'China, Confucionismo, Cristianismo e Esquerdistas' (Ouriço Azul e Lhama Roxa)

Invista seu tempo em produzir e se utilizar da realidade e se livre das garras da abstração mental, o fascismo está há tempos presente e não podemos nos dar o direito de relaxarmos em debates idealistas irrelevantes.

'China, Confucionismo, Cristianismo e Esquerdistas' (Ouriço Azul e Lhama Roxa)

Por Ouriço Azul e Lhama Roxa para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Ouriço Azul: Olá, me propus em primeiro momento a responder camarada L.Queen mas depois vi que poderia escrever sobre muito mais tornando a resposta um esboço perdido por entre essas ideias. Não foi exatamente o que aconteceu, a resposta ainda é muito presente e expressiva mas será que podemos combinar que não é só sobre a China?

Lhama Roxa: Oi camaradinha, como é que você está? Esperamos que aqui estejam reunidas as questões que vimos se repetir constamentemente na 'disputa' atual, no tom do qual nos valemos como aprendizes e com o que captamos por aí de conhecimento e fomos capazes de concluir como críticos. Espero que as questões aqui levantadas te façam sair do seu conforto para começar a pensar em como e porquê explicar que a terra é redonda, curupira anda pra frente e o Brazil com Z não existe.

RESUMO

Se deixar os garoto brinca é vulgarização e rebaixamento teórico do marxismo demais para a oposição, ainda bem que estamos do lado de cá. 

Essa tribuna é longa porque juntamos dois trabalhos e nos deixamos levar pelo prazer de estudar a teoria revolucionária ─ ou fomos miseravelmente alugados pelas polêmicas. De qualquer forma, é honesto e vem de um lugar de afeto.

Tratamos do DF para discutir o que foi debatido no congresso mais a fundo, desenvolvendo alguns dos pontos levantados, sendo eles, a NEP, a China e a autodeterminação do povo chinês; tentamos explicar o que é socialismo com características chinesas; refletimos o contraponto teórico da análise de mundo metafísica no conceito de negação, o marxismo não como algo ontológico mas algo influenciado pela formação social de uma determinada sociedade; o esquerdismo, o marxismo para o Sul Global e a luta revolucionária possível na sua esquina, na nossa e de todo comunista.

Muito foi escrito coletivamente mas os capítulos de 1 à 4 começaram dos textos de Ouriço Azul e os 5 à 7 da autoria de Lhama Roxa.

1. Explicando a 'Uma resposta sobre a Delegação do Distrito Federal: Como se transformar em um liberal mediocre'

A tribuna 'Uma resposta sobre a Delegação do Distrito Federal: Como se transformar em um liberal mediocre' é uma resposta à tribuna 'A delegação do Distrito Federal: como transformar Marx em um liberal medíocre'. Ou seja, essa tribuna tem nome e endereço. O que não é impeditivo para que outras pessoas não citadas respondam, não entendam errado. Esse fato apenas é algo primordial de se considerar ao ler o que é desenvolvido.

Pois bem, foi me dado uma tarefa, que eu particularmente odeio, que é explicar as coisas esmiuçadamente mas isso é normal quando se lida com pessoas decididamente inimigas da felicidade. E isso é graças a tribuna 'A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira (uma resposta aos camaradas Yuri Miyamoto e Ouriço Azul)'. No Partido Comunista que camarada L.Queen defende é proibido ser feliz, le-se:

Eu peço aos camaradas que querem “deixar os garoto brincar” que brinquem em outro lugar e não em um Partido Comunista. A teoria marxista não precisa desta vulgarização ridícula que o camarada Ouriço Azul defende e o camarada Yuri pratica.

Para mim isso é um sintoma de incapacidade para tratar marxismo também como coisa de gente fora da academia que talvez não tenha interesse em se armar com um léxico incompreensível de palavras. A quem interessa esvaziar nossa organização de todo resquício de toque humano? Espontaneidade é coisa de gente normal e aqui não somos qualquer vanguarda especialíssima, somos a vanguarda especialíssima mais iluminada que há pois não vulgarizamos Marx com atos jocosos.

Agora, explicando demais o texto, nele tento puxar o argumento para algo que acontece no Distrito Federal, como por exemplo no trecho que camarada L.Queen cita em sua tribuna:

Um lado defendia que se mantivesse “o vertiginoso avanço do capitalismo na China”, o outro defendia substituição por “o vertiginoso avanço das contradições estruturais do Socialismo com características chinesas”. Eu defendo a segunda opção e posso falar o porquê. Não é porque eu acredito que não existam contradições de modos de produção capitalistas na China mas porque é importante estudar o socialismo com características chinesas pelo o que ele é.

Esse trecho, finalizando o desenvolvimento do meu argumento vai seguir da seguinte forma:

Eu, tendo essas opiniões, sem falar que a China é boa ou má, apenas sugerindo a boa vontade de estudar, já seria considerado como Pro-China pelo camarada Gabriel Xavier e outras pessoas.

Aqui reitero (talvez não o suficiente, o que me deixa profundamente triste) que expondo minha posição muito tímida de “pô, vamos estudar isso aí” ainda corro o risco de me acusarem de ser um Pro-China ou, usando termos que aprendi lendo a tribuna de L.Queen, de repetir “[...] chavões e fraseologias Jabbourianas para defender que a China é um país socialista”. 

O argumento que desenvolvo em minha tribuna é que o debate está tão rebaixado que as pessoas não enxergam o que estão de fato debatendo e se perdem no Pro-China pelo Pro-China. 

Na última etapa congressual no DF perdemos muito tempo não chegando a lugar nenhum e, no final, ainda saímos com essa tribuna do camarada Gabriel Xavier de presente onde se joga todo mundo no mesmo buraco. Para ele, eram todos os delegados Pro-China que não interpretaram o marxismo corretamente. E isso passa longe de ser verdade. 

Também teve todo o estresse causado quando outros camaradas tentam disputar a visão nacionalmente sobre o DF com comentários e respostas nas rede sociais. Uma animosidade desnecessária e contraprodutiva criada, por exemplo, em uma troca de respostas públicas entre dirigentes nacionais e camaradas do DF, em que nos chamam de: basistas, Pro-Chinas, uma militância inexperiente que não leu obras de Lenin e de Marx, dissidentes do Manifesto em defesa da Reconstrução Revolucionária do PCB!, e por aí vai.

Veja como tamanha é a arrogância de taxar pessoas sobre o quanto elas vocalizam autoafirmações da quantidade de livros que leram ou deixaram de ler de Lenin e Marx em toda oportunidade possível. Tamanha é a inversão de valores, como se importasse mais o discurso que a prática. Faço aqui essa crítica a quem usa esse tipo de argumento; conseguem considerar que, diferente de vocês, algumas pessoas tem bom senso e até a humildade para não ficar falando o tempo todo que leram vários Lenin e Marx? Estamos ao passo de considerar como proposta real tratada em reuniões definir exemplo de militância quantas vezes camarada X e Y citou termos marxianos ou disse que leu O Que Fazer?. Me pergunto se é esse o Partido Comunista onde os garoto não brinca.

Na mesma etapa congressual tivemos um caso explícito de capacitismo. Por que os debates posteriores ocorreram exclusivamente ao redor de China e de forma alarmista? 

Existe uma falta de comprometimento com as pessoas, uma falta de toque humano e, consequentemente, falta de visão totalizante do processo revolucionário em nossa militância. O perigo do Distrito Federal é a suposta delegação Pro-China, o suposto basismo, a suposta inexperiência e não o fato que todo mês temos desligamentos por cansaço e abuso psicológico — pior ainda quando as pessoas não se desligam e se vêem claramente exauridas de forças tocando tarefas. O que, como há de se esperar dada essas atitudes, sempre é tratado como caso isolado sem que nada concreto mude. Vamos fazer revolução com quem se tiver todo mundo quebrado? Sobre esse tema recomendo a tribuna 'A questão da saúde mental na organização marxista' de camarada Vinicius Nogueira.

1.1. O Pro-Chinismo em minha tribuna e na Etapa Congressual no Distrito Federal

Fiquei surpreso ao ler a tribuna de camarada L.Queen que, respondendo a tribuna onde argumento justamente que tudo vira Pro-China quando sua posição não se adequa às expectativas de certos camaradas, me responde acusando de ser Pro-China, mesmo a China propositalmente não sendo o ponto central:

A tribuna do camarada Ouriço Azul é uma enorme confusão teórica e metodológica, em que o camarada tenta argumentar pela manutenção do termo “socialismo com características chinesas” nas nossas teses. Vejamos:

Após este “Vejamos:” é citado o trecho “Um lado defendia que se mantivesse “o vertiginoso avanço do capitalismo na China [...]”.

Elaborando melhor, eu, Ouriço Azul, não estava argumentando pela manutenção do termo por argumentar. Eu expus a tese que votei e o porquê de preferir essa tese à outra. A nível de demonstrar, exclusivamente, como é possível um camarada acusar outro de ser Pro-China, tão somente, sem um debate que chegue a uma síntese remotamente satisfatória. Da mesma forma que a China ser ou não socialista não é o ponto central daquela tribuna, o ponto central daquele argumento não é se a tese “o vertiginoso avanço das contradições estruturais do Socialismo com características chinesas” está correta e sim que, uma vez estabelecido o que me leva a votar por essa tese, questionar se é coerente eu e outras pessoas que também votaram sermos acusados de defender a China acriticamente e do camarada Gabriel Xavier caracterizar nominalmente toda uma delegação como Pro-China.

Na tribuna já citada de camarada L.Queen também é dito o seguinte:

Curiosamente, o camarada[1] cai em uma posição claramente oportunista ao abandonar completamente o método em sua tribuna, não constituindo, em momento algum, uma crítica devidamente marxista, fundamentada nas relações de produção chinesas e no desenvolvimento histórico deste país. Oportunismo, camarada, não é um xingamento moral contra pessoas do mal, é uma clara caracterização de uma posição política – independentemente das boas intenções do camarada.

Primeiramente, sim oportunismo não é um xingamento moral. Tanto não é que, quando é usado a palavra “oportunista”, é usado para dizer que “é comum que oportunistas se apoderem desses termos afim de mostrar autoridade e domínio incontestável da teoria”. Não há contradição aí e agora sabemos que tanto nós quanto camarada L.Queen entendemos isso. Em segundo, não vejo como fundamentar o argumento nas relações de produção chinesas e no desenvolvimento histórico da China em uma tribuna que o ponto central não é China. Era esperado que fosse escrito sobre como a delegação da China foi acusada de ser Pro-China errôneamente explicando o contexto histórico e as relações de produção chinesas? Parece absurdo. Isso só mostra como existe uma preedisposição a taxar qualquer um como Pro-China muitas vezes sem nem ler direito o que está sendo dito.

O camarada citado acima, Gabriel Xavier, que já disse publicamente que tem autocríticas à sua tribuna, havia tido essa atitude direcionada a toda a delegação do Distrito Federal após o congresso. Cito ele aqui afim de expressar tais atitudes dignas da ala conservadora agora que me foi dado uma alcunha parecida:

[...] Esses camaradas, ao tomarem essas posições confusas, de misturar essas duas formas de ditadura, uma com apenas o proletariado como classe dominante e a outra tendo um arco mais amplo, para todos os sentidos políticos, não atuam como marxista-leninistas, e sim como pequeno-burgueses, embora com uma luta para um democratismo consequente bastante honesto. Entretanto, não adotam uma posição proletária, comportam-se como os socialistas-revolucionários e não tomam a posição bolchevique durante a revolução russa de outubro de 1917.

[...] Ao errar a caracterização da China hoje, irão errar também em nossa linha política nacional e renegar o caráter socialista de nossa revolução e, no fim, reproduzir etapismo, mesmo que inconscientemente.

Aproveito então para, a partir do que é dito acima, perguntar novamente: como o Distrito Federal lidou com esse trecho do caderno de teses ─ o único debatido sobre a China na última etapa regional do XVII Congresso do DF ─ na realidade? Dessa vez posso discutir mais a fundo uma vez que aqui no DF temos acesso a relatoria do Congresso.

Foco naqueles acusados de serem Pro-China e etapistas, os que defendiam a tese “o vertiginoso avanço das contradições estruturais do Socialismo com características chinesas”. Segue um resumo dos argumentos utilizados: trata-se (a tese contrária) de uma disputa de visão do marxismo que diz respeito a autodeterminação dos povos chineses; que, ainda que seja importante ter visões críticas à China, a tese contrária apresenta uma visão intrusiva, que se lida diferente a NEP na URSS aos processos de abertura econômica que ocorreram na China; que se aponte o que é socialismo e qual fora a experiência socialista que aboliu a lei do mais-valor; as mudanças concretas na qualidade de vida do proletáriado chinês desde 2010; os bilionários expulsos do Partido, os bilionários sendo executados. 

Acredito que todas essas posições têm críticas válidas a serem feitas dentro de suas especifidades. Entretanto, o que se argumentou é que definir todos os processos históricos, políticos e estruturais na China como simplesmente avanços vertiginosos do capitalismo não condiz com o todo e pretendemos demonstrar melhor o porquê no decorrer do texto.

Essa tribuna é um apelo aes camaradas do resto do Brasil: travem uma encarniçada luta teórica na etapa nacional contra essas posições que, no limite, podem reproduzir etapismo! 

O trecho acima ainda é da tribuna de camarada Gabriel Xavier. Quem lê de longe até pensa que o maior problema do DF é essa hipotese de uma ala Pro-China expressiva. Quem derá fosse algo assim mesmo, temos problemas muito piores e que doem de verdade. Mas essa posição tão infundada na realidade se manifestou depois em um debate sobre como o Distrito Federal estava se tornando um caso particular onde uma ala ou outra não havia se formado a partir de um “debate público e aberto onde militantes de todo o Brasil vão gradualmente se alinhando mais a um grupo ou outro” mas de um jeito diferente. Isso é dito na tribuna 'Sobre os “debates centrais” - Espantalhos e limitações do congresso nacional: Pela manutenção da polêmica pública!' e argumentos parecidos são utilizados por dirigentes nacionais tratando do DF.

O que tiramos desta polêmica é que: a velha estrutura do PCB, a ala conservadora, o partido pré-racha-mais-recente, o modos operandi em forma de jargões (federalismo, basismo, localismo, etc.) para reproduzir seja opressões ou conservar o que está posto, ainda existe e o que vimos do congresso até aqui é um reflexo disso. 

Para defender este argumento e deixar claro que precisamos combater esses desvios porque se parecem com desvios antigos, cito este pequeno trecho do Manifesto em Defesa da Reconstrução Revolucionária:

Nesse período, como regra, o enraizamento em meio às ocupações urbanas e rurais e a ampliação do trabalho político nos bairros periféricos se deram pelo esforço e espírito de iniciativa das bases, em especial as mais jovens, e em contraste com a completa ausência de um planejamento geral das direções. A falta do compartilhamento das experiências de luta, na ausência de uma comunicação partidária pautada no fluxo intenso de informações, inviabilizava a socialização dos acúmulos e a unificação do trabalho sob métodos comuns, imprimindo a cada nova iniciativa um caráter amador, sem o benefício das lições já adquiridas em outros espaços. 

O texto acima se encontra no segmento que trata da atuação do PCB nas eleições burguesas, por vezes se aliando a canditados defensores de pautas empreendoras e da privatização de serviços públicos. O título é: Um marxismo vacilante e o ressurgimento do etapismo na tática. Abaixo dele, o autor demonstra como o trabalho real, tido como exemplar, veio de uma iniciativa das bases uma vez que as dirigências se mostravam incapazes de definir um plano tático a nível nacional e, não conseguindo, criticavam essa espontaneidade taxando aqueles que estavam fazendo algo de federalistas. Não coloco o DF sob a mesma escala de comparação com os trabalhos, por exemplo, como citado no texto, da Unidade Classista em Fortaleza, coloco como análise desse conservadorismo ativo.

A perspectiva de muitos sobre China e sobre o DF é a mesma que a ala conservadora do Partido abandonado tem. Uma de entender a contradição como algo em si, daí a preguiça ao taxar como pro-chinismo e federalismo. Se você define as coisas por termos consolidados no seu círculo de iluminados, você muito facilmente quebra o debate mais aprofundado sobre aquilo. Não se entende a correlação dos problemas estruturais. A memória, o movimento. Precisamos lembrar que muitos militantes e dirigentes com mais experiência foram formados com livros como O Partido com Paredes de Vidro de Alvaro Cunhal, um livro que fala sobre a moral comunista de maneira extremamente problemática. Direciono críticas a essa visão de forma mais abrangente em 4. Marxismo ocidental e marxismo oriental

Isto é parte de um problema exposto nesses últimos meses no Distrito Federal que fomentou os debates e a revida da eterna não-mudança demonstrada tão claramente pelas críticas sobre a ala conservadora presentes no Manifesto do ano passado. Temos que saber identificar isso todos os dias e a única maneira é pela memória e pela crítica bem direcionada; seja o que custar, o velho PCB tem problemas herdados por nós e precisam ser resolvidos na reconstrução revolucionária.

Mantemos essas angústias em nossas mentes. A de que só assim é possível quebrar o ciclo de nunca conseguir avançar, de se propor em um ano a fazer uma coisa e no outro estar propondo o mesmo da exata mesma forma ad infinitum.

1.2. A autodeterminação do povo chinês

Eu pergunto aos camaradas que defendem que denominemos o sistema econômico-político chinês de “socialismo com características chinesas” se são estes os valores socialistas fundamentais que eles acreditam: estado de direito, patriotismo, democracia e liberdade. Se eles me disserem que acreditam nessa bobagem liberal, peço que escrevam logo uma tribuna defendendo o “socialismo com características nórdicas” e o eurocomunismo, para podermos separar o joio do trigo dentro deste novo Partido em construção.

O trecho acima pertence a tribuna A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira (uma resposta aos camaradas Yuri Miyamoto e Ouriço Azul) de camarada L.Queen a qual citamos muito aqui.

Fica subentendido que, do mesmo jeito que o socialismo com características chinesas tem como basilar os princípios filosóficos e científicos do materialismo histórico e dialético (explico em 2. Socialismo com características chinesas), a formação econômica e social dos países nórdicos se dá a partir do marxismo-leninismo. Isso expressa a falta de teor teórico na análise do socialismo com características chinesas ou falta de compromisso com a autodeterminação da teoria desenvolvida e aplicada na China, pelo povo chinês, para suas condições específicas. 

Sem me estender no que explico neste subtópico, nem adiantar a eventual tentativa de definir o que é socialismo com características chinesas, para rebater essa visão equivocada, comum em forma de crítica quando apontamos que o povo chinês tem direito de sua autodeterminação; trago a seguinte citação da Resolução do Comitê Central do PCC sobre as Principais Realizações e Experiências Históricas do Partido ao longo do Século Passado, onde se explica melhor a sinização[2] do marxismo:

[...] Na luta revolucionária, os comunistas chineses, tendo como representante principal o camarada Mao Zedong, combinaram os princípios básicos do marxismo-leninismo com a realidade chinesa, fizeram sínteses teóricas sobre uma série de experiências originais acumuladas através da exploração árdua e do grande sacrifício, abriram o caminho revolucionário certo de cercar as cidades a partir do campo e de conquistar o poder estatal com força militar, assim como criaram o pensamento de Mao Zedong e deram uma direção correta para alcançar a vitória da Revolução da Nova Democracia. 

[...] Os comunistas chineses defenderam o socialismo com características chinesas diante dos rigorosos testes de complexas situações internas e externas e de frustrações severas experimentadas pelo socialismo no mundo, estabeleceram as metas de reforma e o quadro básico do sistema de economia de mercado socialista, e definiram o sistema econômico básico socialista caracterizado pelo papel predominante da propriedade pública e pelo desenvolvimento comum de outras formas de propriedades no estágio inicial do socialismo, e o sistema de distribuição caracterizado pela coexistência de múltiplos modelos de distribuição com o modelo de distribuição conforme o trabalho como o principal, de forma a alcançar novas perspectivas na reforma e abertura em todos os aspectos, impulsionar o novo grande projeto do desenvolvimento do Partido, e levar adiante com sucesso o socialismo chinês ao século XXI.

Existe um objetivo concreto que guia o Partido Comunista Chinês, este objetivo é reafirmado pelo povo chinês, em um caminho partindo do imediato para projeções futuras tendo como norte superar a fase primária do socialismo rumo a uma fase mais avançada; onde a propriedade pública é a base que sustenta outras formas de propriedades em conjunto com uma distribuição que visa em primeiro lugar o trabalho. 

O que acredito que tenha que ser feito por nós marxistas-leninistas é analisar do pressuposto que o povo chinês tem plena capacidade de formular sua teoria de acordo com as condições que estão colocadas. O que está descrito como projeto tem que ser analisado como tal ─ um projeto. Tendo suas bases teóricas, experiências, contradições tudo afim de traçar um balanço concreto. Desconsiderar por completo o socialismo com características chinesas é, também, desconsiderar a capacidade do povo chinês como formuladores de novas políticas e métodos cientificos do marxismo de acordo com sua realidade. Algo que não diz respeito à ortodoxia do método marxista nas análises dialéticas do mundo material para daí colocar a prática revolucionária em prova mas sim o oposto disso.

A defesa que fazemos aqui, sendo ela mais ou menos a mesma que foi utilizada no congresso no DF, por esses motivos, se tornou uma defesa pela tese “o vertiginoso avanço das contradições estruturais do Socialismo com características chinesas”. O que está sendo debatido não é que o que vem se construindo na China é um exemplo, o ideal perfeito do caminho a ser seguido para o socialismo ─ afinal isso não existe. É uma defesa à necessidade de entendermos as contradições de um Partido Comunista que guia sua nação adaptando o marxismo-leninismo. Ontem, hoje ou daqui a 40 anos. Seja quais erros este fato objetivo apresente a nós.

1.3. NEP, as reformas na China e experiências socialistas

Domenico Losurdo, em Fuga da História - A revolução Russa e a Revolução Chinesa vista de hoje, determina o processo de reformas e abertura na economia chinesa como parecido com a NEP que foi proposta e realizada na URSS. A linha de pensamento é no sentido que esse processo pode ser encarado como indispensável, por bem ou por mal, uma vez que na conjuntura era uma questão de vida ou morte do projeto socialista chinês.

[...] emergem na China “zonas econômicas especiais” francamente capitalistas. Por outro lado, qual seria a alternativa? Sobretudo depois da crise e da dissolução da URSS e do “campo socialista”, não é mais possível isolar-se do mercado mundial capitalista, salvo a condenar-se ao atraso e à impotência. Nas novas condições da economia e da política mundiais, o isolamento seria sinônimo de renúncia seja à modernidade, seja ao socialismo

O debate na última etapa congressual no Distrito Federal se segurou pouco nessa mesma deixa que faz Losurdo. Poderia levar a uma discussão para o lado de como uma ótica eurocentrada atua em deturpar a realidade ou, me utilizando do mesmo sentido com outras palavras, reproduzir a própria realidade imposta preservando com carinho o status-quo. Digo isso porque dependendo da linha política em questão, se defende a NEP pelos mesmos motivos que se critica as reformas chinesas. Não se percebe portanto como essa crítica desbalanceada mantém o debate inerte. E aí o exposto no congresso no DF foi, talvez, uma singela síntese disso, um destaque aos dois pesos, duas medidas.

Lenin direcionava aos “comunistas de esquerda” de sua época uma crítica similar ─ para a sorte dele não se tratavam dos mesmos comunistas de esquerda que lidamos hoje. Em Acerca do Infantilismo “de Esquerda” e do Espírito Pequeno-Burguês, 5 de maio de 1918 diz o seguinte:

Imagino a nobre indignação com que os “comunistas de esquerda” repudiará estas palavras e a “crítica demolidora” que dirigirá aos operários contra o “desvio bolchevique de direita”. Como? Na República Socialista Soviética a passagem ao capitalismo de Estado significaria um passo em frente?... Não será isto uma traição ao socialismo?

Traição ao socialismo, vulgarização do marxismo e outros jargões advindos de desvios de esquerda não são incomuns nesse tópico. Nem hoje sobre a China, Vietnã, Coreia Popular, Laos ou Cuba, nem na URSS sobre a NEP. Não quero enaltecer vitórias sem considerar possíveis críticas à NEP, às reformas chinesas após 1980 ou às reformas Đổi Moi' no Vietnã, etc., mas há uma linha a ser traçada; enxergamos o método não presos a um dogma inexorável mas à realidade em movimento. Erramos? Onde, por que? Como melhoramos? Que ganhos hão de ser destacados e que derrotas hão de ser superadas? Definir simplesmente como etapismo, desvio pequeno-burguês e vulgarização do marxismo torna o debate engessado num ideal marxiano materialmente impossível de alcançar, um exemplo de negação metafísica e liberal (desenvolvo em 3. Negação da Negação). 

Sobre isso e em contraponto a essa característica de negação, Losurdo também traz o seguinte argumento em seu outro livro O marxismo ocidental - Como nasceu, como morreu, como pode renascer:

[...] Veremos Mao declarar, em 1940, que a revolução que ele promoveu, antes de alcançar o socialismo, pretende “limpar o terreno para o desenvolvimento do capitalismo”, [...] Para o líder comunista chinês, o futuro pós-capitalista não é o “Outro absoluto” em relação ao regimento qual tomará o lugar; mais do que de uma negação total estamos na presença de uma espécie de Aufhebung (superação) hegeliana, de uma negação que comporta, ao mesmo tempo, a aceitação, embora no âmbito de um contexto radicalmente novo, da herança dos pontos altos daquilo que se nega. [...]

Compartilho da visão de Losurdo e de sua interpretação de Mao Zedong sobre os meios necessários para os fins. A superação do capitalismo tem a classe trabalhadora organizada, guiada pelo método materialista histórico e dialético, a teoria política marxista-leninista como ator e o mundo material já existente como palco de tudo que virá disso. É inocente acreditar que após a revolução nos fecharemos e começaremos do zero nosso novo mundo. 

Crítica do Programa de Gotha, na minha opinião, é muito mal usado nesse sentido. Quase como para socar a ponta da faca deslegitimizando experiências socialistas ─ sendo o soco o mais rasteiro desvio esquerdista e a faca o mundo material. Por exemplo, o que Marx entendia em sua época de período entre capitalismo e comunismo? Cito o livro mencionado aqui:

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

Mas o programa[3] é alheio tanto a esta última quanto ao futuro ordenamento estatal da sociedade comunista.

Elaborando sobre a descrição de “A base livre do Estado” presente no programa ao qual critica, Marx direciona sua analise a essa definição de “livre” quando tratando do Estado. Vai dizer que a liberdade vem de “converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela”, até chegar a citação acima. Seria segundo Marx, a transformação revolucionária ou processo de transição à sociedade comunista um ato de entender o mundo material ─ o Estado ─ e se utilizar dele ─ inclusive de sua classe derrotada ─ para seus objetivos, mesmo que esquerdistas apontem isso como revisionismos? 

Uma demonstração prática é descrita no XI Congresso do PCR(b), 27 de março-2 de abril de 1922, onde Lenin conta a seguinte anetoda:

Gostaria de citar uma passagem do livro de Alexandre Todórski [...] Há já muito que li este livro e não garanto que não cometerei erros a este respeito. Ele conta como começou a instalar duas fábricas soviéticas, como integrou no trabalho dois burgueses e o fez à maneira de então: sob a ameaça de os privar da liberdade e de lhes confiscar todos os bens. Foram incorporados na reconstrução das fábricas. Sabemos de que maneira se incorporava a burguesia em 1918 (risos), de modo que não vale a pena deter-me em pormenores a esse respeito: agora incorporamos com outros métodos. Mas eis a sua conclusão: Não basta vencer a burguesia, acabar com ela, isso é apenas metade do trabalho; é preciso obrigá-la a trabalhar para nós.

Estas são palavras notáveis. Palavras notáveis que mostram que mesmo na cidade de Vessegonsk, mesmo em 1918, havia uma compreensão justa das relações entre o proletariado vitorioso e a burguesia vencida.

As únicas críticas que tenho a Lenin aqui é que ele não conta toda a história do que faziam com os burgueses que se recusavam a cooperar e de estar cometendo vulgarizações do marxismo com atos jocosos!

Ainda assim, com essas duras críticas ao Calvo Soviético, de quê adianta ler Marx e Lenin extensivamente, decora-los até, se sua apreensão não se aplica à realidade. A mesma domesticação de burgueses nas fábricas de Vessegonsk que Lenin elogia acontece hoje no campo da disputa econômica e de classes em China e Vietnã. Mas e aí, meu bolchevique latino-americano, isso é correto, belo ou moral? Ou é simplesmente um fenômeno a ser estudado?

Sobre quando Gramsci analisa outro fenômeno ─ dessa vez mais específico às consequências da NEP na URSS ─ no qual o proletário, a classe dominante, se via em condições de vida inferiores à burguesia, classe dominada, Losurdo o cita da seguinte forma em Fuga da História - A revolução Russa e a Revolução Chinesa vista de hoje:

[...] porque o proletariado, da mesma forma como não pode conquistar o poder, também não pode mantê-lo se não for capaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos “interesses gerais e permanentes da classe”

De um ponto de vista meramente moral, é um absurdo que de imediato a ditadura proletária não resolva todas as mazelas de sua classe, quiça entregar à classe subjulgada, que outrora explorava sua mão de obra por lucro de forma tão injusta, uma condição de vida melhor àquela do seus irmãos. Começar do pressuposto que não seremos capazes de atender todas as necessidades de nossa classe imediatamente é um ponto de partida mais coerente ao método que aquele que se arma de citações vázias de Marx. É daí que se atinge a tática mais provável de sucesso para os nossos objetivos comuns, temos que saber exatamente o que está por vir no dia 2 da revolução.

2. Socialismo com características chinesas.

É possível argumentar que a China hoje não é um país socialista ou não cumpre para com todas as tarefas históricas de um país dito socialista por uma série de motivos no seu desenvolvimento e diante de uma análise pura e dogmática do que é socialismo. Esse debate, que pode estar preso em leituras sem movimento histórico real, pecam desconsiderando que tais taréfas históricas do socialismo são transitórias e suas características mudam de acordo com as necessidades de uma época específica. 

Entendendo essa temporalidade histórica nos desdobramentos da revolução chinesa, diferenças naturalmente surgirão entre ela e a revolução bolchevique ou entre a revolução albanesa, por exemplo. É o que há de se esperar. Sobre isso, camarada Stalin rebatia argumentos que deslegitimizavam o caráter revolucionário da revolução chinesa já em 1927 em Sobre o Problema da China:

Falemos agora das etapas da revolução chinesa. A oposição enredou-se até o ponto de agora negar a existência de qualquer etapa no desenvolvimento da revolução chinesa. Mas existe porventura alguma revolução sem etapas determinadas em seu desenvolvimento? [...] Quais são as etapas da revolução chinesa? A meu ver, têm de ser três: a primeira etapa é a da revolução da frente única nacional geral, o período de Cantão, quando a revolução dirigia seus golpes fundamentalmente contra o imperialismo estrangeiro, enquanto a burguesia nacional apoiava o movimento revolucionário; a segunda etapa é a da revolução democrático-burguesa, após a chegada das tropas nacionais ao rio Yang-Tse, quando a burguesia se afastou da revolução, enquanto o movimento agrário se desenvolveu até converter-se em poderosa revolução de dezenas de milhões de camponeses (a revolução chinesa encontra-se atualmente na segunda etapa de seu desenvolvimento) ; a terceira etapa é a da revolução soviética, à qual ainda não se chegou [...]

A partir daí, de 1927 adiante, o exército revolucionário lidava com as consequências de sua aliança com o Kuomintang que, após a morte de Sun Yan-sen, seria chefiado por Chiang Kai-chek, alguém muito interessado na dissolução da aliança com o Partido Comunista, algo que levaria o país a uma Segunda Guerra Civil. Esse foi um periodo bem conturbado na China em que a recente invasão nipônica pôs o Kuomintang a dividirem seu foco entre comunistas e japoneses até se realiarem novamente com os revolucionários para enfrentar o imperialismo nipônico. O período de guerra unificada contra o Japão demonstrou fraqueza dos nacionalistas frente aos comunistas e deu oportunidade para que o movimento revolucionário expandisse consideravelmente nas áreas conquistadas com programas que focavam nas massas. Após a rendição japonesa, os nacionalistas prontamente voltaram a sua campanha que levaria a então segunda guerra civil, onde felizmente, até 1949, iriam perder. Mesmo tendo 4.5 bilhões de dólares vindos dos tigres de papel estadunidenses. 

Essa revolução de 1949 seria “a revolução soviética” citada por Stalin como a terceira e última etapa no processo revolucionário. O que ocorre na então fundada República Popular da China nos anos seguintes são consequências de todo esse processo e do que havia sobrado para reconstruir um país desolado, com alta inflação, desemprego e forças produtivas atrasadas, quando sequer existiam forças produtivas funcionais. Dado este breve contexto histórico, iremos pular muito do que é conhecido como periodo maoista. O socialismo com características chinesas não era algo ainda, só vai ser após a morte de Mao e todos os problemas e as soluções que os chineses tiveram que elaborar.

Desta premissa, tentamos perguntar aos chineses o que é a China e usamos de referência principalmente o livro Marxism And Socialism With Chinese Characteristics de Jin Huiming. Adiantando a resposta, consideram a China, após todo esse periodo e hoje, algo como um estágio primário do socialismo onde o estado é chefiado por uma ditadura do proletariado em transição para um estágio superior desta fase primária. Entendemos que existam argumentos sobre a China ser ou não uma ditadura do proletariado após a morte de Mao. Visto o nível das discussões sobre isso e as emoções envolvidas, estamos aqui para atiçar o debate mais que necessariamente bater martelos sobre o que um povo do outro lado do mundo entende ou não sobre si mesmo. Ou seja, vai apagando essa thread emocionada meu camarada, todo mundo entendeu que você é o mais comunista daqui. Agora vamos tentar humildemente debater com mais qualidade, se possível.

O sistema de teorias do socialismo com características chinesas baseia-se na filosofia marxista, no materialismo dialético e histórico. Os pontos de vista filosóficos marxistas sobre a objetividade, a conexão, o desenvolvimento, a prática e as massas são as cosmovisões[4], pontos de vista e os métodos sempre seguidos no sistema de teorias do socialismo com características chinesas.

A fundação do sistema de teorias do socialismo com características chinesas compartilha caminhos com o desenvolvimento do marxismo ocidental. Essa fundação, no entanto, é moldada a partir de um realidade particular à China. Pouco antes nesse livro, é citado o seguinte trecho de A Ideologia Alemã que talvez ilumine melhor este ponto de partida:

Todos os sistemas que marcaram época têm como conteúdo real as necessidades da época em que surgiram. Cada um deles se baseia no conjunto do desenvolvimento antecedente de uma nação, no crescimento histórico de suas relações de classe com suas consequências políticas, morais, filosóficas e outras.

Imagino que todos que defendem a pureza ideológica do marxismo ocidental frente aqueles que o tentam “vulgariza-lo” concordam que a nossa base filosófica e ferramenta revolucionária de visão do mundo é o materialismo histórico e dialético. Não diferente são as bases filosóficas que, tendo as condições impostas à China, irão fundamentar o socialismo com características chinesas como ferramenta teórica e científica que objetivamente guie a China ao socialismo.

Nós entendementos, enquanto marxistas-leninistas, que a disputa pelas mentes é uma disputa que começa do momento que nascemos. É a partir da superestrutura de dominação permeada pelo modo de produção capitalista que estamos condicionados a nascer liberais e inconscientemente reproduzir esse sistema por meio da ideologia preestabelecida. Por meio de dogmas ou costumes, da consciência social, da linguagem. Não há o que se subestimar nessa estrutura imposta a nós e sua quebra passa por quebrar sua própria lógica de dominação. Como explica Deng Xiaoping em outro trecho citado no mesmo livro:

Quando se trata de emancipar as nossas mentes, usar as nossas cabeças, procurar a verdade a partir dos fatos e unirmo-nos no olhar para o futuro, a principal tarefa é emancipar as nossas mentes. Só então poderemos, guiados como deveríamos ser pelo Marxismo-Leninismo e pelo Pensamento de Mao Zedong, encontrar soluções corretas para problemas emergentes e herdados [...]

A partir dessa consideração, não há como atingir um ponto de encontro coerente para que toda uma classe quebre o ciclo de reprodução da dominação do modo de produção capitalista sem que haja um guia teórico baseado no marxismo-leninismo e, no caso da China, no Pensamento Mao Zedong. Esses desenvolvimentos passam por um crívo, este é a práxis dentro do materialismo histórico e dialético. Sendo assim, a prática é o critério para que um conjunto de bases filosóficas estejam equipadas para lidar com os problemas apresentados em determinados periodos e condições históricas, problemas estes que podem ser, por exemplo, a luta de classes e a violência necessária para que uma classe derrube a outra. 

Tratando acerca de duas descobertas de Marx irremediáveis para a análise objetiva do mundo que vivemos, o já citado materialismo histórico e a teoria do mais-valor, o autor do livro explica como tais aquisições teóricas revelam “a lei especial do movimento que rege o atual modo de produção capitalista e a sociedade burguesa que este modo de produção criou”. A conclusão que se pode ter é que é impossível superar o capitalismo sem que haja um entendimento profundo das leis que o perpetuam. 

Argumentar a partir do tanto você individualmente sabe do Capital é uma coisa, outra é aplicar essa teoria de maneira prática, das condições materiais de um determinado momento histórico e lugar. É isso que se procura resolver o socialismo com características chinesas, para a China.

Num sentido geral, não é a fase inicial[6], uma fase que todos os países atravessam no processo de construção do socialismo. Pelo contrário, é, num sentido particular, a fase específica pela qual a China deve necessariamente passar enquanto constrói o socialismo sob as condições de forças produtivas atrasadas e de uma economia mercantil subdesenvolvida.

A citação acima do livro que usamos de base, faz um excelente trabalho em especificar que o que é desenvolvido dentro do socialismo com características chinesas, ainda que perpasse por conceitos comuns ao marxismo ocidental, o dito não-vulgar, é uma teoria que independe do que é considerado ou não correto por pessoas individualmente. Independe de quais expectativas alguns camaradas tenham sobre o que está escrito no Capital e como aquilo deve ser seguido. O ferramental teórico do socialismo com características chinesas não se propõe a ser perfeito e universal mas sim uma solução mutável que esteja pronta para os desafios que o povo chinês vá enfrentar na construção de uma sociedade socialista, seja qual for o momento que isso vá acontecer. 

O Capital é um excelente guia para o entendimento das forças produtivas capitalistas e de sua lógica, tal qual tudo que Marx desenvolveu. No entanto, o que estamos argumentando enquanto tentamos explicar o que é socialismo com características chinesas é que, se utilizando de Marx, Engels, Lenin, O pensamento Mao Zedong, O pensamento Deng Xiaoping e O pensamento Xi Jinping, as bases filósoficas e científicas do socialismo com características chinesas são expostas a realidade e não simplesmente a discussões vázias do que Marx disse ou não disse. De quem é comunista de verdade ou não. E isso, para além de uma aplicação prática do que Marx e Engels elaboram do socialismo ciêntífico, é a única maneira possível de se fazer a construção socialista em um país: aplicando o método neste país de acordo com as condições deste país.

O objeto de estudo que efetivamente leva o início da formulação do que conhecemos hoje como a teoria científica do socialismo com características chinesas é um país de 900 milhões de pessoas, sendo 80% destes, camponeses, nos anos 80. Um dos países mais pobres do mundo que, segundo Deng Xiaoping, estava de 20 a 30 anos atrasado em suas forças produtivas.

O atraso das forças produtivas da China determina os seguintes aspectos das relações de produção: a socialização da produção [...] a economia mercantil e o mercado interno estão apenas começando a se desenvolver; a economia natural e a economia seminatural constituem uma proporção considerável do todo; e o sistema econômico socialista ainda não está maduro nem bem desenvolvido. No domínio da superestrutura, uma série de condições econômicas e culturais [...] estão longe de estar maduras; e as ideologias feudais e capitalistas decadentes e a força do hábito dos pequenos produtores ainda têm uma influência generalizada na sociedade e muitas vezes corrompem os quadros do Partido e os funcionários públicos. Tudo isto mostra que a China ainda tem um longo caminho a percorrer antes de poder avançar para além da fase primária do socialismo.

O que significaria adaptar-se de uma condição subdesenvolvida no cenário mundial para algo mais avançado no começo dos anos 80? Em que muito provavelmente, tivessem continuado atrasados, representariam hoje um país que poderia ser facilmente tomado pelo neoliberalismo como vimos no decorrer dos anos seguintes na maior parte do mundo. 

Adaptar-se a essas condições no caso dos chineses foi adaptar-se no campo do mercado. Diante disto, outros desafios certamente seriam apresentados. Da mesma forma que foi apresentado situações como os nepmans[7], a China teria que lidar com as contradições de sua época inevitáveis a partir de uma abertura e criação tão grande de mercados para que fosse desenvolvida as forças produtivas necessárias pro avanço de seu projeto socialista.

No final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980, a questão de como (re)criar a economia e os mercados tornou-se uma questão de reforma decisiva. [...] a criação gradual da reforma de via dupla da China se apoiou em parte sobre a experiência na criação de mercado pelos antigos revolucionários e autoridades locais[8] [...]

O trecho acima é do livro Como a China escapou da terapia de choque de Isabella Weber. A autora argumenta que a “A Economia de Guerra” foi uma tática aplicada pelos nacionalistas na luta contra os japoneses e contra si mesmos, na inflação e má gestão das relações entre campo e cidade em meio a guerra. Ainda que com uma série de esforços como criação de uma moeda duas vezes, dos anos 1937 à 1940, essas condições de atraso no campo econômico foram um dos pregos no caixão do regime fascista. Os revolucionários, em comparação, desenvolveram um tipo de “Economia de Guerra” baseada em “unificação do trabalho sobre dinheiro, comércio e produção como uma campanha consolidada”. Essa investida levou a estabilização do regime socialista diante dos esforços de guerra na campanha contra o Japão, consequentemente, um passo adiante para a vitória revolucionária. Isabella Weber traz no livro que Chen Yun foi um importante protagonista dessa “Economia de Guerra” e que hoje é mais conhecido pelas reformas na China do final dos anos 70 e começo dos anos 80. Essas são as reformas que nos referimos quando falamos sobre as reformas na China. Mais ainda, as contribuições de Chen Yun começam no seu extenso entendimento da economia como expressão da luta revolucionária, no livro em que usamos existe a seguinte citação de Chen Yun que é algo a se levar para vida e expressa o pragmatismo necessário em condições extremas: “Somente se pudermos resolver o problema da alimentação e do vestuário para as massas poderemos nos tornar líderes das massas. Assim, um empresário revolucionário é um revolucionário absoluto.

Vejo muito desta filosofia pragmática por extenso nos caminhos tomados na história pelo povo chinês nos seus últimos anos desde as reformas e o que diz respeito a fundação teórica do socialismo com características chinesas. Chen Yun foi apenas um dos nomes responsáveis pela disputa que ocorreu no final dos anos 70 e começo dos anos 80 na China, foi um crítico as reformas mas um crítico no sentido bom da coisa. Da disputa pelo positivo. Em Obras Selecionadas de Chen Yun Volume 3 [disponível em https://archive.org/details/selected-works-volume-3/page/48/mode/1up] ele argumenta o porquê de algumas dessa políticas que discutimos.

Antes da conversão de empresas privadas em empresas mistas Estado-privadas por todo o comércio, permitimos que as empresas privadas obtivessem lucros [...] Após a conversão, o resgate assumiu a forma de pagamento de uma taxa fixa de juros aos capitalistas nacionais. [...]

Por que adotamos tal política? Há quatro razões. 

1. Esta política contribuirá para a reabilitação da economia nacional. A maioria das empresas capitalistas dedicava-se à indústria leve na produção de bens de necessidades básicas; Se tivermos itens manufaturados adequados para o uso diário para trocar por produtos agrícolas com camponeses, a aliança operária camponesa será fortalecida; [...]

2. É necessário e é do interesse do Estado e do povo pagar aos capitalistas nacionais um juro anual fixo de 5 por cento sobre o seu capital total avaliado durante um período de tempo após a conversão das empresas capitalistas industriais e comerciais em empresas conjuntas. Os estatais-privados.

Os capitalistas nacionais passaram no teste da luta contra os imperialistas e os reacionários do Kuomintang e não se opuseram à reforma agrária. Eles juntaram-se aos nossos esforços na guerra para resistir à agressão dos EUA e ajudar a Coreia e na reabilitação econômica. Passaram no teste da transformação socialista, ou seja, da conversão de empresas capitalistas industriais e comerciais em empresas conjuntas estatais e privadas, numa base de comércio a comércio, em Janeiro passado. [...]

3. A maioria dos capitalistas e os seus representantes possuem tecnologia de produção e conhecimentos de gestão. [...]

4. Estamos a construir o socialismo numa vasta nação de 600 milhões de pessoas, o que exige que trabalhemos de forma correta e prudente.

[...] Qualquer erro neste trabalho levará ao caos na transformação socialista. [...] A transformação cooperativa da agricultura e do artesanato e a transformação socialista das empresas industriais e comerciais capitalistas são uma luta extremamente complicada e acirrada que envolve todo o povo chinês. 

[...] As quatro razões mencionadas acima mostram que a política de redenção é benéfica para o Estado, para o povo e também para a classe trabalhadora. [...]

Para Chen Yun, os capitalistas serviram seu propósito na revolução chinesa mas não por inteiro para com o projeto socialista chinês. Era necessário uma visão muito clara de como fosse feito isso, mas que fosse feita a revitalização das zonas especiais capitalistas e da relação para com o povo daqueles que foram “permitidos” de lucrar porque, caso o contrário, existia uma chance muito grande de nada daquilo sequer durar muito tempo.

É fácil cair em uma falsa equivalência tratando das reformas chinesas, como se a utilização do mercado significasse apenas uma coisa: burguesia no poder. Muitas vezes, em debates e abstrações de conceitos, se dá a entender que foi simplesmente uma contrarrevolução. Um assalto ao projeto, chefiado por uma classe burguesa dominante quando, na verdade, como é extensivamente documentado no livro que cito de Isabella Weber, existiram nomes muito avançados nos estudos marxistas na China em frente dos debates e elaborações de políticas que a colocariam onde ela se encontraria após as reformas

Em Economia Socialista da China por Xue Muqiao [disponível em: https://archive.org/details/ChinasSocialistEconomy1986/page/n25/mode/2up] o economista chinês define o estágio o qual os chineses se encontravam em 1980 como algo ainda imaturo e imperfeito, mesmo que a China tivesse se tornado um país socialista com a socialização da agricultura (onde estavam os camponeses, representando mais de 80% da população do país) e dá indústria capitalista ela ainda tinha “um longo caminho a percorrer antes de atingir a primeira fase do comunismo prevista por Marx na sua Crítica ao Programa de Gotha.”. O autor então desenvolve a seguinte reflexão:

Hoje ainda existem mais de dois milhões de fazendas privadas nos Estados Unidos, uma indicação de que mesmo nos países capitalistas altamente desenvolvidos a situação após a vitória da revolução socialista será muito mais complicada do que o descrito nas passagens sobre a primeira fase do comunismo na Crítica do Programa de Gotha. A China costumava ser um país dominado por pequenos produtores que conduziam uma produção parcialmente autossuficiente através do trabalho manual. Para desenvolver a economia socialista da China, devemos ter em consideração este contexto e combinar habilmente o princípio com a flexibilidade, em vez de aderir dogmaticamente às conclusões de Marx, Engels, Lenin e Stalin; copiar mecanicamente os seus modelos levaria a uma ossificação da economia socialista da China. 

Naquela época é possível ver com clareza como o que foi levado em conta nos debates não tratava-se só de uma questão da pureza ou não da teoria marxista mas acima de tudo de sua práxis, em todos os campos e em defesa fortemente à continuidade do projeto socialista. Não importa o quanto se é discutido sobre o caráter reformista, sobre vulgarizações do marxismo, abandonos do projeto socialista, etc, perder é perder. Isso serve tanto para Xue Muqiao, Chen Yun e vários outros nomes referências das reformas como para o povo chinês. É uma questão sobre ter ou não comida e o que vestir no dia seguinte.

Os avanços fundamentais descritos em Marxism and Socialism with Chinese Characteristics na criação de um determinado nível de economia privada se dão na aliança que ocorrera dessas formas de propriedade com as formas públicas, na força condutiva da produção exercida pela propriedade privada, da criação dos mercados, empregos e, muito curiosamente destacado, satisfação do povo. Não temos que considerar os avanços qualitativos para a classe trabalhadora quando tratando de tais reformas? 

Afinal na China, o povo chinês saiu de um Estado semi-feudal, com sérios problemas no campo para um Estado que eliminou a pobreza extrema em 2020. Em termos de crescimento econômico no país cito dados “jabbourianos” colocados por Elias Jabbour e Alberto Gabriele em China O socialismo do século XXI:

O crescimento econômico chinês de 1980 a 2019 foi excepcional: a média de crescimento do PIB real nesse período foi de 9,2% a.a. Há mais de quatro décadas, o país cresce acima da média internacional, de forma quase ininterrupta (Gráfico 1). Por mais de 35 anos, a taxa média de crescimento do PIB per capita na China alcançou a média de 9% a.a. A renda per capita (por Paridade de Poder de Compra) passou de apenas US$ 250,00 em 1980 para US$ 8.827,00 em 2018, isto é, cresceu 36 vezes! Esse processo foi acompanhado de uma elevada taxa de investimento, com média de 36,9% do PIB entre 1982 e 2011 e acima de 40% a partir de 2004. [...] 

A tarefa de explicar o socialismo com características chinesas é difícil por si só e se torna mais difícil quando a recepção a esse debate é tão acalorada. O que tentamos fazer no decorrer deste segmento foi pincelar o que estudiosos do tema explicam a respeito dos primórdios da criação do socialismo com características chinesas, ainda existe um vácuo no que diz respeito a China de Xi Jinping mas este caso irá ficar para outro momento.

Nos capítulos seguintes queremos tentar procurar o porquê de tamanha aversão a possibilidade de existirem autores, teóricos ou formuladores dentro do marxismo-leninismo longe do ocidente, em países do Sul Global, com consideráveis avanços recentes.

3. Negação da negação

Na obra escrita por Lenin de 1914, de título Karl Marx, é explicado a evolução da consciência social impulsinada por Marx e Engels apoiados em Hegel. Aqui existe um início crucial para que nos apoiemos nas nossas análises do mundo, o conceito de negação da negação:

[...] É um desenvolvimento que parece repetir etapas já percorridas, mas sob outra forma, numa base mais elevada (“negação da negação”); um desenvolvimento por assim dizer em espiral, e não em linha reta; um desenvolvimento por saltos, por catástrofes, por revoluções; “soluções de continuidade”; transformações da quantidade em qualidade; impulsos internos do desenvolvimento, provocados pela contradição, pelo choque de forças e tendências distintas agindo sobre determinado corpo, no quadro de um determinado fenômeno ou no seio de uma determinada sociedade; interdependência e ligação estreita, indissolúvel, de todos os aspectos de cada fenômeno (com a particularidade de que a história faz constantemente aparecer novos aspectos), ligação que mostra um processo único universal do movimento, regido por leis; tais são certos traços da dialética, dessa doutrina do desenvolvimento mais rica de conteúdo do que a doutrina usual.

Existe uma tendência ao erro quando paramos nossa análise na contradição. Esse ato é, acima de tudo, incompatível com o método de análise materialista histórico e dialético. Para chegarmos o mais próximo possível da verdade — e nossa posição enquanto atores na mudança do mundo nos impõe que o façamos — precisamos, de acordo com o nosso método, saber diferenciar uma negação no sentido liberal ou metafísico de uma negação dialética. 

A negação liberal seria aquela que acaba em si mesma, quando o indivíduo se depara com ela, apenas a internaliza e sua analise termina, tudo em si só, de uma vez. A negação dialética seria o ponto de partida, a faísca de uma continuidade de outras negações, apresentando contradições entre si de forma que só assim, e entendendo que assim as coisas são, se chegue a uma análise mais robusta e próxima da verdade.

Tendo isso posto, e em contraponto à forma que trazemos explicações sobre o que é socialismo com características chinesas, adentraremos em mais reflexões sobre o que se pode tirar disso.

Temos aqui uma série de confusões e confissões liberais por parte do teórico chinês. Vejamos, o “camarada” Wu diz em seu texto que a produção socialista “não pode satisfazer às crescentes necessidades dos trabalhadores”, repetindo um mito liberal e anticomunista. Por esse motivo a produção capitalista existe na China, para contrabalancear a pouca produtividade da produção socialista.

No decorrer de toda a tribuna A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira (uma resposta aos camaradas Yuri Miyamoto e Ouriço Azul) existe um crítica à tese de existir um socialismo na China. Acontece que, em momentos como esse, ao fazê-lo acaba se caracterizando a analise de uma contradição objetiva na fala do teórico chinês como confissões liberais

Queremos trazer algumas dessas ditas “confissões liberais” de Wu Xuangong para serem análisadas:

Pelo fato de passar pelo processo de reforma e abertura, em nosso país formou-se uma estrutura social onde as relações de produção socialistas e capitalistas existem ao mesmo tempo. [...]

É bem claro que essas citações não se tratam de um atestado feito pelo teórico sobre como funciona o socialismo na China ─ muito menos o que é socialismo com características chinesas. O que ele explica é o seguinte: a China passou por um processo de reforma e abertura. Na China começa a acontecer formações de modos de produção capitalistas. Dessa forma os modos ou relações de produção socialistas, de caráter socialista ou orientados por um regime socialista que já existiam na China passam a coexistir com modos de produção capitalistas. Isso é o que está descrito no primeiro bloco de citação. Agora, o segundo.

O objetivo da produção social no socialismo é atender as crescentes necessidades materiais e culturais dos trabalhadores; sua contradição principal é que o desenvolvimento da produção não pode satisfazer às crescentes necessidades dos trabalhadores. No capitalismo, o objetivo da produção social é buscar o máximo de mais-valia; sua contradição principal se manifesta como uma contradição entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, a contradição entre a produção organizada no interior da empresa e a situação onde a produção social é cega, a contradição da capacidade relativamente insuficiente de se pagar o desenvolvimento da produção. [...]

No segundo bloco de citação o teórico afirma que: a principal contradição, para Wu Xuangong, na lógica de produção social dentro do socialismo ─ voltemos a reiterar que essa lógica de produção social e objetivo de produção estão se referindo as forças produtivas que foram organizadas imediatamente após a revolução chinesa ─, o desenvolvimento da produção não pode satisfazer as crescentes necessidades do trabalhador e que a contradição no modo de produção capitalista é, resumidamente, a busca cega pelo mais-valor em todas as relações de produção. 

O ponto aqui parece ser apresentar didaticamente as contradições dos objetivos do modo de produção capitalista e os dos modos de produção orientados por um regime socialista que passam a coexistir na China pós reformas e abertura. Ou seja, uma vez que materialmente existem diferentes objetivos conflitantes entre si nas forças produtivas do recém aberto estado Chinês, que contradições à realidade objetiva dessa condição são nos apresentadas? De nada parece ser uma confissão liberal ou definição do que é o socialismo na China. A única relação entre essas coisas é: ele é chinês, ele é um “doutrinador” do Partido Comunista Chinês e ele está na China falando sobre a China de sua época.

O que há de liberal em olhar para realidade na sua frente e descrever como ela é? Para mim, é muito mais um sintoma de liberalismo não ser capaz de correlacionar duas coisas distintas. De chegar a algo e não conseguir relacionar com o resto do mundo a partir do materialismo histórico e dialético. Isso é uma forma clara de negação que termina em si mesma e não se desenvolve aponto de apresentar uma análise satisfatória da realidade — no caso, uma análise simplesmente do que o texto diz.

Além disso, as duas relações de produção e as suas leis econômicas coexistem em nossa sociedade e inevitavelmente influenciam-se. [...]

No terceiro bloco de citação, o professor do departamento de economia da Universidade de Xiamen aponta que, quando existem duas leis e relações de produção ─ uma vez que as leis e objetivos nessas forças produtivas que existiam na China socialista após a Revolução Chinesa passam a coexistir com os modos de produção capitalistas após as reformas e aberturas ─ as leis de ambos vão inevitavelmente se influenciar. Há algo aqui que aponta uma confissão liberal? Improvável, é a descrição da realidade.

Da mesma forma, as leis do capitalismo têm um enorme impacto sobre a economia pública socialista, principalmente interferindo no funcionamento normal das leis econômicas socialistas. Devido à pressão competitiva da economia capitalista, as empresas estatais também devem lutar por mais acumulação. Por isso, não podem aumentar os salários e os benefícios, nem podem assumir mais responsabilidades sociais e realizar os objetivos de produção socialista. [...]

Por fim, no último bloco, ele elabora ainda mais sobre a influência que as leis do modo de produção capitalista passam a inferir nos modos de produção e seus respectivos objetivos sociais orientados por um regime socialista.

Agora vamos analisar como a autoria desta tribuna interpreta essas citações depois de trazer o que é dito por Wu Xuangong acusando-o de fazer confissões liberais:

[...] o que Wu chama de produção socialista? Fica claro que “economia pública socialista” para ele é, em última instância, sinônimo de “economia Estatal. [...]”.

Wu não elabora em nada aqui que dê a entender isso, na verdade tudo parece muito mais uma explicação simples do que acontece na China após a abertura. Segue outras reflexões de camarada L.Queen sobre as falas de Wu:

Wu diz que a economia estatal chinesa não funciona completamente tal qual uma economia estatal socialista deveria funcionar, ou seja, promovendo a “redução dos danos ao desenvolvimento coordenado da produção social pelo impulso privado que visa ao lucro” e desempenhando “um papel de liderança na inovação tecnológica, no ajuste estrutural social e econômico e na proteção ecológica e ambiental” (isso tomando sua própria definição do que seria uma economia estatal socialista, que ainda é rebaixada e burguesa).

De fato, Wu deixa claro que a economia estatal chinesa não funciona tal qual uma economia estatal socialista. A questão é que, na tribuna, camarada L.Queen assume que isso significa atestar o que é uma economia estatal socialista como um todo. A contradição na negação moral, quase performática, que busca encontrar por entre palavras de um único indivíduo explicações conclusivas em contraponto à uma negação dialética é essa. A tendência de chegar a conclusões equivocadas que se provam erradas.

O estado chinês está tomado por relações de produção antagônicas que coexistem. Isso não é belo ou feio, é simplesmente a realidade. Até camarada L.Queen percebeu isso, mesmo que tenha se perdido nos seus argumentos morais e má interpretação de texto:

Ou seja, até mesmo aquilo que Wu define como sendo o lado “socialista” da produção econômica chinesa está terrivelmente tomado por relações burguesas de produção.

Abaixo desse trecho, se desenvolvem outras considerações sobre pontos que Wu Xuangong explica mais a fundo as dinâmicas que ocorrem quando modos de produção com objetivos distintos coexistem após reformas como as que a China sofreu e, pasmem, há uma interpretação disso como uma lição de moral sobre o que é correto ou errado e é dito que “Se um trecho desses não coloca um comunista de cabelos em pé, eu sinto dizer que este “comunista” não se trata de um comunista de fato”─ novamente expondo o caráter moral da crítica. Nessa interpretação equivocada, as falas de Wu Xuangong tratam-se de um manual de como o socialismo com características chinesas funciona e não como uma descrição de fatos e contradições que simplesmente existem.

Além disso, ele admite que a economia estatal passou a agir tal qual a economia privada, buscando lucros e acúmulo de capitais, pois era objetivo do Partido tornar as empresas chinesas em “agentes do mercado”. Fica evidente, em todo este trecho, que a preocupação do Partido Comunista Chinês é, na verdade, mercantilizar as relações de produção na China (e no mundo).

A China está mercantilizando relações de produção na China e no mundo? Sim. Esse julgamento moral a partir de uma única pessoa ─ Wu Xuangong ─ explicando o funcionamento das relações de produção do seu país está correto e descreve o que ele próprio diz? De forma alguma. O que acontece em todos os parágrafos que camarada desenvolve seus argumentos é uma má vontade completa e falta de interpretação de texto para expor pontos que podem até ser válidos mas simplesmente não condizem com o que é dito nas citações e na realidade.

E piora mais ainda. Não iremos analisar todo o trecho em que camarada L.Queen fala sobre o livro A Governança da China de Xi Jinping mas apenas partes que renderam boas gargalhadas pela tamanha falta de compromisso.

É fundamental ainda ressaltar que nos três volumes de “A Governança da China” o termo “classe trabalhadora” aparece muito pouco, geralmente usado de modo ufanista e demagógico, muito distante de uma análise de classes marxista, enquanto “mercado” é citado inúmeras vezes, sempre na perspectiva de crescimento melhoria e expansão, como se fosse algo positivo. [...]

Segundo o que está sendo confessado, camarada L.Queen deu um Ctrl+F nos três volumes de A Governança da China procurando as palavras “classe trabalhadora” e “mercado”. Chegou a conclusão que Xi Jinping usa poucas vezes “classe trabalhadora” e inúmeras vezes “mercado”. Que, nas vezes que ele usa “classe trabalhadora”, usa de modo ufanista e demagógico ─ seja lá o que isso quer dizer ─ e nas inúmeras vezes que ele usa “mercado” é como se fosse algo positivo. Se isso já não fosse o suficiente para provar tamanha falta de comprossimo, camarada L.Queen decide se utilizar de outra analogia para chegar a outra conclusão que não diz absolutamente nada:

[...] a única conclusão possível de se tirar ao ler seus textos é que o pensamento Xi Jinping é mais próximo de um social chauvinismo do que de fato de um marxismo-leninismo. A isso se soma a definição feita no artigo “Trabalho Duro Torna Sonhos Realidade” (um título bem sugestivo) de que “os valores socialistas fundamentais são prosperidade, democracia, civilidade, harmonialiberdade, igualdade, justiça, o estado de direito [rule of law], patriotismo, dedicação, integridade e amizade”. Nesta coletânea também é dita, em diversos momentos, a respeito do “sonho chinês”, um sonho de prosperidade comum para o “povo”, uma ideologia muito similar à ideologia sonho americano em muitos aspectos: trabalho duro recompensa, crescimento econômico, harmonia entre classes, patriotismo chauvinista, etc.

Se camarada L.Queen tivesse por acaso utilizado seu método heterodoxo de pesquisa do Ctrl+F nas palavras prosperidade, democracia, civilidade, harmonia, liberdade, igualdade, justiça, o estado de direito, patriotismo, dedicação, integridade e amizade nas constituições de outros países que não China e Estados Unidos, quantas vezes dá pra deduzir que se encontraria essas palavras? Talvez o pensamento Xi Jinping e esse social chauvinismo estejam, nesse sentido, muito próximos no campo ideológico da constituição brasileira. Talvez existam muito mais países que possam ser comparados diretamente com os Estados Unidos seguindo essa lógica. 

Veja que partindo desse método perdemos toda a capacidade de análise, podemos concluir tanto que a China é social chauvinista como vários outros países são. Isso está longe de ser um método materialista histórico e dialético.  

Xi Jinping falar em A Governança da China em diversos momentos, a respeito do “sonho chinês”, um sonho de prosperidade comum para o “povo” [...]” já é suficiente para que essa ideologia como um todo seja comparável diretamente com o patriotismo chauvinista e a ideologia do sonho americano. Fica cristalino como o camarada Yuri Miyamoto foi assertivo em sua tribuna 'China: um socialismo imperialista?' ao pontuar que “Se seguimos o marxismo-leninismo e acreditamos que ele é a ciência do proletariado, é uma contradição aprovar nossas teses baseando-nos apenas na aparência das coisas” porque descreve com exatidão o que a camarada L.Queen faz no decorrer de toda sua tribuna. 

Nesse julgamento foi esquecido uma série de outras características tradicionais norte americanas como matar pessoas do Sul Global sob o pretexto de afirmar sua superioridade da nação, cultura ou raça. Tudo isso se torna um ponto secundário. O ponto principal é: compartilhar de palavras. O critério da verdade deixa de ser a prática e se torna o discurso.

E antes fosse apenas um caso isolado de falha ao aplicar o materialismo histórico e dialético nas análises. A triste realidade é que muitos em nossas fileiras fazem o mesmo e são condecorados por críticas em abstrato — isto é, críticas sem propostas concretas — ou alinhamento sobre a posição da China. Fugimos da busca prática pela síntese e avanço, nos rendemos somente às aparências.

4. Marxismo ocidental e marxismo oriental?

Camarada L.Queen cita Jones Manoel da seguinte forma:

[...] (como querem dizer alguns que defendem o caráter socialista da China, como o camarada Jones Manoel)

Já que o revolucionário mais braçudo do Brasil foi convocado para a festa do revisionismo jabbouriano contra sua vontade, quero levantar reflexões de seu excelente texto Marxismo ocidental, fetiche pela derrota e a cultura cristã para rebatermos uma visão reducionista e eurocêntrica.

Na tribuna, L.Queen argumenta a favor da tese que o confucionismo seria incompatível com o marxismo. No trecho abaixo vemos que se é utilizado, por exemplo, a divisão violenta de classes administrativas públicas que aconteceu na Revolução Cultural para que seja traçado uma possível relação disso, tudo, tendo como base o texto “O Confucionismo é compatível com o marxismo?”:

Poderíamos ainda argumentar que esta é uma visão fundamentada no confucionismo, mas não pretendo aqui me alongar nisso. Recomendo a quem quiser compreender melhor a questão do confucionismo que leia o artigo “O Confucionismo é compatível com o marxismo?” do marxista chinês Hao Guisheng[8] (a resposta curta à pergunta do título, dada pelo próprio camarada, é que não, o confucionismo não é compatível com o marxismo) [...]

Essa analogia desconsidera o caráter da luta de classes dentro dessa disputa. Não voltarei a me estender como já o fiz sobre negação metafísica mas que fique claro minha impressão: isto é mais negação metafísica. Acreditar que tais problemas são frutos de uma formação cultural que tem em sua origem o confucionismo, antes mesmo dos antagonismos de classe, são sintomas mal tratados de liberalismo. Segue-se utilizando do mesmo texto base da seguinte forma:

A crítica à posição confucionista do “socialismo” com características chinesas é também um ponto importante para o camarada Hao, que argumenta que a filosofia de Confúcio existiu justamente para legitimar as castas e relações feudais de poder e produção. Assim, não me parece incoerente que um movimento que tenha surgido da “teoria da linhagem de sangue” se apegue tanto ao confucionismo.

A seguir cito também uma pequena parte do próprio texto utilizado por L.Queen para discutir esta questão:

Durante o reinado do Imperador Wu da Dinastia Han, Dong Zhongshu propôs a ideia de “abolir as cem escolas de pensamento e venerar exclusivamente o confucionismo” [3]. A partir de então, o confucionismo tornou-se o sistema doutrinário dominante na sociedade feudal chinesa, [...]

Algo recorrente, ao longo da tribuna que criticamos, é traçar ligações entre coisas e chegar a conclusões que não podiam estar mais erradas. O perigo, nesse ponto, é que essas conclusões começam a caminhar em uma linha tênue entre má interpretação e racismo. Comparando uma situação específica na Revolução Cultural com toda uma infinidade de processos históricos e culturais na China, camarada L.Queen falta com compromisso, qualquer resquício de honestidade e respeito para com o povo chinês.

Para elaborar melhor em cima disso, citamos Jones Manoel no seu texto Marxismo ocidental, fetiche pela derrota e a cultura cristã que diz o seguinte:

[...] a gente sempre destaca o papel da religiosidade na influência desses movimentos políticos e na própria adaptação nacional desse marxismo. Então todo pesquisador marxista sério, quando vai estudar o marxismo chinês, por exemplo, ele tem que tratar necessariamente da influência confuciana, da filosofia de Confúcio, na cultura chinesa de maneira mais geral e no próprio marxismo chinês

Nesse ponto tanto camarada L.Queen, quanto Jones Manoel e nós, concordamos que, para ter uma visão geral do marxismo chinês ou de seus conceitos teóricos contemporâneos como o socialismo com características chinesas, deve ser estudado o confucionismo. 

Note, isso é uma questão objetiva. Como se é utilizado desse estudo sobre o confucionismo é algo diferente. O que camarada L.Queen faz é culpar um problema real à formação social do povo chinês sem considerar a luta de classes e se utiliza disso para declarar que o confucionismo é incompatível com o socialismo.

No trecho que citamos de 'O confucionismo é compatível com o marxismo?', vemos que o confucionismo foi uma arma utilizada por uma classe ─ protagonizada pela dinastia Han ─ para ser o sistema doutrinário dominante na sociedade feudal chinesa. É desonesto dizer, uma vez que uma determinada filosofia foi utilizada por uma classe para doutrinar outra no sistema feudal, que essa filosofia é incompatível com qualquer outro sistema que não o feudal.

Tal como o marxismo oriental é influenciado pelo confucionismo, o marxismo ocidental é fortemente influenciado pelo cristianismo. Por que então não deslegitimizar igualmente todo o marxismo ocidental uma vez que ele está corroído por dentro pela ideologia cristã? Talvez isso seja um susto para muitos defensores da pureza da ideologia marxista ocidental de maneira acritica e dogmática. Jones Manoel desenvolve isso da seguinte forma:

Quando é para falar do marxismo da política no ocidente, porém, não se considera, via de regra, a influência do cristianismo na constituição do universo simbólico, subjetivo e teórico desse marxismo. É como se, na Ásia, o confucionismo tivesse influência na política, na África o islamismo tivesse influência na política. No Brasil, nos Estados Unidos, na França, em Portugal, o cristianismo não tem esse papel formador da subjetividade histórica. E isso está equivocado por uma razão bem simples e objetiva, como muito bem destaca Antônio Gramsci em várias passagens dos Cadernos do Cárcere: a Igreja Católica é a instituição mais duradoura de toda a história do ocidente.

Já se perguntaram por que a culpa cristã ou projeções dela compartilham semelhanças com atitudes de seus camaradas? Por que a autocrítica remete muitas vezes com vergonha e penitência? Meu queridíssimo camarada Harpia Dourada, um dos mais brabos que temos aí, desenvolve isso de forma exemplar em sua tribuna 'Sobre crítica e autocrítica no Partido de Lenin'. 

Muito interessante também é ver, bem aponta Domenico Losurdo em Marxismo Ocidental - Como nasceu, como morreu, como pode renascer, que Lukács se autocritica pelo:

“utopismo messiânico”, pelo “sectarismo messiânico” e pelas “perspectivas messiânicas” presentes em História e consciência de classe, pela tendência a representar o pós-capitalismo como algo que comporta “em todos os campos uma ruptura total com todas as instituições e as formas de vida derivadas do mundo burguês”.

Para além da penitência, a visão messiânica presentes na nossa sociedade cristã nos leva a acreditar que o socialismo é a solução para todos os problemas e quando este socialismo não efetivamente resolve tudo é porque não foi socialismo de verdade. Torna-se assim uma busca pelo messias, o verdadeiro representante, seja como ideologia, partido, ser, responsáveis pela emancipação de toda a classe proletaria do mundo de uma vez por todas. Esse desvio é tido por Lukács, talvez, pela horrenda e dura condição a qual tivesse que amadurecer e lidar melhor antes de chegar no acerto: ele nasceu na Europa.

Enfim, concomitante à reprodução das contradições do confucionismo no seio da sociedade chinesa está posto da mesma forma o cristianismo para com a sociedade ocidental e toda a cadeia de influência que exerce. Ainda assim, dado o argumento da incompatibilidade da base filosófica e ética de Confúcio com o socialismo, seria o cristianismo, por exemplo, incompatível com o capitalismo?

Mateus 19:23-25 NVI

Então, Jesus disse aos seus discípulos: ─ Em verdade lhes digo que é difícil a um rico entrar no reino dos céus. E digo ainda que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.

Nesse trecho da Bíblia é fácil dizer que de nada tem relação a acumulação primitiva do capital e aqueles que exploram o mais-valor alheio com o cristianismo. E essa afirmação estaria certamente errada, vide a influência do cristianismo e da instituição da Igreja Católica com o modo de produção capitalista e a eventual fascistização de uma sociedade, como no caso da Itália.

Em 1929, foi assinado o Tratado da Santa Sé ou Tratado de Latrão que tinha como proposta reconhecimento “total da soberania da Santa Sé no Estado do Vaticano; a predominância da religião católica no Estado italiano; convenção financeira acordando a liquidação definitiva das reivindicações da Santa Sé por suas perdas territoriais e de propriedade.”[9]. Esse acordo é uma mera expressão do atual estado das coisas no processo fascista na Itália que agora dispunha ao Vaticano um confortável lugar de poder no aparato de dominação do Estado. Sobre esse tratado, Gramsci diz o seguinte em Cartas do Cárcere (Antologia):

Nasce assim o Estado da Cidade do Vaticano e declara-se obrigatório nas escolas o estudo da religião católica. Assim, mesmo apesar de a ditadura fascista condenar oficialmente o pluralismo de valores próprio de uma sociedade liberal e dizer combater a “luta de classes, a concordata representava mais uma vez o triunfo histórico da burguesia italiana e a rendição do Estado frente à Igreja Católica, que conseguia o monopólio do ensino e um subsídio estatal milionário.

Perceba então como o argumento de que “a filosofia de Confúcio existiu justamente para legitimar as castas e relações feudais de poder e produção.” deixa de fazer sentido quando se atendo só a aparência de seus escritos que tocam em temas como “a natureza imutável da hierarquia e da ordem social [...] “o rei deve agir como rei, o ministro como ministro, o pai como pai e o filho como filho”

Não é porque o cristianismo tem na Bíblia que ricos não são as pessoas mais legais que existem que a Igreja Católica deixava de ser fascista na Itália. Para falar de confucionismo, chineses, povos do Sul Global se tem uma postura, para falar de cristianismo e Norte Global outra. O que é isto?

Cito as palavras de Frei Betto que recentemente vi serem feitas na sua participação no Kritikê Podcast onde ele diz algo nas linhas de “Eu aprendi que o Marxismo não é uma religião assim como o cristianismo não é uma doutrina de análise da realidade. Mas há muitos marxistas que consideram o marxismo uma religião e ninguém pode ter duas religiões.”. Ou seja, a conclusão que o confucionismo não é compatível com o marxismo tende a demonstrar como alguns tratam marxismo como religião. E, de fato, se marxismo é uma religião, não pode ser compatível com outras religiões porque não se pode ter duas religiões. Não se segue dois profetas, ou segue Marx ou segue Confúcio.

4.1. O cristianismo primitivo ou o outro lado da moeda

Muito recentemente, do momento que escrevo isto, o PCB-CC de Piracicaba veio a divulgar duas pré-candidaturas evangélicas. Este fato gerou um série de debates sobre como comunistas podem se inserir em movimentos de massas, incluindo entre evangélicos. A atitude de alguns em nossos grupos de comunicação e redes sociais foi de deboche. Eu mesmo, a priori de uma análise mais aprofundada, julguei como algo debochado. Só após outras reflexões, que meus camaradas trouxeram, pude enxergar o outro lado disso e me gerou perguntas como: o deboche não devia ser feito a nós pelo fato de não estarmos conseguindo nos inserir onde o PCB-CC está?

Essa adição sobre o cristianismo ─ nesta já longa tribuna ─ tem como proposta analisar os paralelos levantados acima numa perspectiva mais cristã. Entretanto, não na moral cristã metafísica e sim firmado em uma base materialista. É possível cristãos serem materialistas? Minha maior referência nesse quesito é Engels em seu livro Contribuições Para a História do Cristianismo Primitivo. Sigo neste segmento citando-o:

[...] E, assim como todos os elementos que o processo de dissolução do antigo mundo havia liberado fluíram, para o partido operário de todos os países, ou que não tinham mais esperança no mundo oficial ou que haviam sido “queimados”, como os adversários da vacinação, os vegetarianos, os antivivisseccionistas, os defensores da medicina alternativa, os pregadores de congregações dissidentes cujos seguidores haviam se dispersado, os autores de novas teorias sobre a origem do mundo, os inventores fracassados ou infelizes, as vítimas de privilégios reais ou imaginários, os honestos tolos e os desonestos impostores – o mesmo ocorreu com os cristãos. [...]

Fomos condenados a um mundo conflitante para aqueles que perderam e vem perdendo, que não se pode imprimir tão facilmente sua concretude em uma foto estática que nos dê oportunidade de analisa-lo com calma; vou acabar dando um passo maior do que consigo mas, lendo as reflexões de Engels ─ e particularmente me propondo a errar mais que acertar normalmente ─, tendo a encarar a comparação entre os primórdios do cristianismo e do movimento operário como algo válido e necessário para a nossa construção revolucionária. No núcleo da coisa, ambos movimentos souberam entender na esfera política as angústias de um povo e estavam postos como antagônicos no sistema vigente ─ como algo que vinha dos dissidentes de dentro. A visão de mundo e o método separa fundamentalmente o marxismo de qualquer religião, só não separa como estes se dão historicamente em suas influências políticas na sociedade, e aí reside o local do qual faço essas perguntas apoiado em Engels. Por que estamos tão prontamente alinhados em encarar o marxismo como incompatível com o cristianismo? Mais acima tentei explicar como o marxismo ocidental, querendo ou não, é influenciado pelo cristianismo-mais-recente da Europa; talvez devemos nos aproveitar disso, armados do materialismo histórico e dialético para instrumentalizar essa condição como é bem apontado na tribuna 'A revolução brasileira será evangélica, ou não será' de Filipe Bezerra.

Não podemos nos permitir idealizar demais os aspectos de nosso movimento de massas. Muitos camaradas sabem com clareza o que não querem; não querem que não seja ateu, não querem que seja revisionista, não querem que não seja marxista-leninista, não querem que não seja perfeito. Nada disso importa:

[...] todo movimento de massas é, no início, necessariamente confuso; confuso porque todo pensamento de massas se move, primeiramente, em contradições, porque carece de clareza e coerência; confuso, também, precisamente devido ao papel desempenhado pelos profetas nos primórdios. Essa confusão se manifesta na formação de numerosas seitas que lutam umas contra as outras com pelo menos tanta intensidade quanto o inimigo comum externo. Isso aconteceu no Cristianismo primitivo; isso também aconteceu no início do movimento socialista [...]

Dá pra dizer que a história constantemente se repete pelo menos na luta de classes, do Império e daqueles que o derrubam. Na antiguidade os deuses tomavam para si a responsabilidade da história, hoje, na modernidade, e estando na periferia do sistema podemos cada um individualmente comemorar nossa liberdade diante da vontade divina mas não sem antes lamentar a prisão criada do homem para o homem. 

O início do movimento socialista, tal como o cristianismo, estava propondo liberdade dessas opressões mundanas imediatas; quebrando os grilhões do Capital, pro socialismo, e os do Império Romano, pro cristianismo. As tarefas socialistas de libertação exigem que se lide na materialidade, a prova disso é o sucesso nas tantas revoluções socialistas do século XX direcionando as massas a sua violenta e desafiadora emancipação na luta contra a classe dominante. O cristianismo, por sua vez, apresentou essa libertação primeiro na visão metafísica, no reino dos céus que viria só após a morte mas com o tempo foi gradualmente propondo trazer o reino dos céus à terra ainda em viva após os servos de deus derrubarem a tal besta de sete cabeças, de sete imperadores; o Império Romano.

Para Engels, era necessário no cristianismo “a esperança de uma recompensa no além [...] para elevar o abandono do mundo e o ascetismo estoico-filoniano a um princípio ético fundamental de uma nova religião universal capaz de atrair as massas oprimidas [...]” para torna-se revolucionário em sua época. Uma vez que na antiguidade ocidental, na grécia e Roma, existia uma conexão maior pela vida no real e pela materialidade; algo que foi incapaz de se defender da investida pelo cristianismo no seio das massas oprimidas. Para os oprimidos era menos palpável e mais doloroso aceitar a realidade pelo o que ela é. A ideologia metafísica cristã mudaria a consciência pelas entranhas da sociedade romana, iria enfraquecer o elo que reproduzia a superestrura daquele modo de produção até, eventualmente, atingir a estabilidade do sistema. 

Entendo como essa narrativa quase lúdica dos fatos pode gerar inconsistências históricas se analisada literalmente, para não correr esse risco quero revisar agora no final o que entendo da potencialidade revolucionária desse cristianismo primitivo que Engels estuda: nesse livro é explicado que o cristianismo foi instrumentalizado pelos velhos profetas de sua época para propagandiar a queda do império romano como uma chegada do apocalípse e outras previsões, por entre analogias misteriosas, orquestrando as opressões presentes nas massas a fim da quebra da reprodução do sistema dominante.

[...] ao lado do sacrifício expiatório do cordeiro, a iminente volta de Cristo e a iminência do reino milenar constituem o conteúdo essencial; e o que as manifesta é a propaganda ativa, a luta incessante contra o inimigo de dentro e de fora, a audaciosa confissão das suas convicções revolucionárias diante dos juízes pagãos, o martírio corajosamente suportado na certeza da vitória [...]

O ponto que possa demorar amadurecer nos nossos debates talvez seja a visão da potencialidade da religião em cristalizar as angústias do povo. Quando Marx denomina a religião como ópio do povo, não o faz como se fosse algo corrompedor e inerentemente ruim, o faz caracterizando o fenômeno como um “suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma sociedade sem espírito.” e cabe a nós direcionarmos o ódio do oprimido, cristão ou não, para a emancipação de sua classe, da metafísica sem perspectiva de mudança para o materialismo revolucionário. Isso diz respeito à atitude revolucionária enxergando nosso país, o segundo mais cristão no mundo, de dentro. 

5. Esquerdismo Radical

Utilizar-se do termo “comunismo de esquerda”, como tem sido feito recentemente, nos fez lembrar de alguns pontos gerais que Lenin fala em Esquerdismo: doença infantil do comunismo, vamos a esses pontos:

1. Esquerdismo como uma tendência radicalizada que vai além das condições reais e imediatas, e acaba mirando em demandas utópicas e extremas, por se concentrar em questões secundárias. O costume é em: não aderir nem saber elaborar ou adaptar as condições e questões reais para debates, tarefas, organização e consequentemente não conseguir progredir.  

Há uma repetição desse funcionamento extremo e focado em questões secundárias que não tem objetivo, de certa forma, ou não prioriza objetivos relevantes no ativismo, dando margem a ciclos intermináveis de embates que não colaboram em nada com o avanço ─ sem encaminhamento elaborado e política, por exemplo. Se gasta tempo, muito tempo desse jeito.

2. Considero esse um ponto de marcar em vermelho, porque o homem (Lenin) enfatiza a importância de uma abordagem flexível e tática ─ !!!!!!! ─ para traçar e alcançar os objetivos definidos, reconhecendo os contextos e nuances diferentes que exigem movimentações diferentes.

Definindo objetivos, prioridades e as possibilidades avaliadas em cada contexto, o vício essencial em questões secundárias vem a ser substituído por uma atuação verdadeiramente relevante e direcionada que pode, inclusive, ser revisada de tempos em tempos e apresentar progressos palpáveis.

3. A rejeição parcial ou completa à participação nos processos políticos existentes na organização e a defesa de ações diretas e revolta espontânea como única forma de ação revolucionária válida ─ me parece que debate em rede social, fofoca, ataque pessoal, escolher-o-lado-que-concorda-comigo-em-absoluto é uma tática válida, podem confirmar?

Fora as considerações de exaustão mental de militantes, investe-se tempo demais com falácias, ataques coordenados e descabidos e pouquíssimo tempo em direcionamentos, elaborações realistas e ação prática e unificada, o que segue colaborando no cansaço geral e adiciona, constantemente, a repetição desse ciclo de involução.

Esses pontos me chamam atenção por previsões do que tem acontecido e como quem rachou ao centro ou à direita tem agido (ou reagido, erroneamente) e como se constrói esse lado ‘mais-a-esquerda’ no pós-racha. 

Me é evidente que atualmente temos um lado à direita com desvios à esquerda (liberal!) que segue levantando teorias mirabolantes e glorificando filósofos europeus e uma realidade inventada. Corrigindo: realidade eurocentrada – aqui, chamo atenção ao que Frantz Fanon contextualiza da Europa em Os condenados da terra, pg. 97-98 em tradução livre:

De maneira muito concreta, a Europa encheu-se desmedidamente com o ouro e as matérias-primas dos países coloniais: América Latina[10], China, África. De todos esses continentes, diante dos quais a Europa de hoje ergue sua torre admirável e magnífica, há séculos partem os diamantes e o petróleo, a seda e o algodão, as madeiras e os produtos exóticos. A Europa é, literalmente, a criadora do Terceiro Mundo. As riquezas que a mantém são as que foram roubadas dos povos ‘subdesenvolvidos[11].

[...] deve existir uma tomada de consciência dos colonizados de que as potências capitalistas lhes devem e de que efetivamente têm de pagar. Se por falta de inteligência — não falemos de ingratidão — os países capitalistas se negaram a pagar, então a dialética implacável do seu próprio sistema se encarrega de os asfixiar."

Vamos nos sujeitar a seguir mastigando os europeus e sua confabulação, seguir repetindo falhas já conhecidas ou vamos nos aproximar da realidade ‘subdesenvolvida’ de estar e ser parte do Sul Global[12], conhecendo (ou reconhecendo) as nuances dessa relação entre colonizados e colonizadores e então partir para a ação?

Em detrimento de um racha-ao-centro (ou liberal, como preferir) que vê toda situação com isenção ou mediação comedidas e desnecessárias. A narrativa parece: “já que vamos ficar “à esquerda” e a galera simpática desse lado levanta umas coisas sobre racismo, sobre equidade social, homofobia e transfobia, educação de qualidade, destruição do capitalismo, jornada de trabalho reduzida, etc... Vamos levantar essa bandeira”, me pergunto de que serve levantar bandeiras e não buscar referências operacionais e se aprofundar mais no contexto brasileiro diante disso? Nada!

Colocando assim parece irônico, mas o argumento se volta a um “Vamos manter a referência colonial e lutar contra o imperialismo!”.

Ou seja, segue optando pela máxima “do jeito que está dá pra adaptar” e se munindo de teorização que não leva à prática materialista e, portanto, não progride. Não passa disso: teorização liberal e canalhice.

Encerramos aqui observações críticas do que foi dito em Amadeo Bordiga, Centralismo Orgânico e a nossa Reconstrução Revolucionária' (gatasovietica e João Vitor Benites).

Ao mesmo tempo, não conseguimos entender qual o objetivo final de “introduzir” um conceito chulo como “comunista de esquerda” e se agarrar a um idealista falido que sofria de trotskismo. Pensa-se muito, fala-se mais ainda, mas e aí? Qual a conclusão? Qual a materialização dessa falação desmedida? A mesma coisa vale para como tem sido feito no tópico China.

6. Educação, Conscientização Política e a Realidade

Inicio minha reflexão sobre o que os comunistas propõem: definir o sul global, situar e contextualizar essa esquerda objetiva e a prática e, quem sabe, compreender o comunismo-de-esquerda e centralismo-orgânico como conceitos passíveis de materialidade revolucionária.

Então, o que é esse sul global? Quem são, onde vivem, o que comem esses animais?

O termo “sul global” é utilizado para descrever um conjunto de países e regiões que geralmente são identificados por terem economias em desenvolvimento, enfrentam desafios socioeconômicos, políticos e ambientais e, muitas vezes, são historicamente dominados pela colonização. Esses países e regiões estão principalmente na América Latina, África e Ásia.

É lógico que não existe uma organização ou direcionamento. Não é fácil reunir taticamente quem não sabe, não consegue ou não quer pensar além dos princípios teóricos.

E aí, vamos seguir com o reconhecimento de Marx, Lenin e Engels como precursores, mas nos valer do senso crítico para, em suma, utilizar o marxismo como guia da ação revolucionária. Não como um dogma, como um guia para a ação revolucionária. 

Não é uma verdade eterna e acabada, mas uma verdade viva e que se renova constantemente e em conformidade com a realidade material. A abordagem flexível não é de todo separada do ensinamento fundamental do marxismo, é uma necessidade vital que resulta na transição para a revolução socialista. Uma ortodoxia do método e o critério de seu uso na aplicação dentro da realidade material de um periodo histórico e lugar específico.

Considere aqui a pontuação de Engels em Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico:

(...) Para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo. E, como a verdade absoluta não está sujeita a condições de espaço e de tempo nem ao desenvolvimento histórico da humanidade, só o acaso pode decidir quando e onde essa descoberta se revelará.

Acrescente-se a isso que a verdade absoluta, a razão e a justiça variam com os fundadores de cada escola; e como o caráter específico da verdade absoluta, da razão e da justiça está condicionado, por sua vez, em cada um deles, pela inteligência pessoal, condições de vida, estado de cultura e disciplina mental, resulta que nesse conflito de verdades absolutas a única solução é que elas vão acomodando-se umas às outras. (...) uma mistura extraordinariamente variada e cheia de nuances, compostas de desabafos críticos, princípios econômicos e as imagens sociais do futuro (...) mistura tanto mais fácil de compor quanto os ingredientes individuais iam perdendo, na torrente da discussão, os seus contornos sutis e agudos, como as pedras limadas pela corrente de um rio. Para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade.

Engels critica essa abordagem utópica do socialismo, onde diferentes vertentes consideram suas ideias como a verdade absoluta ao mesmo tempo que defendem muito intimamente a razão e a justiça de condições de vida, cultura e mentalidade bastante específicas. Essa abordagem ignora as condições materiais e propõe nada mais que conflitos de “verdades absolutas” com uma misturinha complexa de críticas, princípios e visões do futuro que desgastam e corroem, apenas isso. E propõe ainda abandonar as abordagens utópicas e idealistas em favor de uma análise objetiva das condições sociais, econômicas e históricas. Somente ao compreender essas realidades concretas e trabalhar dentro delas, o socialismo pode se tornar uma força efetiva de transformação social. Reconhecendo que o socialismo só pode se tornar uma ciência ao ser baseado na realidade concreta.

Com o marxismo como guia – não verdade absoluta - partimos desde a consideração do sul global e o reconhecimento da realidade material de país colonizado e suas matizes. O “apreender o marxismo-leninismo” onde e como ele foi elaborado, dentro dos parâmetros de sua criação e desenvolvimento, precisa ficar para trás e existir um ajuste para a atualidade. 

Jamais devemos esquecer que a ciência filosófica é feita para ser questionada e acrescida ao longo do tempo, ser revisada e revisitada periodicamente, melhor elaborada com os fatos presentes e os erros diferentes, não para funcionar como uma verdade absoluta e definitiva. 

Para quem consegue basear toda uma atuação em teorias e seguir buscando referências lá nos colonizadores e mantendo-se distante daquilo que se materializa diariamente, além de ter o tempo suficiente e necessário para isso, meus parabéns. Acredito ser muito cansativo.

Como essa prática é realizada? Em que momento se pauta a necessidade de uma abordagem que considere as características únicas da região em que se nasceu, conhece, mora e atua? Não estamos nem falando do Brasil como um todo e sim a região em que você nasceu ou mora. A região administrativa, o bairro, a rua mesmo.

Buscar mais teóricos europeus, experiências e conceitos italianos, portugueses e franceses já são pontos de partida questionáveis para analisar o Brasil. Nós temos que ter um critério um pouco mais alto na hora de formular nosso ferramental teórico de análise deste país. Porque assim perpetua-se o comportamento histórico de render-se àquele que se julga superior, ainda que valorize sua capacidade crítica. 

O essencial é que haja essa “pequena” inclusão da história colonial do sul global, a sua economia dependente e lutas de classes específicas (herança da colonização) no debate, para concretizar uma direção e conseguir estabelecer objetivos gradativamente.

José Carlos Mariátegui é um exemplo de contraponto à visão exclusivamente eurocentrada do marxismo, com sua ideia de formar um partido com frente composta por trabalhadores e intelectuais comprometidos com a transformação socialista da América Latina, no contexto da própria América Latina. Pois bem... Esse partido seria responsável por liderar a luta revolucionária e organizar as massas populares em direção aos objetivos socialistas.

Importante essa proposta de trabalhadores na frente, na vanguarda ou na base, como preferir. Em desvantagem, se pensarmos que o movimento jovem tem o costume de compor e incentivar quem não está necessariamente inserido no contexto CLT, por exemplo, para ter o tempo disponível para atuar nas questões secundárias de redes sociais - utilizem o xwitter para dizer o quanto estou errada. E ainda mais inconveniente que as condições dessa classe sejam constantemente debatidas fora do esquadro, pouco alinhado à realidade do sul global e as nuances de estar e ser parte dessa massa.

É também valioso termos intelectuais, estudiosos e professores dedicados a propor novas táticas, novas práticas, formações e mais ainda: cientes das possibilidades de quem os acompanha - prezando por encaminhamentos assertivos, por exemplo. E aí entra o outro ponto: a importância da educação e da conscientização política na preparação de uma consciência de classe entre os trabalhadores e nas massas – definidas aqui como trabalhadores do campo, informais, e todos aqueles que movem a máquina, além de estudantes propriamente.

A educação é uma ferramenta crucial para capacitar as pessoas a entenderem e se envolverem na luta, parte dessa educação é reconhecer, se aproximar e pautar sua atuação no que há de concreto ─ e isso inclui Marx, Engels e Lenin sim, mas não somente ─ e próximo da sua realidade, levando em consideração as dores e as delícias desse cenário específico ─ trabalhadores, professores e estudantes no Brasil, pra começar.

Por que é importante termos o contexto histórico do sul global? Porque é aqui que fazemos e é o que conhecemos. E se não for conhecido, segue o que pode ser relevante de elucidar nesse sentido inicialmente:

1. Como colonizados, o anti-imperialismo se apresenta essencialmente como a oposição à exploração econômica, dominação política e cultural por parte dos países ocidentais e das potências coloniais. Muitos países do sul global enfrentaram o colonialismo e o neocolonialismo e os tais comunistas frequentemente se envolvem na luta pela soberania nacional e pela autodeterminação dos povos ─ e olha que surpresa:  

2. Reconhecer a importância das culturas e tradições indígenas e negras dada a diversidade étnica e racial na formação da identidade latino-brasileira é essencial para o direcionamento e encaminhamento do socialismo e, em última instância, o funcionamento comunista social. Por isso a importância de se situar mundialmente e inserir o combate ao racismo, a discriminação étnica e outras formas de opressão baseadas na identidade – inclusive em formas capacitistas, LGBTQIAfobicas e mais.  

3. Ainda com essas considerações em mente, vamos adicionar a defesa de políticas que garantam acesso igualitário a serviços básicos como saúde, educação, moradia e emprego. Essa é uma defesa que precisa considerar o quê? Isso mesmo, o cenário e vivências brasileiras e os teóricos sul globalistas – que se aproximam teoricamente de uma prática organizacional direcionada e efetiva.

Baseado nisso e mais, que ainda não será totalmente elaborado nesse escrito, gostaria de inserir o conceito de “socialismo indo-americano”, que se apresenta como a possibilidade de adaptação criativa das ideias socialistas, marxistas ou marxistas-leninistas à realidade específica da América Latina, levando em conta suas tradições culturais, estruturas sociais e desafios históricos.

E aí a gente evolui para a hegemonia cultural ─ como reconhecimento histórico e contextual, o papel das superestruturas13 na reprodução da dominação de classe e, ad infinitum: a necessidade de uma estratégia revolucionária específica para a América Latina e, mais ainda, para o Brasil. E como começar a pensar nesse sentido?

13Superestrutura refere-se à instituições, ideias e formas de cultura que surgem a partir das relações de produção em uma sociedade. Isso inclui sistemas políticos, religiões, filosofias, leis, arte, mídia e outros aspectos da vida social e cultural. Em termos gerais, a superestrutura reflete e serve para sustentar a estrutura econômica vigente.

Valorizo as observações da seguinte forma:

1. A revolução socialista precisa ser reconhecida como parte de um movimento global pela emancipação humana. Não existe o comunismo sem a etapa socialista. 

2. A classe trabalhadora como a força motriz de dita revolução socialista. Logo, quais as formas de alcançar, conscientizar e organizar essa força?  

Aqui cito Murica e Prs em Procissão (https://www.youtube.com/watch?v=mKhAk-cfwfA):

Pena que só na utopia da nação confortável (...) é difícil, pra nois num é impossível, pois nem por essas nem por outras que deixamos por isso.

Ser Brasil é incrível, inteligência criativa… Outro nível! ‘Magina’ com educação, incentivo (...). Tranquilo.

Pensar no futuro me deixa apreensivo (...) Tanque de guerra movido a querer mais combustível (...) 

Eu vivi tudo isso, mas não saí de cima. 

Pra cima dos que acha que pra cima de nós é possível. 

Pode comer farinha, pode comer pesquisa. A gente não se entende, eu sou periferia.

3. É necessário partir de uma análise do capitalismo do sul global como uma forma específica de capitalismo dependente, caracterizado pela exploração econômica, atraso industrial e subordinação aos interesses estrangeiros (jamais esquecer que o sul global é formado de países e regiões colonizadas, dependentes e restritas, não compartilhamos da realidade histórica e cultural portuguesa, italiana, francesa e outras branquesas).  

7. Luta Revolucionária

Nessa conceitualização, nos vemos no caminho de formar uma estratégia revolucionária que combine a luta de massas, educação social e política sul globalizada e focada (reconhecimento histórico e contextual), a mobilização política a partir da base e a ação direta.

Essa mobilização se reflete em forma de participação em processos democráticos e institucionais como por exemplo a RECITA - Rede Cidadã de Taguatinga, coletivo que visa preservar as praças e parques e reconectar os moradores e comunidades da RA e vizinhanças, citada pela camarada Pardan em “O partido comunista construindo ‘associações dos moradores”

Citando o camarada e grande professor Jones Manoel ─ a quem considero detentor de extenso material que elucida constantemente sobre o contexto brasileiro ─  em sua publicação intitulada A República de Palmares e a disputa pelos rumos da nacionalidade brasileira no Opera Mundi em agosto de 2023: 

É preciso começar dizendo o óbvio para desenvolver esse pensamento: a ideologia dominante tende a mostrar o processo histórico como uma marcha inequívoca para o que é. É como se a história fosse uma linha reta do passado ao presente, um caminho sem curvas, uma necessidade que se materializou em realidade. A história, contudo, é formada por um acúmulo de lutas e processos, em que várias alternativas são derrotadas pelo caminho.

Fica cada vez mais evidente que a organização deveria prezar por pautas e concepções que dessem sentido à mudanças táticas em espaços públicos ─ como praças e parques, em escolas e bibliotecas, e avançar para demandas de transporte, saúde, segurança ─ conforme a participação nesses processos democráticos e institucionais se tornar constante, planificado, ordenado e passível de revalidação periódica.

Para concluir, apresentamos o conceito de autonomia nacional como os divos socialistas Mariátegui e Salvador Allende pautam: a soberania dos países latino-americanos contra a interferência estrangeira passa por entender o quanto a história pesa no presente e, consequentemente, no futuro. Aqui utilizamos a ideia com a interferência italiana, francesa, portuguesa, burguesa e colonizadora.

Não há encaminhamento se não há flexibilidade na abordagem ─ em especial considerando cenários reais, tática direcionada a sanar as dores identificadas de forma estruturada, utilizar-se de ferramentas teóricas e práticas que facilitem o processo e considere os ganhos por períodos determinados, até que seja necessário uma revisão ─ será que segue funcionando? Foi identificado um problema x, atuamos diante desse problema? E agora, quais são as consequências dessa mudança? O que é necessário seguir e o que pode melhorar?

Entendo, nessa linha, que reconhecer e entender o panorama do sul global e a realidade brasileira seja a principal diferença entre solidariedade internacional e lambe-lambe internacional. 

A solidariedade entre os movimentos socialistas, progressistas e comunistas ao redor do mundo, pautada na importância de colaborar com outros países em luta contra o imperialismo e em prol da construção de uma ordem mundial mais justa e igualitária, aqui se entende uma união de objetivos e valores.

Outra, completamente diferente, é a valorização do internacional que afasta a realidade e repete a prática utopista que é como liberais de direita vêem os ditos comunistas e suas elaborações ─ tudo é na ideia, é abstrato, é uma enorme conversa de bar cheia de nomes, termos, teorias, livros e leituras, de convencimento e debate que não tem contato com o que, como e onde quer operar de fato e com sua base.

Além do mais, Mariátegui via a luta pela independência nacional como parte integrante da luta socialista, enquanto Allende buscava uma política externa independente e uma economia soberana para o Chile ─ independentes política, teórica e economicamente de colonizadores, em comum.

Tem gente demais preocupada com gringos (sic), com repercussões no xwitter e com discordar de outros camaradas e uma parcela bem menor ocupada com tentar começar a trilhar uma revolução do jeito que, basicamente, os citados aqui ensinam ─ estude, conheça, analise, tente, refaça, adapte, revalide, reconheça, se situe e não esqueça pra quem você está fazendo isso.

Nas palavras de Salvador Allende em seu discurso no La Moneda em 1973, escritas aqui em recorte: “Minhas palavras não tem amargura, mas decepção. (...) A história é nossa e fazem-a os povos. [...] Dirijo-me a juventude, aqueles que cantaram e deram a sua alegria e seu espírito de luta; porque em nosso país o fascismo está a tempos presente, destruindo, frente ao silêncio daqueles que tinham a obrigação de agir.”

Invista seu tempo em produzir e se utilizar da realidade e se livrar das garras da abstração mental, o fascismo está a tempos presente e não podemos nos dá o direito de relaxarmos em debates idealistas irrelevantes.

8. Conclusão

Ouriço Azul: Não esperava que minha tribuna fosse doer em pessoas que não estão no DF. Não esperava que uma tribuna, que o ponto central não é a China, fosse ser respondida tratando como se eu estivesse tão claramente defendendo a tese de que a China é socialista. Mas que bom que isso aconteceu. Apesar de tudo, considero as críticas sobre a relação Brasil-China de camarada L.Queen válidas, considero que críticas sobre as relações de vendas de armas da China para países que assassinam comunistas, não citadas por exemplo, mais válidas ainda. Tenho críticas eu mesmo sobre a maneira que tocaram a Revolução Cultural, se serve de argumento para a minha real intenção nesse debate. Mas a que custo?

Desejo tudo de bom ao camarada Yuri Miyamoto e elogio sua atitute louvável de botar a cara num debate tão intankável, se discorda de algo a seu respeito que falamos no texto peço perdão adiantado.

Até a próxima.

Lhama Roxa: Camaradas, é essencial que pensemos a frente e além, que comecemos a nos entender enquanto comunistas no nosso contexto histórico e que o trabalho seja feito e refeito dentro dessa materialidade. O excesso não tem como ajudar.

Desejo que a gente consiga ser marxista-leninista pra além da teoria.


[1] Ouriço Azul.

[2] Ao descrever o processo de simbiose histórica, é importante destacar, como importante ponto de partida, a exigência inicial de Mao de adaptar o Marxismo-Leninismo à realidade chinesa concreta. O termo “Sinicização” do marxismo foi cunhado pela primeira vez em 1938, quando por ocasião da reedição das “Obras Seleccionadas de Mao Zedong”, ele mudou a frase original “concreção do marxismo na China” para esta formulação.[La sinización del marxismo, las ciencias sociales y la cuestión del modelo propio.

[3] o programa de gotha.

[4] Traduzi viewpoints nesse trecho para cosmovisões5 porque vejo que usam viewpoints repetidas vezes e para coisas diferentes no decorrer do livro que foi traduzido do Mandarim para o Inglês.

[5] Entende-se assim cosmovisão como ponto de vista, ou perspectiva, ponto de partida da análise que determina a direção do pensamento a partir da qual os problemas são considerados. Salvo meu possível engano sobre esse termo e a maneira que escolhi traduzir.

[6] A fase de desenvolvimento do socialismo com características chinesas.

[7] Burgueses que tinha condições de vida melhores que os proletariados sob a ditadura do proletariado na URSS logo após a NEP.

[8] Como fica mais claro mais a frente no texto, trata-se dos nacionalistas. Salvo o engano na tradução, esse trecho foi tirado da página 71 do livro em inglês.

[9] disponível em https://operamundi.uol.com.br/historia/hoje-na-historia-1929-assinatura-do-tratado-de-latrao-cria-o-estado-do-vaticano

[10] América Latina formada por: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

[11] Vale ressaltar que esse termo reforça uma ideia de superioridade colonizadora, visto que é propositalmente cunhado como forma de classificar a inferioridade desses em comparação com aqueles.

[12] Conjunto de países e regiões do hemisfério sul que podem ser caracterizados como ‘subdesenvolvido’ ou  ‘em desenvolvimento’ e tem em comum sofrer as sequelas da colonização.


Referências.

https://emdefesadocomunismo.com.br/a-delegacao-do-distrito-federal-como-transformar-marx-em-um-liberal-mediocre/

https://emdefesadocomunismo.com.br/a-vulgarizacao-do-marxismo-a-china-e-a-estrategia-da-revolucao-brasileira-uma-resposta-aos-camaradas-yuri-miyamoto-e-ourico-azul/

https://emdefesadocomunismo.com.br/manifesto-em-defesa-da-reconstrucao-revolucionaria-do-pcb/

https://emdefesadocomunismo.com.br/a-questao-da-saude-mental-na-organizacao-marxista/

https://emdefesadocomunismo.com.br/sobre-critica-e-autocritica-no-partido-de-lenin/

Domenico Losurdo - Fuga da História?

Marxism and Socialism with Chinese Characteristics https://archive.org/details/marxism-and-socialism-with-chinese-characteristics/page/153/mode/2up 

La sinización del marxismo, las ciencias sociales y la cuestión del modelo propio.

https://english.www.gov.cn/policies/latestreleases/202111/16/content_WS6193a935c6d0df57f98e50b0.html

Wladimir Pomar - A revolução chinesa

Confucianism in Context Classic Philosophy and Contemporary issues, East Asia and Beyond

Domenico Losurdo - Marxismo Ocidental - Como nasceu, como morreu, como pode renascer

https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/historia/cap44.htm

https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i2

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1922/04/02.htm#r1

https://pubs.aeaweb.org/doi/pdfplus/10.1257/aer.20170973

https://www.marxists.org/portugues/marx/1877/antiduhring/cap13.htm

https://archive.org/details/marxism-and-socialism-with-chinese-characteristics/page/154/mode/1up?view=theater

CURRICULUM OF THE BASIC PRINCIPLES OF MARXISM-LENINISM Part 1 The Worldview and Philosophical Methodology of Marxism-Leninism

https://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/gotha.htm#i2

https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/historia/cap43.htm

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1922/04/02.htm#r1

https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1931/12/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf

https://blogdaboitempo.com.br/2021/10/21/o-marxismo-e-a-controversia-sobre-a-china-nota-sobre-o-debate-entre-elias-jabbour-e-maurilio-botelho/

https://youtu.be/E8UE2sV7OR4?si=j7T9otimgoqzqhMe

https://youtu.be/-45ZMARq8VM?si=u5-skYS6t2UblQqn

https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1926/10/14.htm