Bets causam endividamento na periferia e lucros bilionários na Europa
Regulamentação das bets propõe taxação de empresas e usuários, mas segue permitindo endividamento em massas e evasão de riquezas.
Por Redação
Na véspera da virada do ano, em 29 de dezembro de 2023, foi sancionada pelo presidente Lula a Lei 14.790/2023, conhecida como “Lei das Bets”. O projeto que deu origem à legislação foi de autoria do próprio poder executivo, com objetivo de regulamentar a operação das chamadas “Bets”, nome pelo qual ficou conhecido no Brasil o setor de apostas online, que já é tradicional em alguns países, mas que nos últimos cinco anos tornou-se popular — e muito lucrativo — no Brasil.
Uma pesquisa realizada pelo Datafolha mostrou que 15% dos brasileiros já realizaram alguma aposta online. Entre os jovens, o percentual aumenta, chegando a 30%. O perfil do apostador brasileiro é de homens jovens, principalmente das camadas de menor renda.
Tamanha popularidade faz com que esse setor, que antes da pandemia era praticamente desconhecido, passasse a movimentar quantias enormes de dinheiro. O Itaú realizou uma análise para investidores em que projeta um gasto líquido de R$ 23,9 bilhões em valores apostados no Brasil em um ano, entre 2023 e 2024. Ao considerar o gasto líquido, já está sendo descontado o quanto esses apostadores recebem de volta, sendo, portanto, esse o valor pago sem retorno às empresas de apostas. Ou seja: o prejuízo dos apostadores. Essa soma representa 0,2% do PIB brasileiro e mais do que o dobro do investimento na atenção básica em 2023.
De onde vem o dinheiro
Em um cenário nacional em que a renda média do brasileiro cresce em taxas mínimas ao longo dos anos, chama a atenção um aumento de gastos de quase 24 bilhões de reais. A resposta, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Locomotiva, passa pelo gasto de valores poupados e endividamento. Tais dados levantados mostram que 86% das pessoas que apostam têm dívidas, enquanto 64% estão negativadas no Serasa. Dos entrevistados, aproximadamente um terço disse que “usou dinheiro destinado a outras coisas”.
No segundo país no ranking de maiores juros reais, a pandemia das bets mostra-se rentável não só às empresas de apostas, mas também ao setor financeiro.
O esvaziamento da poupança e o endividamento dos setores de menor renda impactam diretamente no poder de compra. Apesar de analistas não confirmarem essa relação — como é o caso do estudo do Itaú apresentado anteriormente — os representantes do varejo no Brasil sustentam essa tese e investem num lobby contra as bets em Brasília. Com a regulamentação aprovada, o objetivo desse setor é minimizar o impacto das apostas na renda dos consumidores. Se a burguesia se movimenta, é porque seu bolso está em ameaça. Mesmo sem dados conclusivos, esse processo fortalece a tese de que as apostas, além de dívidas, diminuem o consumo — inclusive alimentar — do povo brasileiro.
Para onde vai o dinheiro
Se é fácil concluir que os bilhões movimentados pelas bets saem dos bolsos principalmente dos trabalhadores de menor renda, a tarefa de rastrear para onde vai esse dinheiro é bem mais complexa.
Esta reportagem analisou dados das principais empresas de apostas online em atuação no Brasil hoje. Para isso, foram consideradas os dez maiores sites segundo o ranking da plataforma SEMRush, divulgado pelo Estadão; as 16 maiores companhias de aposta mundial segundo reportagem do Yahoo Finance (considerando apenas as que atuam no Brasil); e todas bets que investiram (milhões) em publicidade na série A do Campeonato Brasileiro.
Das dezoito empresas analisadas, 55% (10) tem proprietários ou sede principal na Europa, 16% (três) são de brasileiros, 22% (quatro) não tiveram dados sobre seus sócios encontrados e uma tem seu principal sócio australiano. Entre as bets de brasileiros, metade está envolvida em investigações sobre lavagem de dinheiro, fraude e esquema de pirâmide. As cinco plataformas mais acessadas (Bet365, Betano, Betfair, Sportingbet e 1xbet) são, todas, de origem europeia.
Considerando os sócios dessas empresas, torna-se mais claro o fluxo do dinheiro: os gastos que partem de poupança ou dívidas dos brasileiros — depois de uma importante parte ser reinvestida em publicidade — vão para os bolsos de seus donos na Europa. A pesquisa realizada pelo jornal O Futuro também apontou para um dado interessante: quase todas essas empresas atuam sob a legislação de Curaçau, um paraíso fiscal localizado no sul do mar do Caribe.
Essa operação a partir de Curaçau tem dois principais motivos: o país tem legislação acerca do tema — o que não existia no Brasil até o início deste ano — e o próprio fato do país ser um paraíso fiscal, o que significa garantia de amplo sigilo sobre as empresas locais e baixa tributação, ampliando os lucros de quem opta por sediar uma empresa por lá.
Regulamentação e lei no Brasil
Os principais objetivos da regulamentação das bets no Brasil são fazer com que essas empresas deixem de operar em paraísos fiscais e passem a ter sede e administração em território nacional, contribuindo com o pagamento de impostos. Isso não significa, no entanto, que as altas taxas de lucro dessas empresas ficarão no Brasil. A presença de escritórios brasileiros servirá apenas para possibilitar a responsabilização jurídica de quem quer explorar esse setor comercial, mas os lucros propriamente ditos continuarão seu fluxo em direção aos países onde estão os sócios dessas empresas.
Em dezembro de 2018, no governo de Michel Temer, foi editada uma Medida Provisória que autorizava as apostas esportivas no Brasil. Até então, a prática era proibida. A meta era que a regulamentação (ou seja, a lei que organizasse como essa autorização ocorreria na prática) fosse aprovada no ano seguinte. No governo Bolsonaro, o prazo para a regulamentação expirou e não houve qualquer indicativo de analisar o texto do projeto de lei. Venceu o lobby das bets internacionais, que manteve seus lucros intactos.
Já com o novo governo de Lula, o Ministério da Fazenda sob Fernando Haddad passou a enxergar a regulamentação como uma promissora forma de arrecadação para o governo, com previsão de 2 bilhões de reais arrecadados ao ano. Segundo apuração da Folha, na elaboração do texto da regulamentação, foram realizadas pelo menos 251 reuniões com os grandes nomes do setor privado, associações de representantes dessas empresas e escritórios de advocacia. Para ouvir o “outro lado”, ocorreram cinco reuniões com o setor de saúde. O bilionário lobby das bets pautou o governo, que apresentou o Projeto de Lei em julho de 2023, com sua tramitação finalizada em menos de 6 meses, tornando-se lei. Aprovou-se a taxação de 12% sobre o faturamento das empresas, além de 15% de Imposto de Renda sobre os prêmios obtidos.
Um problema da periferia
Explorar a paixão por futebol com publicidade; recrutar influenciadores das redes sociais e aproveitar a falta de legislação local para ampliar lucros não é exclusividade das bets no Brasil. O setor lucra com a mesma estratégia sobre o público africano, já há mais tempo. O documentário Gamblers Like Me: The Dark Side of Sports Betting (Apostadores como eu: o lado escuro das apostas esportivas) publicado pela BBC Africa em 2019 já mostrava que as apostas na Uganda representavam um grande problema de saúde pública.
Neste ano (2024), o governo da Etiópia anunciou que a epidemia de apostas causou uma crise social no país. No Quênia, estima-se que 84% dos jovens já tenham feito apostas online, com um terço desse total afirmando realizar apostas diárias. As estimativas de gastos com apostas no país ultrapassam o orçamento do seu Ministério da Saúde. Tanzânia, Gana, Nigéria e África do Sul têm mais da metade da população jovem assumindo realizar apostas frequentemente. Esse padrão se repete nos mais diversos países africanos, apoiando-se na demografia do continente em que há uma alta proporção de jovens em suas populações.
Em comum com o Brasil, muitos dos países que enfrentam a pandemia das bets têm colocado as esperanças na legislação e regulamentação como formas de minimizar os impactos negativos da prática, enquanto geram arrecadação. Se, por um lado, a taxação realmente pode servir como forma de engordar o orçamento desses países, o método mostra-se ineficaz no que é central: poupar seus povos do vício nas apostas, o que gera sofrimento psíquico, familiar e endividamento. As bets, como qualquer outra pandemia, pesam mais na periferia global.