'Centralismo democrático e luta interna: camaradas, é hora de superar Cunhal!' (Angelo Ardonde)

É mais que tempo de os proletários tomarem consciência de que o ‘cunhalismo’ deve ser rejeitado porque impede a luta contra a burguesia em todas as frentes — política, econômica, ideológica —, luta sem a qual não existe aproximação ao socialismo”.

'Centralismo democrático e luta interna: camaradas, é hora de superar Cunhal!' (Angelo Ardonde)
"É preciso enfrentamento para mostrar na prática que o 'C' de PCB significa 'comunista', e não 'cunhalista'"

Por Angelo Ardonde, para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Não há razão para ter tanto medo de uma luta: uma luta pode causar aborrecimento para alguns indivíduos, mas vai clarear o céu, definir atitudes de uma forma precisa e direta, definir quais diferenças são importantes e quais são desimportantes, definir onde as pessoas estão - aqueles que estão indo por um caminho completamente diferente e aqueles camaradas do Partido que só divergem em questões menores.
(Carta de Lênin a Apollinaria Iakúbova) [1]

Camaradas, chegou a hora de superar Álvaro Cunhal! Frequentemente vemos comunistas brasileiros e portugueses recomendarem O partido com paredes de vidro como um livro de referência sobre a organização e prática do partido leninista. Meu objetivo é criticar e expor as concepções centristas e os oportunismos alimentados por essa leitura, em especial seu falso modelo de centralismo democrático. Para avançar no debate sobre centralismo e polêmica aberta [2], precisamos desenvolver, na prática, a compreensão de que a luta interna e a unidade de ação, apesar de parecerem aspectos antagônicos na vida interna das organizações comunistas, de fato compartilham um vínculo necessário e caminham juntas.

Ao reproduzir esse aparente antagonismo, o livro de Cunhal promove uma ideia de partido ao avesso do leninismo e sua real dinâmica de unidade prática e orgânica, liberdade de crítica e organização da polêmica aberta. Na forma de um “manual do bom militante”, Cunhal apresenta uma série de preceitos que prometem a formação instrutiva e moral (conferir o capítulo 8) dos comunistas, tratando o partido como uma estrutura una, inabalável e sem contradições, o que acaba por desencorajar a luta interna – ou escantear sua existência, como uma questão secundária – em prol da manutenção de uma unidade partidária artificial e inerte. Esse problema é mais evidente na seção "Democracia, divergências e críticas" (do capítulo 4) e no capítulo 10, “A unidade e seus fundamentos”, com destaque para os trechos seguintes:

Se se quiser definir em poucas palavras em que consiste a unidade do Partido, podem apresentar-se três traços essenciais: o acordo com o Programa e a orientação política, o cumprimento dos princípios e normas de organização e a actuação para o cumprimento das tarefas decididas. A verificação destes três traços essenciais da unidade num partido como o nosso, com um tão elevado número de organizações e de membros, é por si só uma demonstração inequívoca da solidez política, ideológica e orgânica do Partido, da qual se pode deduzir a sua poderosa capacidade de intervenção na vida nacional. No PCP não há tendências ideológicas, não há plataformas ou grupos que se confrontem, não há dirigentes que se digladiem. As organizações e os militantes estão identificados com o Programa do Partido e actuam segundo a linha estabelecida [3].

As diferenças de opinião, quando expressas com espírito construtivo, intervêm como um factor positivo para o esclarecimento e a decisão. Tornam-se porém um factor negativo contrário à democracia interna quando se transformam numa sistemática posição contestatária, divergente ou de oposição à orientação e às decisões democraticamente aprovadas [4].

A tendência reproduzida por esses princípios é o rebaixamento da cultura política na militância à reprodução de posições vacilantes e oportunistas, o que acaba por corroer a vida interna da organização. Cunhal fala em nome do centralismo democrático, mas trabalha de fato com um “controlismo demagógico” [5], uma forma de oportunismo caracterizada pela tentativa de se restringir e evitar ao máximo o enfrentamento às contradições que inevitavelmente afloram no seio do partido, em seu movimento concreto, como um reflexo da prática ativa da militância frente às lutas e contradições existentes na realidade. São expressões desse “controlismo demagógico” – e assim devem ser combatidas pelos leninistas – as ideias de que o militante centralizado nunca deve criticar o partido e seus dirigentes fora das ditas instâncias internas, deve buscar sempre o consenso e a unanimidade de ideias, deve evitar discordâncias e confrontos com as direções ou que toda polêmica aberta deve ser reprimida e tratada indiscutivelmente como formação de tendências. Um bom controlador forma ótimos partidistas também controladores, mas não leninistas.

No texto “O Partido de Álvaro Cunhal”, publicado no site do PCB [6], lemos que o livro de Cunhal é uma “obra que na literatura comunista pode-se comparar, com as devidas proporções, a Que fazer?, de Lênin, e guarda seguramente muitas linhas de referência com este último, principalmente ao elevar a discussão partidária à análise concreta da realidade concreta”. Um absurdo! Pois materialismo, história e dialética são exatamente o que falta na forma subjetivista como Cunhal apresenta seus tipos ideais de militância, sem analisar as condições concretas que tendem ao desenvolvimento de certas formas de organização e disciplina [7] revolucionária (nesse sentido, é absolutamente diferente de Lenin no Que fazer?). A própria história do PCP dá bons contrapontos ao quadro de “solidez política, ideológica e orgânica” preconizado por seu histórico dirigente, em especial quando a linha oficial do partido adotou uma tática frentista junto aos setores democráticos e nacionalistas da pequena-burguesia portuguesa, reproduzindo suas posições vacilantes e chauvinistas a respeito do colonialismo português [8]. Nesse sentido, endosso a crítica de Francisco Martins Rodrigues ao livro de Cunhal [9]:

Como se consegue a assombrosa unanimidade dos congressos e conferências, com a “exaltante floresta de cartões vermelhos no ar” [referindo-se aos termos usados por Cunhal]? É fruto apenas, garante-nos, de uma vida profundamente democrática e coletiva, em que as ideias são sucessivamente trabalhadas e enriquecidas, até se tornarem patrimônio comum. Os debates acesos que se observam noutros partidos (a alusão visa sobretudo o PCE) é que seriam prova de falta de democracia…
O paradoxo não convence. É bem conhecido que abalos como o 25 de Novembro, a candidatura de Otelo em 1976 ou a invasão “libertadora” do Afeganistão produziram no interior do PCP fortes correntes de opinião divergentes. Que não foram harmonizadas num novo consenso (como poderiam sê-lo?) mas abafadas e reabsorvidas por todo o mecanismo meticulosamente montado de pressão interna.
Os instrumentos dessa pressão transparecem através das explicações tranquilizadoras de Cunhal. Quando diz que as opiniões divergentes não podem transpirar para fora dos organismos respectivos; que são proibidas, não só as frações organizadas, mas também as tendências ideológicas, as plataformas, os grupos; que as votações são boas para despachar questões práticas, mas já não tão boas “no que respeita a questões mais importantes, nomeadamente a decisões políticas” (!); quando exige a votação de braço no ar, mesmo nos casos em que isso acarreta uma inegável coação (eleição dos corpos dirigentes) — ficamos com uma imagem mais terra-a-terra do lírico consenso exaltado por Cunhal.
A unanimidade forçada é a verdadeira “regra de ouro” [referindo-se a um conceito apresentado por Cunhal], a pedra angular em que assenta a organização do PCP. Quem quer militar nas suas fileiras mentaliza-se na ideia de que é mau discordar, de que isso enfraquece o partido e a luta do povo, e habitua-se a “assimilar” as ideias que lhe servem já feitas. Só isso explica a perda gradual de independência, de espírito crítico e de capacidade criadora dos membros do PCP. Pergunte-se pela produção teórica ou ideológica deste exército de 200 mil militantes de “vanguarda”: encontra-se o deserto.

Na organização leninista, a liberdade de crítica e polêmica aberta são exercidas de forma ativa tanto nos espaços internos, estabelecendo meios para dar vazão a essa disputa necessária, como também publicamente. A questão aqui é saber como criticar nossos camaradas, entendendo que é possível ser duro e franco sem rebaixar as críticas a ataques pessoais, oportunismos, sectarismos ou opressões de qualquer tipo. Sempre que for politicamente pertinente (quando se trata das diferenças importantes e não de questões menores, como mencionado na citação de Lênin que abre este texto), a crítica e a autocrítica são feitas sem suavizar ou justificar nossos erros. No seio do partido, criticar significa tratar nossas divergências como uma disputa política entre camaradas, da qual deve sair mais forte a unidade coletiva e a linha revolucionária da organização, e não a posição individual de um ou outro militante. “A crítica é inseparável da agitação”, já afirmava Lênin ao criticar abertamente certas formulações falsas sobre a liberdade de crítica e a unidade de ação, opondo-se publicamente à seguinte resolução política do POSDR:

Aqueles que elaboraram a resolução têm uma concepção totalmente errada da relação entre a liberdade de criticar dentro do Partido e a unidade de ação do Partido. A crítica dentro dos limites dos princípios do Programa do Partido deve ser bastante livre (lembramos ao leitor aquilo que Plekhánov disse sobre esse assunto no Segundo Congresso do POSDR), não apenas nas reuniões do Partido, mas também nas reuniões públicas. Tal crítica, ou tal “agitação” (porque a crítica é inseparável da agitação) não pode ser proibida. A ação política do partido deve ser unida. Nenhuma “convocação” que viole a unidade de ações definidas pode ser tolerada tanto em reuniões públicas, como em reuniões do Partido ou na imprensa do Partido. Obviamente, o Comitê Central definiu a liberdade de criticar imprecisamente e de forma muito estreita, e a unidade de ação de modo impreciso e amplo [10].

Quem erra na teoria, erra na prática. É um erro achar que nossas críticas e discordâncias devem ser tratadas apenas internamente, assegurando uma unidade artificial e conformista com o tratamento incorreto das contradições no seio do partido [11]. Esse falso “centralismo democrático” tende à omissão em tratar e superar os problemas existentes na vida interna da organização, recalcando e acumulando tensionamentos contínuos que eventualmente podem vir à tona, levando a quebras, afastamentos, carreirismo, oportunismo, perseguições, expulsões arbitrárias e muita dor de cabeça; isso sim corrói a unidade real! E isso é ainda mais verdadeiro no caso do combate às opressões reproduzidas no interior do partido: a superação desses problemas passa não pelo seu abafamento e recalque como “questões internas” a serem tratadas pelas instâncias superiores, mas sim por um processo amplo de críticas, autocríticas, investigação e punição dos opressores, inclusive com a possibilidade de expulsão, independentemente da posição dos opressores na organização. Para que o partido cumpra seus princípios de segurança e disciplina, deve haver disposição ao enfrentamento para se construir realmente um ambiente de camaradagem e referência para novas formas mais saudáveis e solidárias de sociabilidade [12].

A tarefa histórica herdada pelos comunistas do nosso tempo passa pela reconstrução dos partidos leninistas e do movimento comunista internacional como referências políticas para a vanguarda da classe trabalhadora, na via da independência política do proletariado, diferenciando-se radicalmente dos partidos de esquerda bem adestrados como gestores da democracia e do capitalismo. Um dos princípios organizativos que forjará nossa unidade de ação orgânica pela construção do poder popular e da revolução brasileira é a compreensão de que tal unidade não se constrói artificialmente, mas ativamente por meio da luta interna e aberta entre camaradas, não uma luta de posições abstratas, mas de divergências relacionadas à atividade prática da militância. Luta interna também é construção interna, no interior do partido e do campo proletário [13]. Jones Manoel sintetizou bem essa questão em um tweet recente: “só a política em movimento que diz quem tem desvios reformistas, burocráticos, liberais e afins. E não tem como perceber esses desvios sem debate e reflexão. Nas sombras, sem crítica, sem polêmica, tudo que não presta floresce sem contestações e enfrentamentos”.

Por fim, não se trata de desmerecer o papel político de Cunhal nas lutas democráticas para a derrubada do salazarismo. Pelo contrário: que estas críticas contribuam para que os comunistas coloquem em evidência, “como que através de paredes de vidro”, o programa nacional-democrático muito bem defendido pelo histórico dirigente do PCP, que ainda via como tarefa dos comunistas em nossa quadra histórica o mesmo projeto centrista de “luta pela unidade ou convergência das forças democráticas, luta por uma alternativa democrática” [14], que acabou por ofuscar o horizonte revolucionário dos comunistas no século passado. O problema de Cunhal é este: ser um excelente democrata, mas não um leninista. “É mais que tempo de os proletários tomarem consciência de que o ‘cunhalismo’ deve ser rejeitado porque impede a luta contra a burguesia em todas as frentes — política, econômica, ideológica —, luta sem a qual não existe aproximação ao socialismo” [15]. É preciso enfrentamento para mostrar na prática que o “C” de PCB significa “comunista”, e não “cunhalista”.


Notas:

[1] Publicado na coletânea “O centralismo democrático de Lenin” (Lavrapalavra, 2021). Também disponível no Traduagindo com o título “Sobre o papel da polêmica”.

[2] Conferir o vídeo “O falso leninismo brasileiro” (Jones Manoel), disponível no Youtube.

[3] “O partido com paredes de vidro” (Álvaro Cunhal), edições Avante, 6ª edição, 2002, p. 229. Disponível do Marxists. O livro é recomendado na aba de formação no site do PCB como um “Clássico do marxismo”.

[4] Idem,  p. 113.

[5] Sobre esse debate, conferir o “Receitas para controleiros” (Francisco Martins Rodrigues), de onde vem o trocadilho “controlismo demagógico”. Texto disponível no Traduagindo.


[6] “O Partido de Álvaro Cunhal”, disponível no site do PCB.

[7] “É portanto óbvio que o princípio da disciplina pela disciplina é, em determinadas situações, utilizado pelos contrarrevolucionários para impedir o desenvolvimento conducente à formação do verdadeiro partido revolucionário de classe (…). Nossa opinião sobre isso é que o problema de organização e disciplina dentro do movimento comunista não pode ser resolvido sem ligá-lo estritamente às questões de teoria, programa e tática” (“Organização Comunista e a Disciplina”, Amadeo Bordiga, disponível no Traduagindo)

[8] Conferir os textos “Amor a Timor… nos Anos 40” (Marxists), “Quando o Avante se batia pela ‘Nossa’ Angola” (Marxists) e “O PCP e a Questão Colonial” (Marxists) de Francisco Martins Rodrigues. Para uma síntese desse processo, conferir o capítulo de conclusão desta dissertação de mestrado: “O Partido Comunista Português (PCP) frente ao processo político de descolonização da África Portuguesa (1974 – 1975)” (José Luciano Pereira Neto), disponível no repositório da UFG. Para uma crítica mais detalhada do processo de desenvolvimento do centrismo no PCP, conferir o capítulo 8 (“O centrismo em Portugal”) do “Anti-Dimitrov” (Francisco Martins Rodrigues), publicado pela LavraPalavra.

[9] “O Eurocomunismo não passará? - Uma crítica do ‘O Partido com paredes de vidro’ de Álvaro Cunhal” (Francisco Martins Rodrigues), disponível no Traduagindo.

[10] “Centralismo Democrático: ‘Liberdade para Criticar e Unidade de Ação’” (Lenin), disponível no Marxists.

[11] “Haverá quem pense que não convém expor assim tão brutalmente a vida interna de partidos que se reclamam do marxismo-leninismo, porque isso ‘dá armas à propaganda anticomunista’. Não estou de acordo. (...) É preciso revelar sem piedade as hipocrisias desse falso ‘centralismo democrático’, para provar que elas não são fruto do ‘totalitarismo’ de uma qualquer ‘burocracia’, mas são as armas de uma pequena burguesia que não pode confessar o seu reformismo e que se tem que disfarçar em ‘vermelha’ para melhor meter a classe operária nos carris do sistema. É preciso finalmente traçar uma linha de demarcação nítida entre o centralismo democrático leninista — a liberdade, disciplina e unidade dos comunistas — e a farsa que por aí se vende como tal. Essa é uma parte importante da luta para o renascimento da corrente operária revolucionária e para o descrédito do reformismo ‘comunista’” (“Receita para controleiros”, Francisco Martins Rodrigues, disponível no Traduagindo).

[12] Conferir o vídeo “Como combater as opressões nas organizações revolucionárias” (Jones Manoel), disponível no Youtube.

[13] “Nas manifestações ouvimos oradores do PPS [Partido Socialista Polonês] dizendo: ‘Camaradas, não é tempo para debates ou para brigas, pois a luta nos espera’. Nós respondemos: ‘Precisamente porque a luta nos espera temos que ganhar clareza sobre a sua natureza por meio do debate’. Se existe algo que pode acabar com a fragmentação política do proletariado, é a discussão, é a crítica”. Do texto: “Crítica no Movimento Operário” (Rosa Luxemburgo), disponível no Marxists.

[14] “O comunismo hoje e amanhã” (Álvaro Cunhal), disponível no Marxists e recomendado na aba de formação no site do PCB como um “Clássico do marxismo”.

[15] “Cunhal, democrata incompreendido” (Francisco Martins Rodrigues), disponível no Marxists.