Avá-Guaranis sofrem com escalada de ataques em Guaíra (PR) enquanto demarcação da Terra Indígena está paralisada

Relatório do MPF revela a ilegalidade na aquisição de terras por fazendeiros, enquanto ataques e intimidações contra os indígenas se intensificam, evidenciando a fragilidade dos direitos constitucionais e a necessidade da demarcação imediata das terras indígenas.

Avá-Guaranis sofrem com escalada de ataques em Guaíra (PR) enquanto demarcação da Terra Indígena está paralisada
Reprodução/Foto: Comunidade Avá-Guarani

Por Redação

Os Avá-Guarani da aldeia Yvy Okaju sofreram quatro ataques entre os dias 29 de dezembro e 3 de janeiro. Cinco indígenas foram baleados e diversas moradias e plantações foram queimadas. Uma liderança indígena, não identificada por questões de segurança, relatou à Agência Pública: “Já falamos para as autoridades, mais de uma vez, que a nossa situação é uma verdadeira calamidade. Parece que ninguém vai conseguir fazer nada por nós”.

A comunidade Yvy Okaju é uma das 14 aldeias que compõem a Terra Indígena (TI) Tekoha Guasú Guavirá, localizada na região Oeste do Paraná. São 24 mil hectares de território dos Avá-Guarani, reconhecidos e delimitados pela Funai em 2018. No entanto, a demarcação da TI segue paralisada, o que contribui para ações de violência e intimidação dos fazendeiros da região para expulsar os indígenas de seu território.

Atualmente, plantações de soja e milho ocupam a maior parte desta TI, conforme Mapa de Uso e Ocupação do Solo abaixo. Segundo o relatório "Impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá/Oeste do Paraná", cerca de 60% da área é destinada a atividades agropecuárias, enquanto apenas 12,4% da vegetação nativa original ainda existe. O restante do território é ocupado por plantações de eucalipto (2,8%), áreas de água (22,8%), zonas urbanas (0,13%) e pequenas áreas com moradias e roças indígenas (1,13%). O estudo, realizado pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), alerta para o acesso restrito dos Avá-Guarani ao território, essencial para sua cultura e subsistência, muitas vezes bloqueado por proprietários privados.

Mapa de uso e ocupação do solo Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, 2021. Fonte: CGY, 2023.

Em 2017, o CGY publicou um relatório, resultado de uma pesquisa que incluiu entrevistas com moradores das 14 aldeias da região, que aponta como os indígenas foram constantemente assediados por agentes públicos e particulares para que abandonem suas terras e desistam das reivindicações de demarcação. As violações incluem agressões físicas, ameaças de morte, ofertas de vantagens financeiras para que deixem a área e até mesmo ações de grupos armados. Além disso, os Avá-Guarani enfrentam dificuldades no acesso à saúde, educação e justiça, e são frequentemente vítimas de discriminação e racismo.

Em 2018, a FUNAI publicou o relatório de identificação e delimitação da terra. No entanto, em 2020, o próprio órgão, sob influência do governo Bolsonaro-Mourão, anulou o relatório. Em 2023, a FUNAI retomou o processo de demarcação, no entanto, nenhuma ação concreta foi realizada. Nesse contexto, as ações de retomada da TI Guasu Guavirá pelo povo Avá-Guarani se intensificaram em resposta à morosidade do processo de demarcação e à crescente violência sofrida no território.

Impulsionados pela necessidade de garantir sua sobrevivência física e cultural, os Avá-Guarani têm ocupado áreas dentro das terras indígenas tradicionalmente reconhecidas, mesmo com a forte resistência de fazendeiros e seus grupos armados. O território passou a ser palco de uma escalada de violência. Ações como invasões, ameaças e ataques organizados por fazendeiros contra os indígenas se intensificaram, culminando em feridos e hospitalizações. Desde o final de 2023, “12 pessoas foram feridas por arma de fogo, carregando até hoje cicatrizes e chumbo no corpo”, segundo relato do Cacique Ilson Soares Karai. Foi o que aconteceu no último 31 de dezembro, um dos indígenas alvejados no braço por um rifle .22 ficará com a bala alojada, sem que possa ser retirada, segundo os médicos do Hospital Bom Jesus (Toledo/PR).

A resposta do governo federal está centrada na presença da Força Nacional na Terra Indígena Guasu Guavirá, autorizada pela Portaria nº 812 do Ministério da Justiça, e é alvo de críticas por parte dos Avá-Guarani. Embora o governo afirme que a medida visa proteger a comunidade Avá-Guarani, lideranças indígenas denunciam que a atuação da Força é insuficiente e ineficaz para impedir os ataques. "Enquanto a Força Nacional estava em um canto, a aldeia era atacada por outro", relata uma liderança Avá-Guarani, denunciando a falta de proteção e a vulnerabilidade da comunidade frente aos ataques de pistoleiros. Os Avá-Guarani questionam a postura do governo, que prioriza o uso da força em vez de agir na raiz do problema, garantindo a demarcação do território e a investigação e punição dos responsáveis pelas violências. Para eles, a verdadeira segurança só virá com a demarcação de suas terras e o respeito aos seus direitos.

Na justiça, a demarcação da Terra Indígena Guasu Guavirá enfrenta duas ações, uma conjunta das prefeituras de Guaíra e Terra Roxa e outra da Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep), com o objetivo de anular o processo de demarcação, alegando prejuízos econômicos e questionando a legitimidade da ocupação tradicional indígena. Paralelamente, a Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), cuja sede é em Guaíra, tem atuado ativamente contra os Avá-Guarani, promovendo campanhas racistas, pressionando autoridades e intimidando lideranças indígenas.

Segundo a CGY,

No escopo da campanha de ódio implantada contra os Avá-Guarani é recorrente o questionamento de sua identidade étnica como tentativa de pôr em questão seus direitos territoriais, assim como a inversão da ilegalidade, tornando os indígenas os invasores de seu próprio território, em vez de se reconhecer os seus direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas e repará-los pela titulação indevida e alagamento de suas terras. Essas dissimulações estão sugeridas, por exemplo, nas conceituações enquanto “invasores”, “paraguaios” e “bugres”.

Os processos chegaram até o STF, cuja resposta é tentar conciliar interesses inconciliáveis, tanto no âmbito da Comissão de Conciliação do Marco Temporal, criada pelo ministro Gilmar Mendes, quanto da Comissão Nacional de Conflitos Fundiários do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na avaliação da representação jurídica dos Avá-Guarani, “enquanto o Judiciário tenta conciliar, o cotidiano dessas comunidades segue marcado pela violência, ausência de água potável, saneamento e saúde”.

A tentativa de conciliação no CNJ, ocorre no âmbito da Ação Cível Originária (ACO) 3.555, promovida pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com o objetivo de reparar o longo histórico de violências sofridas pelos Avá-Guarani do oeste do Paraná, desde a perda de terras até agressões durante a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu na década de 1970. A ação descreve assassinatos, ocultação de corpos e destruição de aldeias durante a construção da usina. Para a CGY, a ACO 3.555 representa um marco na luta por justiça de transição, buscando responsabilizar a União, Funai, Incra, o estado do Paraná e a Itaipu Binacional pelas violações. Uma das medidas emergenciais defendidas pela CGY é a regularização fundiária dos territórios indígenas por meio da aquisição de imóveis pela Itaipu Binacional. A empresa reconheceu em junho de 2023 a violação de direitos do povo Avá Guarani impactado pela construção e funcionamento da usina.

O confinamento territorial dos Avá Guarani foi acentuado pelo desenvolvimento do agronegócio no Oeste do Paraná. Segundo documento da CGY,

A representação difundida pelo setor ruralista da região enquanto “celeiro do mundo” não se constrói sem o violento apagamento da presença originária do povo Avá-Guarani. As terras ocupadas tradicionalmente foram convertidas em monoculturas mediante o histórico esbulho de seu território, marcado por remoções forçadas, mortes, titulação indevida de suas terras, alagamento parcial de seu território pela UHE de Itaipu e a devastação ambiental de toda a região.
Moradia em Tekoha Tatury ao lado de lavoura de soja (CGY, 2022).

Um relatório técnico do Ministério Público Federal, dirigido pelo professor de Geografia Agrária da USP, Ariovaldo Umbelino de Oliveira, revela que as terras da área indígena Guasu Guavirá, no oeste do Paraná, foram adquiridas ilegalmente por fazendeiros e empresas. O estudo da cadeia dominial demonstra que os títulos de propriedade são nulos, principalmente por terem sido emitidos pelo Estado dentro da faixa de fronteira, área que legalmente pertencia à União. Além disso, muitos títulos apresentam irregularidades como sobreposições, falta de registro de origem e descumprimento de princípios básicos. A titulação irregular dessas terras é mais um episódio de grilagem das terras públicas, com apoio do próprio Estado, e contribuiu para o acirramento dos conflitos na região e para a violação dos direitos dos indígenas Avá-Guarani.

O apoio dado pelo Estado brasileiro ao setor ruralista e à produção de commodities agrícolas não é dado ao povo Avá-Guarani da mesma forma. Pelo contrário, o Estado perpetua a desterritorialização do povo Avá-Guarani. Atualmente, a maior parte das aldeias de Guasú Guavirá fazem divisa com lavouras de soja, em alguns casos, com distância inferior a 2 metros.

Quintal de moradia em Tekoha Guarani, começando a ser reflorestado em 2016, no limite com lavoura de soja (Acervo CTI, 2016).

 A fome vivida pelos Avá-Guarani em Tekoha Guasu Guavirá desmascara a falácia do discurso do agronegócio que "alimenta o mundo". Enquanto extensas áreas de monocultura se espalham pelo território ancestral, a conversão da terra em commodity inverte a lógica da roça indígena: deixar de alimentar as famílias para servir ao mercado global. "Hoje tem grandes campos de soja a perder de vista, e os ruralistas falam que estão plantando pro Brasil comer", denuncia Karai Okaju, liderança Avá-Guarani, expondo o contraste entre a abundância da produção e a escassez na mesa de quem teve sua terra tomada. Essa realidade, onde a fome não é fruto da ausência, mas da perversidade de um sistema que prioriza o lucro em detrimento da vida, ilustra a incompatibilidade entre a demarcação das terras indígenas e a expansão do agronegócio.

A necessidade de crescimento contínuo do setor, como aponta Okaju, impõe a busca por novas áreas, o que invariavelmente leva à invasão de territórios indígenas e à destruição ambiental, com o desaparecimento de nascentes e matas. "O agronegócio é uma coisa que, se não expandir, ele morre", afirma a liderança Avá-Guarani, revelando a lógica perversa de um modelo que se sustenta na apropriação de terras e na exploração da natureza, resultando na redução drástica do território Guarani e na negação da vida e da cultura dos povos indígenas.