BRICS: uma alternativa para a emancipação da classe trabalhadora?
O principal agente responsável por colocar em xeque a hegemonia estadunidense do ponto de vista econômico e geopolítico é também um dos agentes que contribuem decisivamente para a manutenção de outros países-membros dos BRICS em posições de dependência econômica
Por Matinta Perera
Entre os dias 22 e 24 de agosto, em Joanesburgo, na África do Sul, foi realizada a 15ª Cúpula dos BRICS, grupo então composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Atendendo à expectativa de ser o maior e, potencialmente, o mais importante encontro dos BRICS desde sua fundação, há mais de 14 anos, a Cúpula reuniu representantes de mais de 40 países e debateu temas centrais para o bloco, como sua expansão e a criação de uma moeda comum.
Em termos deliberativos, o maior destaque do encontro foi certamente a adesão de 6 novos países-membros ao grupo em 2024, selecionados a partir de uma lista de mais de 20 solicitantes formais. Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã foram anunciados como os mais novos integrantes dos BRICS, em celebração ao crescimento deste que se pretende enquanto o bloco representativo dos interesses do assim chamado “sul global”. Mas o que a Cúpula deste ano e os BRICS, na totalidade, realmente representam para a periferia do capitalismo?
Apesar da recente declaração do presidente Lula de que o grupo não quer ser um “contraponto ao G7”, a economia e geopolítica internacional têm atestado outro cenário. Já em 2020, o PIB dos BRICS, em termos de paridade de poder de compra, representava 31,5% da economia global, ultrapassando o do G7 (30,7%). Além disso, o processo de gradual desdolarização dos mercados internacionais tem refletido o potencial declínio da hegemonia estadunidense, da perspectiva não apenas econômica, mas também geopolítica. Assim, sendo os EUA a maior potência do G7, bem como de todo o ocidente capitalista, torna-se cada vez mais aparente o contraponto prático representado pelos BRICS, ainda que, discursivamente, representantes dos países do bloco o neguem.
Tendo isso em vista, são criadas expectativas de que possa emergir, a partir do fortalecimento dos BRICS, uma nova ordem internacional que supere definitivamente a hegemonia estadunidense: uma “ordem internacional multipolar”. Entretanto, para a desilusão dos entusiastas dessa perspectiva, é bastante possível que o desfecho seja outro, não apenas porque não há precedente histórico análogo sob o capitalismo moderno, mas também porque a tendência geral que se apresenta, a partir da composição de agentes e interesses representados no grupo, sinaliza um horizonte bem menos utópico.
A começar pelo elefante na sala: a China. Por mais que o discurso oficial do Estado chinês seja de que o país “sempre foi e continuará a ser um integrante dos países em desenvolvimento”, a realidade da China contemporânea não poderia ser mais distinta, por exemplo, daquela do “século das humilhações”. Atualmente, o que se observa é um país econômica, política e militarmente soberano, distante em diversos aspectos da periferia do capitalismo global. Tais condições, portanto, posicionam a China em um patamar bastante desigual em relação à maioria dos demais países-membros do bloco.
Apesar de, em última instância, o detentor do monopólio do poder político e militar do país ser o PCCh, com sua composição de classe bastante heterogênea, a burguesia chinesa ainda concentra significativo poder econômico. Assim, os interesses dessa burguesia nacional específica são determinantes, por exemplo, para aprofundar a reprimarização econômica da África e América Latina, respaldados, inclusive, pelos interesses das burguesias nacionais dos próprios países africanos e latino-americanos, como o Brasil.
Ou seja, o principal agente responsável por colocar em xeque a hegemonia estadunidense do ponto de vista econômico e geopolítico é também um dos agentes que contribuem decisivamente para a manutenção de outros países-membros dos BRICS em posições de dependência econômica internacionalmente. Portanto, denota-se que, por trás de interesses nacionais abstratos de países do assim chamado “sul global”, o que condiciona o modus operandi do grupo em questão são interesses de classe, ou seja, interesses burgueses.
Outro caso, repleto de contradições ainda mais profundas, é o da Rússia. A guerra interimperialista na Ucrânia revelou aquilo que, se já não estava claro, agora não há mais como negar: as pretensões expansionistas do atual governo burguês russo. Permanecendo em uma guerra de rapina contra as forças da OTAN e, consequentemente, dos EUA, a Rússia expõe seus interesses imperialistas para com a região em disputa e, em termos práticos, age em sentido contrário ao discurso oficial dos BRICS: trabalhar para a construção de uma ordem internacional multipolar a partir da cooperação e desenvolvimento do assim chamado “sul global”.
Tendo isso em vista, o exemplo russo é paradigmático na demonstração de que não apenas o conteúdo de classe dos Estados-membros do bloco é hegemonicamente burguês e, portanto, antagônico aos interesses dos explorados e oprimidos da periferia do capitalismo global, mas também que sua já escassa retórica “anti-imperialista”, direcionada sobretudo aos EUA, é majoritariamente fraseológica, prescindindo de quase qualquer perspectiva anticapitalista.
Finalmente, abordando também a nova composição do grupo, é pertinente chamar atenção para o fato de que o candidato à presidência da Argentina que atualmente lidera as pesquisas eleitorais, Javier Milei, é de extrema-direita, legítimo representante dos interesses da burguesia argentina e profundamente hostil à China e aos BRICS como um todo. Além disso, também não deve ser desconsiderado o histórico de rivalidade entre Arábia Saudita e Irã, do ponto de vista econômico, geopolítico e religioso, ainda que ambos os países tenham recentemente restabelecido relações diplomáticas.
Em suma, com sua progressiva expansão, a já instável e heterogênea configuração do bloco pode acentuar-se cada vez mais, indicando um futuro ainda bastante incerto tanto para os BRICS quanto para a própria ordem internacional. Resta, portanto, às forças críticas, anti-imperialistas e revolucionárias de todo o mundo organizar-se de forma politicamente independente, não apenas para confrontar a hegemonia estadunidense dentro sistema imperialista, reproduzida a partir de organizações como o G7 e a OTAN, mas também para desvelar quaisquer ilusões que a classe trabalhadora internacional possa nutrir em relação a alternativas como os BRICS para sua emancipação.