Assimilação para acabar com a cultura colonizada

Estabelecida uma escala de valores em cima das diferentes religiões em contato e elegendo-se o catolicismo como religião superior, teremos como conclusão lógica a necessidade de se fazer com que religiões chamadas fetichistas, inferiores, se incorporem, também, aos padrões cristãos de um modo geral

Assimilação para acabar com a cultura colonizada
A Coroação do arraial (2024), Gustavo Nazareno.

Por Clóvis Moura

Excerto de Sociologia do negro brasileiro (1988), Perspectiva, 2019, p. 69-72.


O problema da assimilação, no seu aspecto lato, tem uma conotação política. A política assimilacionista foi, sempre, aquela que as metrópoles pregavam como solução ideal para neutralizar a resistência cultural, social e política das colônias. O chamado processo civilizatório (as metrópoles tinham sempre um papel “civilizador”) era tornar as populações subordinadas aos padrões culturais e valores políticos do colonizador. Esse aspecto já foi analisado por Amílcar Cabral. Diz ele: 

É, por exemplo, o caso da pretensa teoria da assimilação progressiva das populações nativas, que não passa de tentativa, mais ou menos violenta, de negar a cultura do povo em questão. O nítido fracasso dessa “teoria”, posta em prática por algumas potências coloniais, entre as quais Portugal, é a prova mais evidente da sua inviabilidade, senão mesmo do seu caráter desumano. [...] Esses fatos dão bem a medida do drama do domínio estrangeiro perante a realidade cultural do povo dominado. Demonstram igualmente a íntima ligação, de dependência e reciprocidade, que existe entre o fato cultural e o fato econômico [político] no comportamento das sociedades humanas. [...] O valor da cultura como elemento de resistência ao domínio estrangeiro reside no fato de ela ser a manifestação vigorosa, no plano ideológico ou idealista, da realidade material e histórica da sociedade dominada ou a dominar. Fruto da história de um povo, a cultura determina simultaneamente a história pela influência positiva ou negativa que exerce sobre a evolução das relações entre o homem e o seu meio e entre os homens ou grupos humanos no seio de uma sociedade, assim como entre sociedades diferentes. [Amílcar Cabral, A Arma da teoria, 1966].

No caso específico do Brasil em relação às culturas afro-brasileiras, há nuanças diferenciadoras, pois não estamos diante de um país ocupado por membros de uma população estrangeira, mas o conteúdo do assimilacionismo, a sua estratégia ideológica é a mesma. Todas as técnicas de incentivo à assimilação, desde a catequese e cristianização aos planos regionais e “científicos” de etnólogos contratados por instituições colonizadoras, foram e continuam sendo empregadas para que a assimilação se mantenha acelerada. Apesar dessas nuanças específicas nas relações interétnicas entre “brancos” e negros no âmbito do contato religioso, o aparelho de dominação ideológico da religião católica dominadora continua atuando no sentido de fazer com que, via sincretismo, as religiões afro-brasileiras sejam incorporadas ao bojo do catolicismo e permaneçam assimiladas no nível de catolicismo popular.

Estabelecida uma escala de valores em cima das diferentes religiões em contato e elegendo-se o catolicismo como religião superior, teremos como conclusão lógica a necessidade de se fazer com que as religiões chamadas fetichistas, inferiores, se incorporem, também, aos padrões católicos ou cristãos de um modo geral. Esse processo deve se dar da mesma forma como, nos contatos étnicos, se apregoa um branqueamento progressivo da nossa população através da miscigenação até chegar-se a um tipo o mais próximo possível do branco europeu.

Essa assimilação assim concebida tem uma essência escamoteadora da realidade via valores neocolonialistas, ideologia que ainda faz parte do aparelho de dominação das classes dominantes do Brasil e de grandes camadas por elas influenciadas. Tomando-se como perspectiva de análise uma visão alienada do problema, a conclusão que se tira é de que, de fato, essas religiões fetichistas existentes devem ser incorporadas às civilizadas, e seus membros ou grupos não assimilados, transformados em quistos exóticos, em reservas religiosas que não mais representam os padrões da cultura que foi e está sendo elaborada: a cultura nacional. Folcloriza-se, então, esses cultos religiosos não assimilados e eles são apresentados e/ou estudados como representantes de religiões enlatadas, resquícios do passado, fósseis religiosos sem nenhuma função dinâmica no presente.

Folclorizados os grupos representativos das religiões afro-brasileiras, passa-se a não se ver mais funcionalidade nas mesmas, isto é, elas não desempenham mais nenhum papel religioso dinâmico, servindo apenas para serem vistas, de fora para dentro, como, não direi um espetáculo, mas como amostragem de uma manifestação religiosa que não se encaixa mais no sentido da dinâmica da sociedade brasileira e da sua cultura nacional. São, portanto, objetos de estudo para se demonstrar como a assimilação incorporou as populações afro-brasileiras ao processo civilizatório; e a conservação dessas religiões, por outro lado, serve para mostrar a existência de grupos que não tiveram condições de acompanhar o ritmo assimilacionista do nosso desenvolvimento social, cultural e religioso, atrasando-se na história.

Em cima disso há, evidentemente, toda uma produção acadêmica bastante diversificada. Existe, mesmo, a participação de personalidades e autoridades acadêmicas em reuniões de entidades religiosas negras, todas, porém, ou a sua maioria esmagadora, vendo as religiões afro-brasileiras como componentes inferiores do mundo religioso institucional. O próprio paternalismo de alguns, que no passado se propuseram paradoxalmente a dar uma assistência psiquiátrica a essas entidades (Ulisses Pernambuco, em Recife), bem demonstra como ainda estamos longe de ver essas religiões como um dos componentes normais do mundo religioso de uma grande parte da nossa sociedade, da mesma forma que as religiões de outras etnias que para aqui vieram.

O que não se pode aceitar, mesmo sem se tomar nenhum partido religioso específico desta ou daquela religião – como é o nosso caso –, é ver-se as religiões afro-brasileiras consideradas como coisas exóticas, e, ao mesmo tempo, defender-se o reconhecimento do direito – aliás plenamente justificável – para outras religiões que vieram posteriormente, como o budismo do grupo japonês. Elas já se incorporaram aos padrões da nossa cultura, pelo menos regionalmente, mas as religiões afro-brasileiras devem ser assimiladas pelos padrões do catolicismo.

O que significa, em última instância, esse interesse assimilacionista da parte de entidades governamentais, grupos e instituições religiosas, segmentos da própria comunidade científica em relação às religiões dos descendentes de africanos? Temos de cristianizar os adeptos dessas religiões da mesma forma que somos forçados a branquear a nossa população? Por que o candomblé e outras formas de manifestação do mundo religioso afro-brasileiro devem ser vigiados, fiscalizados, assistidos e, muitas vezes, perseguidos, enquanto as demais religiões conseguem manter, conservar e desenvolver, dentro de padrões institucionais, os seus nichos religiosos, sem que sejam consideradas inferiores, exóticas, fetichistas, animistas ou patológicas?

É sobre esse assunto que iremos nos deter no nosso último nível de reflexão sobre o tema. As religiões africanas, ao serem transplantadas compulsoriamente para o Brasil, faziam parte de padrões culturais daquelas etnias que foram transformadas em populações escravas. Essas religiões assim transportadas eram, por inúmeros mecanismos estabelecidos pelo aparelho de dominação ideológica colonial, consideradas oriundas de populações “bárbaras” que, por isso mesmo, foram escravizadas. A religião dominante, do escravizador, no caso concreto que estamos analisando, o catoli- cismo, fazia parte desse mecanismo de dominação não apenas em nível ideológico, mas também em nível de participação estrutural no processo de escravização dessas populações.