a forma nova de organização militar irregular de que as oligarquias lançavam mão, e que substituiria a velha tropa da Guarda Nacional que haviam utilizado tanto em outros tempos: os bandos de jagunços, recrutados em regiões em que predominavam absolutas as relações feudais. Num vale úmido do Cariri, próximo à velha cidade do Crato, começa a surgir o cenário social de drama peculiar às áreas feudais brasileiras. Ali se estabelecera o padre Cicero Romão Batista, com enorme ascendência sobre uma população em que o misticismo disfarçaria as condições de miséria e de abandono. Essa gente, que se acumulava por força de sua necessidade, era material humano fácil, de que lançava mão o chefe local, aqui e ali, e chefes outros, para resolverem pelo trabuco as suas rivalidades políticas. Foi essa a matéria-prima de que se valeu Floro Bartolomeu para liquidar o governo de Franco Rabelo. 240 Na Bahia, na região diamantífera, em torno de alguns chefes locais, entre os quais se destaca desde cedo a figura de Horácio de Matos, em consequência das mesmas condições, surgem forças irregulares também poderosas, cujo papel nos acontecimentos políticos será muito grande. Em todo o interior, assim, o latifúndio gera a sua força militar, e dela se serve amplamente.
A sucessão do presidente Hermes da Fonseca levaria o mineiro Wenceslau Braz ao governo; Rui Barbosa seria candidato de protesto, mais uma vez, e não seria a última, de protesto, inútil mas característico, contra sistema antidemocrático a que as forças do latifúndio se aferravam: teve menos de 60 mil votos para um total da ordem de 600 mil. Nunca lhe seria perdoada a passagem pelo ministério da Fazenda e a política de defesa dos interesses da burguesia: “É compreensível, pois, que a volta dos fazendeiros ao poder lhe houvesse fechado as portas do governo, a que aspirava. A classe média não tinha consistência que lhe assegurasse a conquista do poder. O café governou a chamada Primeira República, e quando a escolha do presidente escapou as mãos da oligarquia partidária, na sucessão de Afonso Pena, produziu-se a crise entre os dois ramos da classe média, que foi a epopeia do civilismo. Ainda aí a casta agrária deu o peso de sua influência à vitória do marechal; o governo militar adquirira, naquele instante, um sentido oposto ao que tivera no advento do regime: o Exército já se tornara o poder subjacente, estabilizador das instituições e fiscal do jogo partidário, que as forças conservadoras do país podiam aplaudir sem temor.” Rui verificaria, passada a divergência com Floriano, como o papel dos militares não poderia ser de passividade e de omissão ante os grandes problemas do país. Faria a referência clássica a Osório: “sua farda não o discrimina do povo: confunde-o com ele, de onde surgiu, “mas também o reconhecimento, particularmente face à politica de Floriano, de que “aí está um homem que, no meio de todos os seus erros, era, ao menos brasileiro.”