'Bolsonaro, o armamento geral do povo e os comunistas' (Gabriel Landi Fazzio)

O armamento geral do povo não significa conferir o direito privado a cada cidadão de fazer sua autodefesa (algo completamente tímido e insuficiente), mas sim em instituir o direito coletivo de treinamento e armamento para todas as pessoas dispostas.

'Bolsonaro, o armamento geral do povo e os comunistas' (Gabriel Landi Fazzio)

Por Gabriel Landi Fazzio para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Correndo o risco de levar à síncope alguns “comunistas antiesquerdistas” – desses quietistas que acham que, numa época onde a direita agita abertamente em favor do armamento das classes proprietárias, a esquerda deve silenciar em absoluto sobre esse tema, sem debatê-lo, como se toda menção à palavra armas fosse um chamado aventureiro à insurreição, e sob o temor de perseguições jurídicas e políticas (como se, sem isso, o nosso destino após o catacilismo da III República fosse ser mais ameno!) –, publicizo a seguinte tribuna, que escrevi para o XVI Congresso do PCB.

“Armar o povo com um sentimento da necessidade ardente de se armar é o dever constante e comum dos social-democratas sempre e em todo lugar. […] É por isso que, sob tais circunstâncias [adversas], nenhum socialista jamais oferecerá armas ao povo, mas ele sempre terá como seu dever (senão ele não é socialista, mas um simples falastrão) armá-lo com o senso da necessidade ardente de armar e atacar o inimigo.” Lênin, em: “Nós Devemos Organizar a Revolução?”

Introdução

Camaradas,

À época das eleições nacionais (em setembro de 2018), encaminhei o texto transcrito abaixo ao nosso organismo central, com a sugestão de publicação em nossos veículos. Minha preocupação, à época, era tripla: 1) oferecer nossa oposição ao projeto armamentista de Bolsonaro; 2) pontuar nossa divergência com posições esquerdistas sobre o assunto (a la PSTU que, em sua miopia, via nos projetos de Bolsonaro algum potencial para o armamento da classe trabalhadora revolucionária); 3) distanciar nossa posição do antiarmamentismo pacifista de cunho liberal e pequeno-burguês.

Recebi, à época, a seguinte resposta de nosso Comitê Central:

Definimos no CC que esse debate é interno. Não em relação à política do Bolsonaro, que é pública, mas em relação à forma de resistir a isso. Não dá pra expor o Partido desta forma num momento como o que estamos vivendo.

Façamos, então, o debate interno. Começo justamente por essa premissa, qual seja: a de que apresentar publicamente uma posição revolucionária acerca da questão das armas signifique expôr o Partido. Qual significado se pode extrair de tal objeção?

Por um lado, há uma preocupação bastante consequente, a qual não podemos ignorar nesta discussão: a preocupação com a vacilação em direção ao esquerdismo; a preocupação com uma defesa do armamento imediato do povo, que não apenas implicaria em um descolamento completo em relação ao atual estágio da luta de classes (na qual a necessidade do armamento do povo não se apresenta de imediato), como implicaria, se levada a cabo por meio de nossa organização, em abrir nossos flancos à quase certa repressão estatal. Por isso, sem quaisquer hesitações e ambiguidades, sem medo de sermos taxados pelos esquerdistas de qualquer coisa que seja, precisamos dizer em alto e bom som: paciência, é momento de organização e preparação, e não de nos lançarmos à ofensiva final.

No entanto, levada ao extremo principiológico, esta preocupação com o aventureirismo se converteria em oportunismo. Inclusive, muitos reformistas são, em suas cabeças, completos radicais, que raciocinam precisamente assim: somos a favor do armamento revolucionário, mas não devemos dizê-lo publicamente a menos que já estejam dadas as condições para a sua efetivação. Esse tipo de raciocínio significa, de fato, renunciar completamente à propaganda revolucionária consequente; renunciar ao trabalho de criar as condições subjetivas para a futura revolução proletária. A coisa se dá como se, um dia, de súbito, o povo criasse consciência da necessidade de se armar, passasse às barricadas e, só então, seria permissível defender abertamente a passagem às armas! Em suma: a militância consciente é posta a reboque da espontaneidade das massas, que milagrosamente descobrirão por si próprias o caminho para a insurreição revolucionária – ainda que tenham sido submetidas por décadas ao desarmamento por parte de Estado e à agitação pacifista por parte da esquerda liberal.

Não é exagerado, portanto, insistir nesta diferenciação: uma coisa é a propaganda em defesa do armamento geral do povo, absolutamente pertinente a todo tempo [12]; outra completamente distinta é a efetiva promoção e organização do armamento popular, por meio de nossa iniciativa independente ou da conformação de grupos armados. Esta segunda posição, certamente, seria inadequada e aventureira no atual estágio da luta de classes.

A resolução efetivamente leninista desta questão é bastante mais complexa, como o texto abaixo busca demonstrar. O receio em expor o Partido à repressão pode significar apenas, de um ponto de vista revolucionário, o rechaço a travar lutas em condições desfavoráveis; o rechaço ao emprego prematuro de formas de luta que ainda não podem se generalizar e orientar as massas. Não significa, de modo algum, calar sobre nossos objetivos finais, ou amenizá-los. Caso contrário, o modo mais seguro para evitar expôr um Partido à repressão seria, com plena razão, limpar este Partido de qualquer caráter revolucionário – e mesmo nesse caso, como a experiência petista nos ensina, nenhum partido proletário, mesmo o mais conciliador, estaria vacinado contra os riscos da perseguição judicial e policial.

Ademais, causa estranheza que temamos nos expor à repressão estatal, ao nos posicionarmos abertamente em defesa do armamento geral do povo, justamente no momento em que as forças dominantes da direita política defendem, abertamente e sem hesitação, suas próprias propostas de ampliação do armamento civil. É impossível enfrentar essas propostas reacionárias, de um ponto de vista revolucionário, sem compreender a relação entre sua disseminação em meio ao povo e a crise ideológica da autoridade estatal. Diante desta crise ideológica, nosso papel não é a promoção de uma agitação pacifista, reforçando a crença na neutralidade do Estado que monopoliza a violência legítima. Ao contrário: nosso papel é aprofundar e dar um sentido revolucionário a esta crise de autoridade. Neste caso, inclusive, não podemos descartar, atemorizados, a possibilidade de que uma posição resoluta neste tema possa desembocar em maiores ataques por parte da direita. Na verdade, é apenas com base nestes ataques maiores ou menores que poderemos evidenciar, de modo cabal, as diferenças entre nossas propostas de segurança popular e as propostas dos reacionários.

Assim, sem mais delongas, passo ao artigo em questão, que reúne a discussão de mérito a respeito da palavra de ordem do armamento geral do povo no atual quadro da luta de classes. Ao fim, após o artigo, comentarei brevemente a problemática Tese 31, que consta de nossa Pré-Tese sobre Estratégia e Tática, a respeito do tema da segurança pública.


Bolsonaro, o armamento geral do povo e os comunistas

Um debate especialmente espinhoso nessas eleições é a questão das armas. A revogação do Estatuto do Desarmamento é um dos carros chefes da campanha de Bolsonaro, e toda a agitação em favor da “autodefesa do cidadão de bem” tem lhe rendido apoio significativo entre as camadas populares.

A ampla maioria da “esquerda” tem respondido a esta proposta de maneira tímida, sendo incapaz de se distinguir da abordagem dominante (liberal-pacifista e elitista). O consenso pacifista abstrato ignora completamente a legitimidade da reivindicação do povo ao direito de ser armar. Ignora completamente a conexão entre essa reivindicação e a ineficiência do aparato de segurança pública em “servir e proteger” aos mais pobres. Quando a polícia não é a própria assassina do povo, é ainda assim incapaz de lhe garantir a segurança, e os altos índices de crimes (muitos inclusive nunca solucionados) são apenas a expressão matemática da bárbara realidade que vitima a maioria da população. Entre os ricos, é claro, isso se resolve mais facilmente com a contratação de empresas privadas de segurança. Entre os pobres, contudo, brota o clamor pela autodefesa, mais ou menos embaralhado com ideias reacionárias. Rechaçando a legitimidade dessa reivindicação, a esquerda apenas atira esses setores direto aos braços da extrema-direita, que insere em meio à agitação pelas armas toda a sua retórica de ódio aos pobres, de punitivismo, de machismo e de racismo. Ao mesmo tempo, a esquerda que cede a esse consenso liberal ajuda a difundir a ilusão de que é possível contar com a polícia para zelar pelos pobres, como se a polícia fosse um instrumento neutro de segurança a serviço de todos, e não um aparato de repressão moldado aos interesses da classe dominante.

Esse consenso liberal-pacifista revela todo o seu elitismo quando deixa escapar que, “idealmente”, o direito ao armamento seria positivo, mas infelizmente o povo brasileiro é muito pouco civilizado para saber exercer esse direito. Uma esquerda que é incapaz de abordar essa questão se diferenciando nitidamente dessa gente é até mesmo indigna de se chamar esquerda!

Isso significa, então, que deveríamos fazer coro à proposta de Bolsonaro? Para responder corretamente, seria preciso avaliar com rigor suas propostas. Mas, também aqui como em tudo, Bolsonaro não apresenta um projeto concreto – fica sempre na afirmação genérica da revogação do Estatuto atual. Somos forçados, então, a analisar alguns dos projetos atuais que tramitam no Congresso a esse respeito.

O armamento no campo

O Projeto de Lei 224/2017, do senador Wilder Morais (PP-GO), é um dos que está mais perto de ser aprovado, conforme sua tramitação no Congresso. O que o projeto propõe essencialmente? Flexibilizar as regras de armamento para o meio rural. Reduzir de 25 para 21 anos a idade mínima para o armamento. Abolir a regra que exige, hoje, que a pessoa que deseja se armar no campo deva comprovar que depende desse armamento para a substância alimentar de sua família (ou seja, uma regra que nitidamente busca limitar o direito ao armamento aos casos em que é necessária alguma atividade de caça para a subsistência).

O que está por trás desse projeto? Será que Bolsonaro está realmente preocupado com a insegurança que sofrem os pobres do campo e com seu direito à autodefesa? Todo o mistério se esclarece muito rapidamente se analisarmos o tremendo apoio que Bolsonaro tem recebido do agronegócio. São os grandes proprietários rurais os verdadeiros interessados nesta medida, que permitirá ampliar o armamento de seus capangas e endurecer a ofensiva que já realizam contra pequenos lavradores e comunidades tradicionais.

Em 2017, os ruralistas foram responsáveis, oficialmente, por mais de 70 assassinatos no campo (uma cifra que não era atingida desde o ano de 2003). Só no Pará, dez lavradores foram assassinados em maio de 2017, apenas um mês depois da tortura e morte de outras nove pessoas no Mato Grosso. Na Bahia, seis membros de uma comunidade rural foram assassinados em agosto, também por conta de conflitos pela terra. [1] Além desses conflitos entre latifundiários e pequenos lavradores, em 2017 também ocorreram massacres a diversas comunidades indígenas. Só no caso do massacre do Vale do Javari, Amazonas, foram cerca de 18 assassinados. [2] Nem as crianças indígenas são poupadas. Os números reais são, certamente, maiores do que esses contabilizados pelas estatísticas oficiais, se considerarmos a dificuldade na apuração, em especial no que diz respeito às comunidades mais isoladas. São dezenas de mortes, todas sob o mando dos ruralistas, que querem ver-se livres de indígenas e pequenos lavradores para poderem expandir suas terras.

Essa ofensiva armada dos ruralistas evidencia quem são os verdadeiros interessados em projetos como esse do senador do PP de Goiás. Não à toa, grandes parcelas do agronegócio têm declarado apoio ao programa armamentista de Bolsonaro. Tanto isso é verdade que outros políticos burgueses, como Alckmin, já entenderam o recado, e sinalizam de volta ao agronegócio com a bandeira da ampliação do armamento no campo, buscando ganhar de volta o apoio desses setores. [3] Mas e o direito dos assentados, dos pequenos lavradores, dos indígenas e quilombolas a resistirem, em armas, aos ataques dos bandos pagos pelos grandes fazendeiros? Será que Bolsonaro e Cia. defenderiam esse direito? É claro que não: Bolsonaro não deixa dúvida, em inúmeros discursos, que o alvo preferencial de suas balas são os pobres e oprimidos do campo. [4] Por isso, rechaçamos sem hesitação essa bandeira da flexibilização do porte de armas no campo, erguida pelos grandes proprietários rurais.

O armamento nas cidades

Uma vez analisada a questão do armamento no campo, passamos às propostas mais gerais sobre o tema – que atingem também o campo e, ao mesmo tempo, o armamento urbano. Atualmente, a posse de armas é permitida somente a quem ateste a necessidade da arma (a justificativa é avaliada pela Polícia Federal), e comprove, por meio de documentos, estar formalmente empregado, ter residência fixa, não ter antecedentes criminais e não estar respondendo a processos judiciais. Além disso, ainda é preciso apresentar atestados de aptidão técnica e psicológica.

A maioria dos projetos que pretendem revogar o Estatuto do Desarmamento se concentra em atacar essa obrigação de uma justificativa de necessidade para o porte de arma. Nesse sentido, tais propostas poderiam até ser aceitas pelos revolucionários, uma vez que minam a tutela do aparato repressivo sobre o armamento popular. Mas será que essa medida seria, com efeito, favorável às massas trabalhadoras? Será que aumentariam a segurança popular?

Logo à primeira vista, já se nota que grandes parcelas da classe trabalhadora seguiriam impossibilitadas de comprar armas. Em um país em que 27,7 milhões de pessoas estão desempregadas ou vivendo de bicos; em um país em que 33 milhões de pessoas não tem onde morar (isso apenas considerando as pessoas que não tem nenhuma moradia própria, mais ainda há muitas outras que se mudam frequentemente, por conta dos aumentos nos preços dos aluguéis)… fica evidente que gigantescas parcelas dos setores mais pobres da população continuariam sem atender os requisitos de estar “formalmente empregadas e ter residência fixa”. No fim das contas, portanto, essa flexibilização beneficiaria apenas uma pequena parcela dos trabalhadores, mas especialmente as classes médias e as grandes empresas de segurança privada, contratadas pelos ricos em seus condomínios, empresas e escoltas privadas.

Além disso, é preciso ter em conta que o projeto não toca naquilo que seria o maior obstáculo para o armamento dos trabalhadores: os altos preços das armas de fogo. No Brasil, em uma breve pesquisa, é possível constatar que os valores de armamentos mais simples variam entre R$3.500 e R$5.000. Considerando que 50% da população brasileira vive com menos de um salário mínimo por mês [5]; e que apenas 24% da população (as chamadas camadas A e B) tem renda familiar mensal acima de R$4.591 [6]; fica evidente que a ampla maioria da população trabalhadora jamais teria condições orçamentárias de adquirir armamentos e munições.

Ora, se o interesse de Bolsonaro e Cia. fosse, realmente, o armamento geral do povo, por que não tocar nesse tema dos altos preços do armamento no Brasil? Porque isso significaria contrariar os interesses dos verdadeiros amigos de Bolsonaro, os empresários da indústria armamentista. Bolsonaro não defende o direito de todo o povo ao armamento. Defende, isso sim, o direito dos ricos de se armarem, e o direito das grandes empresas de armas de ampliaram seu mercado consumidor. Onde quer que, por conta do alto preço das armas e munições, o direito ao armamento conflitar com os direitos de comércio dessas empresas, lá Bolsonaro não hesitará em defender as Taurus e Cia que tanto dinheiro já “doaram” para suas campanhas.

Mas o problema não acaba aí. Mesmo que um trabalhador conseguisse, economizando seus rendimentos, comprar uma arma – poderia fazer livre uso desta? Boa parte dos defensores do armamento hesitam nesse tema, e afirmam que o porte de arma só deveria ser permitido em casa, não nas ruas – aqui, deve continuar prevalecendo o monopólio do armamento pelo Estado. E, ainda que fosse permitido o porte de armas nas ruas, os trabalhadores estariam mais seguros? Vimos, recentemente, o caso do trabalhador morto pela polícia, que confundiu seu guarda-chuva com uma arma de fogo. [7] Seria diferente, com a maior parte dos trabalhadores e pobres realmente armados? Ao mesmo tempo, estaria mais seguro o trabalhador armado, não só sob a mira da polícia, mas também sob a mira dos criminosos, que quereriam roubar agora também a sua arma? Se já morrem tantos policiais, todos os anos, a despeito do treinamento que recebem, de que modo estaria um trabalhador destreinado mais seguro, apenas por portar uma arma?

Fica evidente, portanto, que Bolsonaro não passa de um demagogo barato [8] a serviço da indústria armamentista. Por isso mesmo, os comunistas são contra esse projeto comercial de expansão do armamento, defendido por Bolsonaro. No essencial, esse projeto apenas facilitaria aos ricos armar seus capangas, seja seus fura-greves ou seus bandoleiros rurais – e enriqueceria ainda mais os industriais das armas e empresas de segurança privada.

O que devem defender os comunistas?

Se somos contra esses projetos de revogação do Estatuto do Desarmamento, isso significa que não queremos nenhuma alteração na atual situação? Significa que pregamos para a classe trabalhadora a fé na capacidade dessa polícia estatal de lhe “servir e proteger”? De modo algum! Os comunistas não podem hesitar em defender o armamento geral do povo. Mas o que isso significa?

A diferença entre os comunistas e os populistas de direita nessa questão é gritante. Esses senhores reacionários não defendem, de verdade, o armamento geral do povo. Defendem, em primeiro lugar, o mais rigoroso endurecimento e fortalecimento da polícia oficial, a maior centralização possível da força de repressão; combinam a essa reivindicação uma segunda, acessória, de ampliação do direito ao armamento individual e comercial dos cidadãos ricos. Quando temos isso em mente, percebemos que não passa de demagogia todo o falatório dessa gente, como se sua defesa do armamento significasse uma oposição ao desarmamento da maioria do povo pelo Estado. Querem se pintar de liberais-radicais, mas são os primeiros a pregar o armamento ainda maior do Estado e o endurecimento policial e penal contra o povo.

Para os revolucionários comunistas, a questão é completamente diferente. O armamento geral do povo significa que toda a segurança pública deve estar sob controle popular. Como nos orientamos nesse sentido, apoiamos todas as reivindicações que pretendem a desmilitarização da segurança pública nos atuais moldes (inclusive com a abolição dos Tribunais Militares); mas sabemos que isso é insuficiente. Devemos defender uma completa reestruturação da segurança pública, sob controle democrático dos trabalhadores; a substituição do atual aparato policial estatal pelo povo em armas. É preciso não apenas conferir à população o direito formal de ser armar, caso possa comprar individualmente sua arma: é preciso que todas as pessoas dispostas a participar na segurança pública estejam organizadas e treinadas. Não o armamento anárquico de cada indivíduo, mas o armamento organizado, conferindo ao povo o direito a formar associações voluntárias de treinamento militar, com a livre eleição de instrutores e armamentos pagos pelo Estado. [9] Ao mesmo tempo, é preciso limitar a liberdade das empresas privadas de segurança, submetendo-as ao mesmo patamar destas associações voluntárias. A segurança pública não pode ser uma mercadoria acessível a uns poucos: deve ser uma garantia assegurada à ampla maioria do povo.

O Brasil tem uma experiência pontual bastante interessante e prática, a esse respeito. Em agosto 1961, no Rio Grande do Sul, a chamada “Campanha da Legalidade” se articulou para evitar o golpismo militar, após a renúncia do presidente Jânio Quadros. A requisição forçada, pelo governo, de mais de 3 mil revólveres da empresa Taurus, foi pouco perto dos 45 mil populares que, em cinco dias, se apresentaram aos postos de recrutamento voluntário para a resistência popular. [10] Experiências como essas valem infinitamente mais do que todo o falatório sobre o direito individual à compra de armas, e indicam a disposição potencial que existe, em meio às massas, a se organizar em armas para a defesa de sua liberdade e de seus interesses.

O armamento geral do povo não significa conferir o direito privado a cada cidadão de fazer sua autodefesa (algo completamente tímido e insuficiente), mas sim em instituir o direito coletivo de treinamento e armamento para todas as pessoas dispostas. Que alguns ricos “cidadãos de bem” queiram se armar para defender apenas a si mesmos, seus bens e suas famílias; mas não estejam dispostos a se armar coletivamente para proteger o seu bairro, sua cidade, etc, é a mais clara prova das inspirações mesquinhas por trás de todo o falatório “contra os bandidos”.

Nós, comunistas, entendemos a questão de modo distinto. Compreendemos as causas sociais por trás da criminalidade; tanto quanto compreendem o anseio das massas exploradas em ver-se livre da criminalidade. Demandamos, também por isso, o direito da população de, coletivamente, participar na segurança pública. Mas, ao mesmo tempo, não desligamos essa reivindicação dos objetivos revolucionários da classe trabalhadora. Devemos explicar pacientemente às massas a relação entre a atual criminalidade e a desigualdade capitalista; e que, portanto, o único modo pelo qual a classe trabalhadora pode assegurar a segurança de cada um de seus membros é pondo fim ao capitalismo, esse sistema que precisa constantemente atirar grandes camadas de trabalhadores ao desemprego e à miséria, fornecendo um grande exército de reserva no qual se recrutam membros paras as gangues e organizações criminosas. Apenas estabelecendo o socialismo e, com isso, o pleno emprego e a elevação das condições de vida das massas, será possível pôr fim à criminalidade como a conhecemos. Cuba é a prova viva disso, sendo um dos países com menores índices de criminalidade em todo o continente americano. [11]

Mas, para pôr abaixo a atual ordem capitalistas e construir uma nova, socialista, a classe trabalhadora enfrentará a mais dura resistência dos exploradores, dispostos a todo tipo de golpismo e terrorismo de Estado para preservar seus privilégios. Por isso mesmo o movimento revolucionário comunista não pode patinar no mesmo lodo do pacifismo liberal, e recomendar levianamente o desarmamento geral do povo, que apenas desprepara as massas exploradas para a dura resistência que lhe é exigida, na luta por sua emancipação. Sem hesitar, devemos combater a fé ingênua que muitas pessoas nutrem na capacidade das polícias de erradicar a criminalidade, sem que se erradiquem as causas sociais da criminalidade, e sem compreender o papel específico da polícia na sociedade de classes: o papel de instrumento armado de garantia da atual ordem de exploração. Sem leviandade, sem orientar os trabalhadores para que se lancem às armas imediatamente, em condições desfavoráveis; o partido revolucionário do proletariado deve alertar para a necessidade de vigilância e preparação, e combater todas as ilusões pacifistas e legalistas com as quais os oportunistas e demagogos ludibriam a classe trabalhadora.

Assim, sem renunciar à defesa do armamento geral do povo, denunciamos e combatemos todos os projetos armamentistas da direita reacionária. Qualquer projeto armamentista diferente deste (o direito a formar associações voluntárias de treinamento militar, com a livre eleição de instrutores e armamentos pagos pelo Estado) não significa outra coisa senão armar os ricos. Significa apenas fortalecer as classes proprietárias na guerra civil que se agrava a cada dia. Significa massacres mais frequentes no meio rural; e um aumento da violência que atinge em geral a classe trabalhadora, o povo negro, as mulheres e todas as camadas oprimidas da sociedade.

Contra o armamentismo de direita, nossa arma não deve ser o pacifismo ingênuo, mas sim o programa revolucionário dos trabalhadores. É verdade que a luta armada revolucionária não está na ordem do dia e, portanto, não devemos incitar as massas buscar esta forma de luta. Mas também é verdade que não devemos buscar pacificar os elementos mais radicalizados, exigindo que se desarmem ou deixem de aspirar o armamento. É preciso, a todo tempo, armar o povo ao menos da vontade de se armar organizadamente. [12] Nossa alternativa, nesse caso, é erguer a bandeira que permita contrapor o projeto armamentista reacionário com um projeto revolucionário de segurança pública: o armamento geral do povo contra os exploradores e todos os que roubam o povo, das mais diversas formas legais e ilegais. Por isso devemos, no atual estágio da lutra de classes, sem renunciar ao nosso programa máximo nessa questão (o armamento geral do povo), estabelecer as mediações mínimas que permitam agitar, perante as grandes massas, a necessidade de um maior controle social do aparato policial, e de uma maior participação direta do povo na segurança pública. Só assim poderemos, sem cair nem no oportunismo e nem no aventureirismo, sustentar uma oposição revolucionária ao armamentismo de direita.


Conclusões

Em suma, o que defendo pode ser assim resumido:

1) A denúncia dos interesses reacionários da burguesia, expressos no projeto de Bolsonaro;
2) A propaganda aberta em favor do armamento geral e organizado do povo;
3) Mediações agitativas que, afirmando nitidamente que o armamento geral do povo não está no ordem do dia, defendam o controle social do aparato policial, combatendo quaisquer ilusões pacifistas na legalidade burguesa e no monopólio estatal da violência legítima. Além disso, devemos avaliar, sempre que surja a oportunidade, as condições para a defesa aberta e pública da autodefesa (e não, no atual estágio, qualquer ofensiva) dos sindicatos e movimentos populares.

Assim sendo, me preocupa bastante nossa atual Tese 31, na Pré-Tese sobre Estratégia e Tática, acerca da segurança pública:

31) Na atual conjuntura, em que as questões ligadas à segurança pública vêm provocando debates e as soluções apresentadas pelos governos burgueses são a ampliação da repressão e a criminalização das comunidades proletárias, com a utilização cada vez maior de práticas de extermínio, é fundamental apresentar propostas de lutas que apontem a necessidade de uma política de segurança pública que tenha como objetivo central o apoio à população e o combate sistemático ao crime organizado em suas múltiplas formas. São elementos dessa política a oferta de empregos e de condições de vida digna para todos, o controle de fronteiras para vedar a entrada de armas, a maior restrição à posse e ao porte de armas, o aumento dos impostos sobre a fabricação de armas, a legalização das drogas, reforma na política carcerária, o atual modelo de reclusão e abandono potencializa o crime organizado, que cresce e se ramifica nos e através dos presídios. Devemos ainda lutar pela extinção da Polícia Militar e a criação de uma nova polícia civil, uniformizada, com destacamentos especializados em investigações e operações especiais, com apoio técnico, formação em academia e plano de carreira. A nova polícia deverá ser controlada diretamente pela população, organizada no Poder Popular.

Esta Tese incorre em diversos equívocos. O mais evidente dele diz respeito à defesa do endurecimento do policiamento fronteiriço. Qualquer camarada que reflita um pouco sobre a história do movimento comunista perceberá de modo essa proposta atira em nossos próprios pés: com a acelerada agudização da luta de classes, não podemos descartar a possibilidade de, em um futuro próximo, necessitarmos nós próprios de enviar camaradas dirigentes para fora do país, por exemplo. A Tese erra, ademais, ao defender genericamente a maior restrição à posse e ao porte de armas, dissolvendo qualquer distinção entre nossa política revolucionária e a política desarmamentista dos liberais de esquerda, crédulos na legalidade burguesa.

Por fim, a Tese se equivoca ao tentar recriar essa distinção, artificialmente, por meio meramente da fórmula: “A nova polícia deverá ser controlada diretamente pela população, organizada no Poder Popular”. Ora, o que significa isso? Quais os estágios do desenvolvimento do Poder Popular das massas sobre o aparato repressivos, se as massas próprias não estão armadas e organizadas como força repressiva? Nenhum conselho que não esteja ele próprio armado poderá, jamais, controlar desarmadamente as forças armadas estatais, e qualquer afirmação em contrário não passa de uma ilusão constitucionalista.

A meu ver, a Tese merece uma completa modificação, e poderia constar nos seguintes teros:

31) Na atual conjuntura, em que as questões ligadas à segurança pública vêm provocando debates e as soluções apresentadas pelos governos burgueses são a ampliação da repressão e a criminalização das comunidades proletárias, com a utilização cada vez maior de práticas de extermínio, é fundamental que os comunistas apresentem suas propostas – bastante distintas das propostas reacionárias e liberais. Essa proposta se baseia, antes de mais nada, na criação de empregos e na elevação das condições de vida da ampla massa do povo. Ao mesmo tempo, denunciamos as intenções reacionárias por trás da política de “guerra às drogas”, exigindo a legalização destas, bem como uma ampla reforma carcerária: o atual modelo de reclusão e abandono potencializa o crime organizado, que cresce e se ramifica nos e através dos presídios. Devemos ainda lutar pela extinção da Polícia Militar, propondo uma completa reestruturação da segurança pública, sob o controle direto da população trabalhadora. Isso significa que se, por um lado, somos completamente contrários às propostas de ampliação do comércio de armamentos; por outro lado, consideramos positiva a aspiração à participação popular direta na segurança pública, como ocorrem em todas as experiências revolucionárias, desde as menos até as mais avançadas. Neste sentido, podemos exigir o direito (de cada, digamos, cem habitantes de um bairro ou cidade) a formar associações voluntárias de treinamento, com a livre eleição de instrutores pagos pelo Estado, bem como equipamentos financiados pelo poder público. O armamento geral do povo, mesmo que irrealizável e inoportuno de imediato, é um de nossos objetivos estratégicos.

Não se trata, sei muito bem, de uma questão banal, mas uma de grande complexidade – ainda mais para nós que tanto temos a criticar em termos do aventureirismo do movimento revolucionário brasileiro, desde a experiência do Levante Vermelho de 35 até a malfadada aventura foquista das guerrilhas dos anos 60. Mas não podemos permitir que nosso receio com o blanquismo, com o esquerdismo conspirativo, amarre nossas mãos para a propaganda revolucionária consequente. E não pode haver propaganda revolucionária consequente sem a defesa intransigente e resoluta do armamento geral do povo.

“Os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui. Podem as classes dominantes tremer ante uma revolução comunista!”. Marx e Engels, em “O Manifesto do Partido Comunista”.

[1] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/06/04/interna-brasil,686112/violencia-no-campo-deixou-71-mortos-no-brasil-em-2017.shtml

[2] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/07/27/indios-kanamari-apontam-massacre-na-segunda-maior-terra-indigena-do-brasil/

[3] https://www.terra.com.br/amp/noticias/brasil/em-aceno-a-agronegocio-alckmin-diz-que-facilitara-porte-de-armas-e-oferta-de-credito-no-campo,aef0d2f9a85107184f60d2b96bf3a77942gfor5j.html

[4] https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-e-melhor-perder-direitos-trabalhistas-que-o-emprego,70002317744
e
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/04/nem-um-centimetro-para-quilombola-ou-reserva-indigena-diz-bolsonaro/

[5] https://odia.ig.com.br/_conteudo/economia/2017-11-29/ibge-metade-da-populacao-brasileira-vive-com-menos-de-um-salario-minimo.html

[6] https://www.brasil247.com/pt/colunistas/migueldorosario/331702/Classes-C-D-e-E-correspondem-a-quase-80-da-popula%C3%A7%C3%A3o.htm

[7] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html

[8] https://aosfatos.org/noticias/projeto-que-revoga-estatuto-do-desarmamento-utiliza-argumentos-falsos-e-dados-incorretos

[9] “Além disso, podemos exigir o direito de cada, digamos, cem habitantes de um determinado país  a formar associações voluntárias de treinamento militar, com a livre eleição de instrutores pagos pelo Estado, etc. Somente sob estas condições o proletariado poderia adquirir treinamento militar para si mesmo, e não por seus donos de escravos; e a necessidade de tal treinamento é imperativamente ditada pelos interesses do proletariado.” Lenin, em “O Programa Militar da Revolução Proletária”. https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1916/miliprog/iii.htm

[10] http://www.vermelho.org.br/noticia/162025-1

[11] Cuba é 5o país na América com menos homicídios, conforme as estatísticas oficiais: hoje, morre menos de 1,5 pessoa por dia no país. Em Cuba, em uma população de pouco mais de 11 milhões de habitantes, as Forças Armadas Revolucionárias contam com quase 4 milhões de militares ativos (sendo 1,9 milhões de homens e 1,8 milhões de mulheres na ativa, além de 3 milhões de homens e 3 milhões de mulheres na reserva). Além do treinamento generalizado, cerca de 7,6 milhões de pessoas participam dos Comitês de Defesa da Revolução! Destacamos também, agora sobre a Coreia Popular, o fato notório internacionalmente de que, de seus 25 milhões de habitantes, 1,2 milhões são membros regulares das forças armadas, e outros quase 8 milhões têm treinamento, estando na reserva. Trata-se do 4o maior exército do mundo; da maior reserva militar do mundo; mas, acima de tudo, do país onde é maior a proporção entre habitantes e militares (36,8 %), e onde todo homem deve passar por algum treinamento militar (infelizmente, só os homens). Não tenho dados precisos sobre a efetiva organização interna, mais ou menos democrática, dessas forças. Mas, onde os democratas liberais veriam um terrível índice de militarismo autoritário, os comunistas vêm precisamente o contrário: um povo mais armado e melhor treinado é a única garantia da efetiva democracia. Enquanto o armamento e o treinamento estiver destinado a uma pequena casta dirigida pelo Estado dos monopólios, o desarmamento geral do povo será não uma garantia de paz, mas sim de opressão.

[12] “Armar o povo com um sentimento da necessidade ardente de se armar é o dever constante e comum dos social-democratas sempre e em todo lugar, e pode ser aplicado igualmente ao Japão como pode à Inglaterra, à Alemanha como pode à Itália. Onde quer que existam classes oprimidas lutando contra a exploração, a doutrina dos socialistas, desde o início, e em primeiro lugar, arma essas classes com uma noção da necessidade ardente de se armar, e essa ‘necessidade’ está presente logo quando o movimento trabalhista nasce. A social-democracia tem apenas que tornar consciente essa necessidade ardente, trazer para casa aqueles que têm consciência da necessidade de organização e ação planejada, e a necessidade de considerar toda a situação política. Caro Editor da Iskra! Por favor, participe de qualquer reunião de trabalhadores alemães e veja o ódio contra a polícia, que queima faces por lá; que sarcasmo amargo e punhos cerrados você vai ouvir e ver lá! Qual é a força que mantém em xeque esta necessidade ardente de impor justiça sumária à burguesia e seus servos que maltratam o povo? É a força da organização e da disciplina, a força da consciência, a consciência de que os atos individuais de assassinato são absurdos, que a hora da luta séria revolucionária do povo ainda não chegou, que a situação política não está madura para isso. É por isso que, sob tais circunstâncias, nenhum socialista jamais oferecerá armas ao povo, mas ele sempre terá como seu dever (senão ele não é socialista, mas um simples falastrão) armá-lo com o senso da necessidade ardente de armar e atacar o inimigo.” Lênin, em: “Nós Devemos Organizar a Revolução?”