Banco Central e luta de classes no Brasil: O que todo trabalhador precisa saber

Nesse escrito, nosso objetivo é explicar o papel do Banco Central na reprodução do capitalismo dependente brasileiro e por que motivos ele é objeto de tanta atenção, debate e disputa política.

Banco Central e luta de classes no Brasil: O que todo trabalhador precisa saber
Foto: Reprodução/Agência Senado.

Nesse escrito, nosso objetivo é explicar o papel do Banco Central na reprodução do capitalismo dependente brasileiro e por que motivos ele é objeto de tanta atenção, debate e disputa política. Para decifrar o papel do Banco Central (de agora em diante referido como BC), precisamos, antes de tudo, traçar considerações teóricas gerais sobre o funcionamento do Estado burguês e do poder político no modo de produção capitalista. Em seguida, entramos diretamente na conjuntura brasileira para captar os principais interesses em disputas e ideologias mobilizadas para justificar e encobrir esses interesses de classe.

Na Europa Ocidental, antes da consolidação do modo de produção capitalista e da vitória das Revoluções Burguesas, a burguesia em ascensão e seus intelectuais promoveram um programa teórico-político centrado na ideia de limitar ao máximo o poder político estatal dos governos absolutistas. Uma série de construções ideológicas diversas – como as formulações sobre direito natural e o direito à rebelião frente aos governos despóticos – convergiam para limitar a capacidade do Estado, ainda não dirigido pela burguesia, de intervir nas relações de produção, propriedade e regulação da economia como um todo.

Uma vez conquistado o poder político, a burguesia europeia passa a trabalhar em duas frentes político-ideológicas. Inicialmente, buscava restringir a participação política, direito ao voto e possibilidade de organização apenas aos membros da classe dominante, sustentando, por décadas, o voto censitário (o direito de votar e ser eleito estava sujeito a um critério de renda e propriedade) e “teorias” sobre a irracionalidade das massas trabalhadoras e sua suposta incapacidade objetiva para participar da gestão da coisa pública; e, em segundo lugar, limitar ao máximo a ação estatal nas relações econômicas, sendo função dos governos garantir a propriedade privada e as condições ideais para o bom funcionamento do “mercado”, potencializando a competitividade de cada burguesia nacional frente aos seus rivais.

Nesse ponto, é preciso deixar a explicação mais precisa. Não se trata de um “Estado mínimo”. Seria um absurdo falar em Estado mínimo quando, por exemplo, a burguesia inglesa construiu um império colonial que abarcava colônias em quatro continentes diferentes com participação direta, ativa e decisiva do Estado burguês britânico. Tratava-se de, por exemplo, o Estado não atuar na economia para regular relações trabalhistas, definir que setores da economia teriam mais investimentos (a partir de incentivos diretos e indiretos), alterar a distribuição de renda a partir de tributação, construir uma rede de serviços públicos, planejar e induzir a dinâmica e o ritmo de urbanização e industrialização etc. A lógica básica é: o Estado deve atuar para garantir os interesses dos capitalistas no seu conjunto, mas nunca responder a interesses imediatos de outras classes não proprietárias (por isso, durante todo século XVIII e boa parte do XIX, era considerado inaceitável regular a jornada de trabalho, fixar um salário mínimo ou estabelecer condições sanitárias de funcionamento numa fábrica).

A segunda metade do século XIX, marca uma série de transformações no papel do Estado burguês na reprodução do capitalismo. Essas transformações respondem a um conjunto de vetores e tendências históricas. Sintetizando o longo processo histórico, destacamos duas. A classe operária cresceu em organização a partir de partidos políticos, sindicatos e associações e impôs um redimensionamento do papel do Estado burguês na dominação de classe. As lutas pelo direito ao voto, liberdade de organização sindical, aumento de salário, redução da jornada de trabalho, descanso semanal, melhora das condições de trabalho, proibição do trabalho infantil, educação pública, moradia popular e afins implicaram transformação qualitativa da intervenção estatal nas relações de produção e circulação da riqueza.

Como sempre acontece, vários setores da classe dominante e seus gerentes trataram essas lutas operárias e suas demandas como as cornetas do apocalipse, ou seja: do fim do capitalismo, expressando uma resistência total a quaisquer mudanças nos marcos regulatórios impondo limites ao poder despótico do burguês na fábrica. Ao mesmo tempo, porém, outros setores da classe dominante e lideranças burguesas entenderam que trazer as lutas operárias para esfera jurídica-política, encapsulando essas demandas na superestrutura do Estado, era a melhor forma impedir uma permanente radicalização da classe operária e suas lutas – a institucionalização de direitos e marcos regulatórios no capitalismo deve ser vista, tendencialmente, como uma possível vitória tática da classe trabalhadora e uma vitória estratégica da burguesia.

Um exemplo histórico é bastante significativo. Após a Comuna de Paris, essa foi a resposta dos Governos da Alemanha e da Áustria-Hungria:

Em novembro de 1872 [...] tem lugar uma ampla reunião de delegados dos governos da Alemanha e da Áustria-Hungria para definir a luta contra a Internacional, buscar soluções ao problema social e desenvolver os rudimentos de um Estado providente, preocupados pela sorte das classes despossuídas [...] Na reunião citada de novembro de 1872 são apresentadas uma série de propostas para regulamentação estatal do descanso dominical, a limitação do trabalho industrial das mulheres, a indenização por acidentes, a criação de oficinas de trabalho, a introdução de inspetores de fábrica segundo modelos ingleses, a criação de instituições educativas para trabalhadores, a reforma do sistema habitacional, a criação de seguros de enfermidade e invalidez e a instituição de tribunais de arbitragem e conciliação (GONZÁLEZ GARCÍA apud COSTA, 2011, p. 56).

Nas últimas três décadas do século XIX, nos países de maior desenvolvimento capitalista da Europa Ocidental, já era claro que a simples repressão e fechamento do sistema político-eleitoral à participação da classe operária não era uma resposta eficiente para manter o controle e dominação das classes exploradas. A repressão nunca deixou de ser usada, em particular nos momentos mais agudos da luta de classes, mas para além dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, passaram a operar vários instrumentos de intervenção na “questão social”, soldando uma rede de compromissos materiais, materializados em direitos sociais, políticas públicas e marcos regulatórios. Não é coincidência, no último terço do século XIX, o crescimento de ideias sobre a função social da propriedade, de correntes liberais preocupadas com o “social” e as desigualdades e formulações social-imperialistas (que faziam a relação direta entre expansionismo colonial e melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores na metrópole para amenizar a radicalidade operária).

Em paralelo a isso, no mesmo período, o capitalismo europeu passava por transformações adentrando nova fase histórica: o capitalismo monopolista ou imperialista. A era dos monopólios exige do Estado burguês um novo patamar quantitativo e qualitativo de ação coordenada na organização da reprodução capitalista. Há uma infinidade de exemplos das novas funções estatais no capitalismo monopolista – e a correspondente transformação dos aparelhos do Estado burguês – que poderíamos citar em comparação com a fase histórica pré-monopolista. Novamente por economia de espaço, citamos essa síntese das principais tendências do capitalismo monopolista, 

Na prossecução da sua finalidade central, a organização monopólica introduz na dinâmica da economia capitalista um leque de fenômenos que deve ser sumariado: a) os preços das mercadorias (e serviços) produzidas pelos monopólios tendem a crescer progressivamente; b) as taxas de lucro tendem a ser mais altas nos setores monopolizados; c) a taxa de acumulação se eleva, acentuando a tendência descendente da taxa média de lucro (Mandel, 1969, 3: 99-103) e a tendência ao subconsumo; d) o investimento se concentra nos setores de maior concorrência, uma vez que a inversão nos monopólios torna-se progressivamente mais difícil (logo, a taxa de lucro que determina a opção do investimento se reduz); e) cresce a tendência a economizar trabalho “vivo”, com a introdução de novas tecnologias; f) os custos de venda sobem, com um sistema de distribuição e apoio hipertrofiado – o que, por outra parte, diminui os lucros adicionais dos monopólios e aumenta o contingente de consumidores improdutivos (contrarrestando, pois, a tendência ao subconsumo) (NETTO, 2010, p. 21).

O Estado burguês é compelido por um lado, pelas lutas operárias e populares, a absorver as demandas da classe trabalhadora dando-lhes forma de políticas públicas e direitos; é compelido também, por outro lado, a atuar desde dentro, em todas as dimensões da reprodução do capital, para garantir a taxa de lucro e a estabilidade político-ideológico do capitalismo monopolista. Rosa Luxemburgo, em um clássico livro de 1898, Reforma ou revolução, captou bem essas transformações ao afirmar que “sem dúvida, o próprio desenvolvimento capitalista modifica essencialmente o caráter do Estado, alargando-lhe cada vez mais a esfera de ação, impondo-lhe constantemente novas funções, notadamente no tocante à vida econômica, tornando cada vez mais necessária a sua intervenção e seu controle sobre esta” (LUXEMBURGO, 2015, p. 54).

Tais transformações quantitativas e qualitativas da ação do Estado na reprodução do capitalismo e na dominação de classe, concretizaram em toda sua plenitude uma clássica síntese de Engels sobre o papel do Estado no capitalismo e na luta de classes. No Anti-Dühring, um livro mais difamado do que lido, diz um dos fundadores do marxismo:

E o Estado moderno, por sua vez, é apenas a organização que a sociedade burguesa monta para sustentar as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra ataques tanto dos trabalhadores como de capitalistas individuais. O estado moderno, qualquer que seja sua forma, é, portanto, uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, é o capitalista global ideal (ENGELS, 2015, p. 314 - grifos nossos).

 O Estado burguês, especialmente na era do capitalismo monopolista, precisa atuar como um capitalista ideal, gerenciando as insolúveis contradições do capitalismo e, ao mesmo tempo, proteger a dinâmica sistemática da ação da classe trabalhadora e dos capitalistas individuais (e, acrescento, de frações da classe dominante). Para o Estado convergem uma série de demandas de diversas classes e frações de classe, a partir da ideologia jurídica-política do povo-nação: todos iguais perante a lei, com os mesmo direitos e deveres, com suposta igualdade de competição político-eleitoral para definir os rumos da política governamental e os padrões regulatórios do capitalismo.

Se o Estado é chamado para, por exemplo, financiar a construção de grandes obras de infraestrutura – rodovias, portos, hidrelétricas, aeroportos etc. –, por que não fazer o mesmo com moradia para todo povo trabalhador? Se é chamado a financiar setores específicos da burguesia ditos estratégicos para economia, por que não fazer o mesmo com todo povo trabalhador? Se pode recuperar empresas na falência, por que não recuperar milhares de bairros degradados? Se alguns serviços são públicos, como educação, por que não todos os serviços públicos e todos os itens indispensáveis para dignidade humana, como alimentação, são gratuitos e de responsabilidade do ente político supostamente vocacionado para o “bem comum” (o Estado)?

Com as lutas operárias, a transição ao capitalismo monopolista e no século XX, as revoluções socialistas, a burguesia teve que articular respostas diárias aos desafios da luta de classes. Não se tratava mais, como na primeira parte do século XIX, de afirmar um Estado que não pode “atuar” na economia com máxima repressão contra todo protesto operário. Para além das táticas políticas específicas, articuladas em cada conjuntura para os desafios do momento, era indispensável amarrar uma explicação global, uma lógica totalizante que assegure a segurança que em nenhuma situação, a atuação estatal será disfuncional à reprodução do capitalismo.

Em cada momento específico, a burguesia forja uma explicação ideológica totalizadora que servem para confinar os conflitos de classe no limite do aceitável para dominação burguesa – e quando o padrão de dominação hegemônico entra em crise, está sempre a disposição recorrer à golpes de Estado, ditaduras empresarial-militares ou “guerras sujas” para matar em massa militantes.

Neste momento da luta de classes no Brasil, o núcleo ideológico central da classe dominante, a base de várias transformações no aparelho do Estado, é a ideologia da austeridade. A ideologia da austeridade está centrada em três ideias-forças que permeia todo produção dos aparelhos ideológicos da classe dominante brasileira: a) o orçamento do Estado é tal qual o orçamento de uma família, a contabilidade doméstica de uma casa, e se o Estado gastar mais do que arrecada ele vai “quebrar”; b) aumento do gasto público gera inflação, aumento da taxa de juros e desequilibra a economia; c) existe um limite máximo para o crescimento da dívida pública e atingindo esse limite, a economia do país se desorganiza, por isso é necessário cortar gastos.

Ao contrário do que se imagina no senso comum, os bancos não recolhem dinheiro de clientes (a partir da abertura de contas correntes, poupança e afins) para posteriormente poder emprestá-lo. Na verdade, os bancos criam dinheiro novo no momento em que realizam empréstimos (depósitos à vista, ou moeda bancária). De acordo com o Bank of England

Os bancos comerciais criam dinheiro, na forma de depósitos bancários, ao fazerem novos empréstimos. Quando um banco faz um empréstimo, por exemplo, para alguém que está contratando uma hipoteca para comprar uma casa, ele não costuma fazer isso dando milhares de libras em notas de banco. Em vez disso, ele credita a conta bancária da pessoa com um depósito bancário do valor da hipoteca. Nesse momento, o novo dinheiro é criado. Por essa razão, alguns economistas se referem aos depósitos bancários como "dinheiro de caneta-tinteiro", criado com o traço das canetas dos banqueiros quando aprovam os empréstimos (p. 16, tradução nossa).

Contudo, existem normas e limites prudenciais (regras de encaixe) que os bancos comerciais devem seguir, como por exemplo a necessidade de determinado patamar de depósitos compulsórios. Para cumprir as regras de encaixe, ele precisa deter uma determinada quantidade de reservas bancárias ou moeda estatal (que apenas o Banco Central emite). Se no fim do dia um banco precisar de reservas bancárias (moeda estatal) para cumprir as regras de encaixe, irá recorrer ao mercado interbancário, onde participa junto aos outros bancos autorizados e ao Banco Central. Vamos supor que a maioria dos bancos esteja com necessidade de reservas e só um banco tenha excesso ao final do dia. Este banco com excesso de reservas cobraria uma taxa de juros extremamente alta para os outros que estão deficitários. Entretanto, na política monetária atual, o Banco Central é quem estabelece a taxa de juros do mercado interbancário (a taxa base para toda a economia) atuando para que seja convergente com a taxa Selic. Como ele faz isso? Simples, emprestando toda quantidade que os bancos deficitários precisarem cobrando a taxa Selic. O poder do Banco Central é ilimitado para emitir o quanto for necessário de reservas bancárias para garantir a manutenção da taxa base de juros no patamar que escolher, por consequência, os bancos sempre terão acesso a reservas bancárias com o custo da taxa Selic. 

A lógica também vale no caso oposto. Vamos supor que em um determinado dia o governo faça enormes gastos deficitários, injetando mais dinheiro no mercado interbancário do que destruiu por meio da tributação. Neste cenário, de enorme déficit, os bancos estarão abarrotados de reservas bancárias, com um excesso em relação ao que necessitam para cumprir as regras de encaixe. Se todos os bancos estiverem com excesso, ninguém vai querer reservas bancárias, e a taxa de juros do interbancário cairia a zero – e os bancos dormiriam com um excesso de reservas que não rende juros. Neste cenário, o que o Banco Central faz? Toma emprestado todo o excesso de caixa dos bancos comerciais – quanto for necessário – à taxa de juros Selic via operações compromissadas. Vejam que o déficit do governo empurrou a taxa de juros para zero, porém, para manter a taxa positiva, o Banco Central atua enxugando esse excesso. Veja, não é um financiamento do déficit, os bancos não estão fazendo nenhum favor para o Banco Central, muito pelo contrário, é o Banco Central que está tomando “emprestado” deles para que não durmam com dinheiro que não rende juros.

De forma semelhante, o Estado também cria dinheiro novo ao gastar (reservas bancárias). Essa criação de moeda é ilimitada tanto para garantir o acesso dos bancos às reservas bancárias à taxa Selic, quanto para fazer frente às despesas financeiras com juros da dívida pública. Entretanto, o mesmo Estado que é ilimitado no seu poder de emissão para a satisfação das necessidades financeiras, é extremamente limitado por duras regras orçamentárias para realizar gastos sociais e investimentos públicos. Vejam, a limitação para os gastos estatais, por definição, não pode estar localizada na obtenção de receitas tributárias ou de “empréstimos”. O Estado primeiro gasta emitindo dinheiro, depois esse dinheiro virá uma combinação de tributação, compra de títulos públicos e variação da base monetária. Portanto, os limites para os gastos sociais e investimentos públicos é auto-imposta politicamente, assim como a plena liberdade para os gastos financeiros.

A partir disso, justifica-se o mercado privado ter mais liberdade para criação de liquidez diária – créditos e financiamentos – que o Estado (exceto, é claro, no gasto financeiro do Estado). Além disso, o Estado, como emissor soberano de moeda estatal, tem, a partir dos bancos públicos, ampla margem para a concessão de créditos subsidiados, portanto, quando escolhe o agronegócio ao invés da recuperação ambiental, trata-se de escolha política e não um simples direcionamento de crédito para setores mais lucrativos.

Em momentos excepcionais, normalmente em crises econômicas, fica ainda mais evidente a capacidade do Estado de criar liquidez sem lastro. Toda burguesia pressiona por mudanças temporárias na legislação vigente e do nada o discurso muda de “acabou o dinheiro” para é “necessário salvar a economia”. Vimos isso na crise capitalista de 2008, quando tanto na Europa e nos Estados Unidos, trilhões foram injetados na economia para salvar os sistemas financeiros e os bancos (note: não teve arrecadação prévia para depois gastar, aumento de impostos para gastar ou necessidade de pedir empréstimos. Simples mudanças legislativas permitiram aos Bancos Centrais criar liquidez e assumir dívidas dos bancos, fundos de investimento e afins).

No Brasil, depois de passarmos todo 2019 ouvindo que o Estado brasileiro estava “quebrado” porque os governos petistas tinham “gastado demais”, vimos durante a pandemia uma mera mudança legislativa – o orçamento de guerra – permitir ao Estado brasileiro gastar quase 2 trilhões de reais com injeção de liquidez no sistema financeiro e bancário, auxílios, crédito subsidiado e afins.

Objetivamente, bancos privados são desnecessários até para o funcionamento do capitalismo. Cada pessoa ou empresa poderia ter uma conta diretamente no Banco Central (ou em bancos públicos) e o crédito ser gerido como um bem público, tal qual saúde, educação, assistência social etc. Mas essa possibilidade precisa ser continuamente negada a partir de mitos ideológicos – como a ideia de que os bancos primeiro recolhem dinheiro para depois emprestar e o Estado primeiro recolhe impostos para gastar – dado seu potencial de planejamento embutido. Como falamos, o crédito é uma ferramenta alocativa de forças produtivas. A ideia de que pode ser passível de decisão coletiva toda alocação do crédito, sujeitando tal decisão a um critério de utilidade pública e não de lucro, poderia desnudar a disfuncionalidade dos bancos privados e da própria lógica do lucro como organizador da economia.

Neste sentido, é fundamental para a classe dominante ocultar o papel do BC – e do Tesouro Nacional – e colocá-lo apenas como uma espécie de regulador do setor bancário, como se o BC dependesse deste e não o contrário. É também nesse sentido que é passado todo dia nos telejornais a ideia de que o Banco Central precisa do mercado para vender títulos da dívida pública, como se isso fosse um mecanismo de financiamento do estado e não de regulação de liquidez no mercado interbancário.

Ainda nesta mentira, é difundida a ideia de que o mercado privado regula as taxas de juros e que é preciso ter confiança dos mercados, caso contrário os títulos da dívida pública brasileira não serão vendidos. Bem, a taxa Selic, a taxa básica de juros da economia, é definida pelo BC e não pelo mercado. Não existe risco de títulos públicos não serem comprados. São ativos lucrativos, seguros e sem risco de “calote” – é impossível um Estado dar calote em títulos emitidos na sua própria moeda, portanto, dívida interna. O que tivemos no passado foram moratórias de dívida externa, em dólar, moedas que não emitimos. 

O BC define a Selic e poderia determinar o preço dos diversos títulos (com vencimento para curto, médio e longo prazo). A institucionalidade do BC brasileiro impede que o órgão faça isso e ele opera, basicamente, no mercado de títulos de curto prazo (bem diferente, por exemplo, do Banco Central do Japão). Lógico que a taxa Selic não reflete diretamente todas as taxas de juros da economia – para financiamento de carros e casas, empréstimos para capital de giro, cheque especial etc. –, mas esta realidade não muda o fato de a taxa Selic ser determinada pelo BC, portanto, na linguagem dos economistas, uma variável exógena ao mercado privado.

Todas essas questões, contudo, parecem ser “muito técnicas” e distantes do dia-a-dia da classe trabalhadora. Para amarrar todos esses interesses, temos a onipresente comparação do orçamento do estado com o orçamento de uma família doméstica. A ideia é que o Estado não pode gastar mais do que arrecada, apelando para o senso comum do cotidiano da classe trabalhadora. No nosso orçamento doméstico, objetivamente, temos que não gastar mais do que os nossos rendimentos, sob o risco de ficar no vermelho, se afogar em dívidas e eventualmente ter bens penhorados.

Uma família, contudo, não define a taxa de juros que vai pagar aos bancos, não têm capacidade de criar liquidez sem lastro ou projetar investimentos estratégicos que maximizem sua renda. Essas capacidades estão todas no Estado. Ao igualar as finanças públicas com um orçamento doméstico, a ideia é apelar para um eterno risco de “contas no vermelho” devido ao excesso de gastos públicos, fortalecendo o mantra de que é necessário “cortar gastos”. Além da ideia de que a economia vai “quebrar” se o governo gastar demais, essa analogia ainda sustenta a mentira de que com “muito gasto” a taxa Selic vai necessariamente subir, pois os “investidores” não terão confiança na capacidade do governo “honrar suas dívidas” (já que o dinheiro “está acabando”).

A partir desta ideologia, temos uma mentira institucionalizada contadas todos os dias. Na estrutura jurídica do Estado burguês no Brasil temos dois tipos de gastos. O gasto primário que é o gasto com saúde, educação, cultura, assistência social, proteção ao meio ambiente, funcionalismo público etc; o gasto financeiro do estado que é, no fundamental, o gasto com juros e serviços da dívida pública. O chamado déficit nominal, que aparece todo dia na mídia burguesa, é a diferença entre o arrecadado e o gasto, juntando o gasto primário e financeiro do estado. A questão é que a cada aumento de 1% da taxa Selic, aumenta o gasto financeiro do estado em cerca de 72 bilhões de reais. Esse aumento do gasto financeiro, faz crescer o déficit nominal; frente a esse crescimento, toda burguesia e seus aparelhos ideológicos apelam por mais cortes de gastos, supostamente para reduzir o tamanho do déficit nominal, mas fazendo-o por mais cortes no gasto primário.

Reforçando: a cada aumento da taxa Selic, aumenta o gasto financeiro do Estado. Esse aumento do gasto financeiro, aumenta o déficit nominal e isso é usado como justificativa para mais cortes no gasto primário. Para institucionalizar ainda mais a mentira, o Governo Fernando Henrique Cardoso criou o Boletim Focus em 1999. O Boletim Focus escuta algumas centenas de bancos, fundos de investimento e instituições financeiras, incorporando o interesse objetivo destas empresas como se fosse tendências do mercado, e considera esses interesses no seu modelo de definição da taxa Selic. O capital pressiona por aumento da taxa de juros devido, supostamente, ao excessivo gasto público e aumento da dívida. Esse aumento da Selic, como falamos, aumenta o déficit nominal e o custo da rolagem da dívida, o que pressiona por mais aumento da Selic, apontando um suposto descontrole das contas públicas. É uma profecia auto-realizável.

Seguindo nessa toada, a burguesia e seus intelectuais propagam a mentira que toda inflação permanente é decorrente de excesso de demanda (consumo, por exemplo) e ignoram, portanto, o lado da oferta (redução da oferta da mercadoria).  Isso porque para os liberais, cedo ou tarde, a economia tenderá, magicamente, ao pleno emprego (ou seja, o máximo da capacidade de oferta é utilizado e pressões de demanda geram o desajuste entre oferta e demanda). Em ambos os casos, no fim das contas, pode-se dizer que “há um desajuste”, mas os liberais explicam pelo lado da demanda, um diagnóstico conveniente para impor políticas de juros altos e austeridade fiscal para desacelerar a economia. Os economistas heterodoxos explicam pelo lado da oferta, o que abre caminho para políticas de redução de custos (estoques reguladores ou aumento da produtividade). Geralmente o debate se dá entre os heterodoxos que defendem que a inflação se dá pelo lado da oferta (ou custos) x os liberais que defendem que é um problema do lado da demanda. Como, na cena política brasileira hoje, a versão liberal, representando os interesses objetivos do rentismo é a dominante, temos a prevalência da ideia de que todo aumento da inflação, por quaisquer motivos que seja – preços sensíveis à cambio, preços administrados, variáveis de preço por causa de secas, enchentes, guerras e afins – é uma procura maior que a oferta, pressionando os preços para acima, colocando a necessidade intransponível de elevar a Selic para “desacelerar a economia” – estamos, neste começo de 2025, vivendo o auge dessa mentira.

O aumento da Selic para supostamente controlar a inflação, além de potencializar baixo crescimento econômico e geração de emprego, melhorando para a grande burguesia a correlação de forças entre capital e trabalho, também serve como mais uma justificativa para aumentar a remuneração dos detentores da dívida pública com aumento da taxa de juros.

Em suma, na atual quadra histórica da luta de classes no Brasil, temos uma luta permanente para manter o BC como um garantidor permanente de altíssimas taxas de lucro para o rentismo. Manter a Selic sempre alta com variadas justificativas com um constrangimento permanente do gasto primário do Estado e um volume sempre maior de gasto financeiro – não custa lembrar que o teto de gastos aprovado por Michel Temer colocava uma trava no gasto primário, mas deixava livre o gasto financeiro. O Novo Teto de Gastos do Governo Lula, com algumas mudanças institucionais frente ao anterior, preserva exatamente a mesma lógica.

Por fim, completando toda lógica da burguesia, o BC é criminalizado em qualquer tentativa de intervenção no câmbio, a partir de uma ideologia de câmbio flutuante, como se a definição da taxa de câmbio fosse uma decisão natural e neutra do “mercado” e atuar para buscar uma taxa adequada à interesses diversos (como aumentar a complexidade produtiva da economia) tivesse como efeito uma ação artificial que vai perturbar um todo harmônico, provocando sempre resultados desastrosos.

Assim o BC pode ser instrumentalizado para atender aos interesses imediatos e estratégicos da burguesia interna e do capital estrangeiro, soldando um bloco de classes a partir dos lucros rentistas e a mínima possibilidade de mudança é descartada em nome de um “bem comum”, dado que as ações do BC são técnicas, neutras e transformações na política do órgão podem resultar em aumento da inflação, taxa de juros, reduzir a confiança dos investidores e coisas do tipo.

Numa síntese muito curta, podemos dizer que são esses os principais aspectos em disputa em torno do BC. O debate que apresentamos também se mescla com disputas de política econômica e concepção de macroeconomia, algo inevitável, considerando que toda justificativa para as políticas do BC passa necessariamente por argumentos de fundo teórico macroeconômicos. O papel de uma teoria macroeconômica para quem é marxista, isto é, busca desenvolver uma crítica da economia política, não será debatido aqui, tema para outro momento. Cabe, contudo, algumas palavras à guisa de conclusão.

Entender esses discursos ideológicos da burguesia e combatê-los não significa esperar a conquista de um BC para a classe trabalhadora e a soberania nacional no capitalismo. Embora seja plenamente possível, fora de uma situação revolucionária, derrubar certos aspectos dessa dinâmica, como a existência do Boletim Focus e a separação jurídica entre gasto primário e financeiro do estado, a questão de fundo é de poder político. Não se trata de uma polêmica acadêmica sobre a visão correta de macroeconomia e política monetária. Acabar com a atuação descrita do BC significa tirar do poder político todos os setores da burguesia beneficiados com o rentismo.

A denúncia, a agitação sobre esse estado de coisas, a disputa ideológica deve visar sempre a conquista do poder político. Uma luta bem mais para sabermos o que fazer com o BC quando tomarmos o poder político do que uma disputa sobre quem tem a teoria macroeconômica correta.


Referências bibliográficas

COSTA, Sílvio. Ensinamentos da Comuna de Paris In PINHEIRO, Milton (org.). 140 anos da Comuna de Paris. São Paulo: Outras Expressões, 2011.

NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo: editora Cortez, 2010.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

Bank Of England. Money creation in the modern economy. Disponível em: https://www.bankofengland.co.uk/quarterly-bulletin/2014/q1/money-creation-in-the-modern-economy