'As tarefas dos comunistas quanto à questão ambiental' (Jaqueline Tavares)

Não existe luta ambiental sem combate ao neoliberalismo, sem autonomia política das organizações da classe, sem compreensão científica materialista da realidade, sem movimento de massas, sem agitação e propaganda, sem finanças. A pauta ambiental não está só na greve do clima.

'As tarefas dos comunistas quanto à questão ambiental' (Jaqueline Tavares)
"Precisamos construir pouco a pouco nossas posições e iniciativas, mas fazê-lo ignorando a luta daqueles que já a travam há décadas ou mesmo séculos não é apenas esquerdista, mas profundamente arrogante."

Por Jaqueline Tavares para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Os impactos da mudança climática já anunciados há décadas pelos cientistas têm ao longo desse ano se escancarado diante de nós, com ondas de calor fora de época, verões agressivamente quentes, furacões e tempestades que assolaram dezenas de cidades e um caos generalizado no clima, gerando piora na qualidade de vida e um rastro de centenas de milhares de mortos.

A situação é urgente e fatal, principalmente para os mais pobres, vulneráveis e habitantes do terceiro mundo. A urgência coloca na ordem do dia a necessidade incontornável de nos debruçarmos sobre a pauta, de deixar de lado as respostas preguiçosas e a negligência, e também a demanda de não apenas de apelarmos à sua importância, mas de formularmos concretamente a linha dos comunistas, suas propostas, tarefas, seu horizonte de ação e sua diferenciação acerca de outros campos políticos.

Essa tribuna fará um breve diálogo de fundo com as tribunas já lançadas sobre o tema, buscando avançar em alguns pontos, das propostas colocadas e sua materialização.

Um debate fundamental é o de diálogo e crítica sobre  a abordagem ecossocialista, que considero a mais avançada hoje no sentido de buscar formular sobre o tema, mas que tem consigo uma série de limitações acerca do seu caráter de classe, de nação e de debates ligados à soberania nacional e imperialismo. Esse é um debate complexo, porém, ao qual pretendo dedicar uma tribuna específica para construir uma crítica qualificada, mais do que um comentário raso lateral.

Por fim, ambas as tribunas, apesar de não sobre gênero, também abordam a dificuldade de participar do debate das autoras, ambas anônimas, mas que se identificam como mulheres. Esse é um debate importante, mas também complexo demais para ser abordado como comentário. A discussão sobre a participação ou não participação das mulheres nos debates, os motivos dessa ocorrência e as medidas que devemos tomar para reverter esse quadro merecem em si uma tribuna própria, que pretendo fazer em um futuro próximo.

I. Emergência, urgência e desespero

Apesar das diferenças de como o impacto ambiental é sentido dependendo da classe, nacionalidade e situação de saúde, a pauta ambiental é uma pauta global, que afeta toda a população mundial de forma violenta e incontornável.

Podemos pensar formas de reduzir a temperatura global e frear o derretimento das calotas polares, mas não podemos impedir o nível do Oceano de subir ou retirar a sua água uma vez que as geleiras derretam. Podemos colocar ar condicionado nas nossas casas, ventiladores, plantar árvores nas cidades para reduzir o calor, mas não conseguimos mexer magicamente no termostato da Terra. Podemos buscar abrigo, construir casas mais resistentes, intervir no planejamento das cidades, mas não podemos ressuscitar aqueles vitimados pelas enchentes e deslizamentos de terra.

Tudo isso é, compreensivelmente, desesperador. É como se assistissemos em câmera lenta uma espécie de apocalipse, um apocalipse menos parecido com o súbito fim do mundo do filme 2012 e mais semelhante do filme Interestelar, uma destruição gradativa que em vez de findar a vida na Terra subitamente, a transformou aos poucos em um lugar mais e mais desagrável, deixando pelo caminho vítimas esquecidas e sobreviventes amargos.

Esse cenário de fim do mundo desacelerado, realista e incontornável coloca para nós algumas ponderações. Em primeiro lugar, não se trata de algo fictício e distante: já está sobre nós, na forma do calor sufocante do último mês, das violentas chuvas no Sul do país, na seca na Amazônia. Não é mais um dado de um livro de ciências e geografia, mas a realidade sob a qual todos que são adultos hoje viverão por boa parte das suas vidas, mesmo que comecemos um processo de mitigação e reversão dessas transformações em um futuro não muito distante, porque os efeitos causados pelos últimos séculos levarão décadas a serem revertidos.

Em segundo lugar, essa realidade dada torna o debate da pauta absolutamente incontornável. Não apenas que a levantemos como importante, mas que debatamos o que realmente iremos fazer, e quais são as consequências e a eficiência das medidas a curto e médio prazo, no sentido de tornar os efeitos da mudança climática menos terríveis e, a longo prazo, de revertê-la efetivamente.

Isso passa por entender a mudança climática como parte  do cenário no qual iremos construir as nossas lutas. Como a piora da condição climática afeta a saúde da classe e dos militantes? O que devemos fazer para diminuir esses efeitos? Quais problemas irão aumentar, como iremos lidar com eles? Como o caráter de urgência dessa pauta afeta seu grau de priorização em relação à outras pautas, e ainda, como ela se imbrica com outros debates? Formas de produção, formas de industrialização, matriz energética, ciência e tecnologia, soberania alimentar, veganismo, política fiscal, teto de gastos, trabalho de massas?

Todas essas questões não serão respondidas aqui, mas parto do apelo de complexificarmos a discussão para além de um “precisamos falar do meio ambiente” e saltarmos para o que os comunistas têm a dizer, colocando uma frieza analítica em pauta com uma emergência incontornável.

Por último, e em uma nota quase otimista, o caráter vagaroso e realista da catástrofe que enfrentamos coloca: não está tudo perdido ainda. Ainda, não é irreversível. Essas são observações não para que subestimemos a emergência sobre nós ou a gravidade da situação que enfrentemos, para que procrastinamos o debate sem peso na consciência, mas que troquemos o niilismo e o desespero - compreensíveis, em um primeiro momento - pela urgência da mobilização.

A possibilidade de reverter esse quadro depende da nossa capacidade, como classe, de nos organizarmos para derrubar o sistema que gera a lógica de destruição ambiental que enfrentamos e, ao mesmo tempo, ainda sob esse sistema, de encontrar formas de mitigar os efeitos da destruição ambiental e construir novas formas de pensar a relação com o ambiente. O esforço aqui é fazer algumas contribuições quanto a isso.

II. Formular e debater

O primeiro passo, que já está sendo dado aqui e pelas tribunas que me antecederam, é debater e formular sobre a pauta. Esse esforço formulativo deve ir da apropriação mínima dos debates técnicos do tema, até pensar formas de atuação que coloquem em prática a preocupação com a mudança climática no cotidiano militante, transformando as palavras em ações.

A apropriação técnica não aplica que todos os militantes devem se tornar experts em todos os temas, mas devem ter um domínio mínimo das informações que os guiam e a formulação coletiva em torno das pautas.

Significa também a aproximação, a disputa ideológica e a valorização dos militantes especializados nas áreas ligadas a essas discussões - a meu ver, algo profundamente negligenciado pelas esquerdas. Em um mundo político progressista dominado por especialistas em humanidades, é fundamental cada vez mais recrutamos, formamos e darmos voz aos engenheiros ambientais, engenheiros nucleares, físicos, químicos, biólogos, geógrafos, geólogos, climatologistas e todo uma série de profissionais que não tem apenas impressões e leituras pontuais sobre os temas, mas que tem na natureza como seu objeto de estudo direto.

Isso não significa que pessoas fora da área de especialização não podem e devem se formar e debater sobre o tema - seria hipócrita da minha parte dizê-lo -, mas que existe sim valor na especialização e no conhecimento científico de áreas diretamente ligadas a esses temas. Em uma esquerda que a crítica da ciência burguesa tem flertando perigosamente com um anti cientificismo irracionalista, esse é um lembrete fundamental.

Não basta que os comunistas tenham apenas um conhecimento teórico sobre a pauta, porém. É necessário também um entendimento do trabalho concreto já feito por diferentes movimentos, partidos e frentes de atuação nas diferentes lutas pelo combate às mudanças climáticas e suas consequências. Se nós estamos “chegando agora” na luta, isso não é verdade para milhões de trabalhadores que a constroem pelo mundo, em diferentes perspectivas.

O contato e a inserção nessas lutas não implica um apoio acrítico ou uma adesão automática que anule as iniciativas próprias dos comunistas, mas a construção de um trabalho concreto que entenda de onde estamos partindo, os avanços já feitos na luta, seus limites e necessidades. ONGs; partidos; movimentos de lutas por combate à problemas específicos - como o Movimento dos Atingidos por Barragens; o movimento indígena - que vai para muito além da pauta ambiental, mas tem na relação com a natureza e a sua destruição predatória pelo colonialismo branco uma questão fundamental de sobrevivência material e mesmo cultural - precisam ser conhecidos, apoiados, debatidos. Precisamos construir pouco a pouco nossas posições e iniciativas, mas fazê-lo ignorando a luta daqueles que já a travam há décadas ou mesmo séculos não é apenas esquerdista, mas profundamente arrogante.

Por último, é urgente as lutas em torno da questão ambiental à nossa militância cotidiana. Por mais que esses temas possam aparecer separados nos debates, na realidade eles não se manifestam de forma separada. É impossível falar de políticas governamentais de proteção do meio ambiente sem falar de Teto de Gastos e, portanto, de mobilizações e uma agitação de pressão sobre a política financeira do governo, ficando em apenas um exemplo. Pouco efeito tem também nos engajamos em manifestações pontuais sobre meio ambiente só para bater ponto, sem torná-la parte da nossa propaganda cotidiana. A questão ambiental deve ser um eixo que corta todas nossas formas de atuação e deve se manifestar em tarefas objetivas.

III. Proteger a classe

Outras são as tarefas de proteção à classe trabalhadora dos efeitos catastróficos imediatos e futuros das mudanças climáticas. Os mais pobres sempre foram os mais atingidos por enchentes, deslizamentos de barragens, temperaturas extremas, doenças tropicais, condições de trabalho insalubres e toda uma série de mazelas que sempre ocorreram e tendem a piorar brutalmente diante da catástrofe climática. Tanto por solidariedade de classe quanto pela necessidade de garantir a nossa sobrevivência para qualquer luta a médio e longo prazo, lidar com essas transformações se coloca na ordem do dia do movimento comunista.

Como fazê-lo, porém, é uma pergunta complexa. As consequências das catástrofes são variadas e as possibilidades de intervenção para redução de seus danos dependem tanto de uma ampla compreensão dos possíveis efeitos da mudança climática sobre diferentes segmentos da população e de uma profunda inserção em seus setores mais vulneráveis.

Pensemos alguns exemplos concretos:

Campanhas de arrecadação e distribuição de doações para vítimas de catástrofes naturais;

Atuação parlamentar, institucional e de mobilização pública pela criação e aplicação de leis que minimizem os efeitos das mudanças climáticas (tais como reformas urbanas que diminuam o efeito de enchentes, ou campanhas para acolhimento e cuidado de população de rua, principalmente em situações climáticas extremas);

Campanhas de agitação em torno dos encontros climáticos e das metas do ecocapitalismo quanto às medidas paliativas de redução dos efeitos da mudança climática, buscando elevá-las;

Mutirões e campanhas para construção de pequenas obras e medidas para a minimização dos efeitos de mudança climática, tais como arborização de bairros, ou construção de estruturas de escoamento em áreas alagáveis;

Campanhas de arrecadação de itens para lidar com temperaturas extremas, tais como ventiladores, aquecedores, ar condicionados e itens semelhantes, visando a população mais pobre e vulnerável de idosos, doentes e crianças.

Os exemplos podem ir ao infinito e, evidentemente, por si não serão suficientes para resolver nada, inclusive correndo o risco de cair em um trabalho assistencialista genérico. Mas podem ser importantes no sentido de garantir a sobrevivência e melhorar a qualidade de vida daqueles que sentiram antes (e na verdade, já vem sentindo há muito tempo) os efeitos que a crise do clima pode causar. Podem permitir ainda um maior contato e estreitamento de laços entre todos os participantes das campanhas e mobilizações, uma forma de construção de solidariedade e criação de espaços  para debater politicamente essas mudanças.

Essas propostas são inseparáveis de um debate sobre a construção de um trabalho de massas, sobretudo nas periferias e regiões socialmente vulneráveis das cidades, das grandes metrópoles aos vilarejos, sendo um exemplo da necessidade de debatermos a pauta em conexão a diferentes aspectos do nosso trabalho.

IV. Conscientizar a classe

A agitação, propaganda e conscientização do conjunto da classe podem dar um sentido político e canalizar as preocupações isoladas em ação coletiva capaz de minimizar e resolver a catástrofe climática.

Como nas outras pautas, as formas de atuação são muitas. Podemos pensar em materiais propagandísticos de explicação da mudança climática, suas origens e relação com  o sistema político que vivemos.

Podemos integrar as preocupações ambientais à amplas campanhas de agitação sobre uma série de pautas. Como a privatização dos serviços de água afeta a qualidade dos mananciais, o cuidado com o ambiente e a qualidade da água que bebemos, por exemplo?

Podemos pensar em atividades educativas que não apenas cheguem já diretamente engajando nas pautas políticas, mas ampliando a compreensão científica da classe de forma que a mudança climática possa ser melhor entedida.

Podemos atuar ainda em um processo de conscientização não apenas no campo das palavras, mas das ações. Podemos construir soberania alimentar em nossos locais de atuação e na nossa própria militância, debatendo a necessidade do fim do consumo de produtos derivados de animais de uma perspectiva classista, sem moralismo, mas compreendendo essa pauta como fundamental para reversão da lógica de produção de alimentos e seu peso na destruição do ambiente, como já debatido nas tribunas recém saídas sobre veganismo e comunismo.

Para além das mobilizações imediatas, da conexão da pauta ambiental com outras - o que potencializará o impacto de todas elas, - o trabalho mais profundo de conscientização é fundamental para uma disputa ideológica do sentido que damos à natureza e nosso papel dentro dela, e para a construção de um programa socialista de longo prazo que balizará nosso caminho à revolução e as perspectivas que temos uma vez derrubado o capitalismo.

V. Um programa socialista e, enfim, a revolução

O debate das perspectivas atuais do movimento comunsita e os futuros da construção do socialismo sob uma perspectiva ecológica são questões diferentes, mas profundamente conectadas. Muito pode ser pensado já a partir de hoje, em termos de tornar nossas iniciativas como germes do poder popular de uma perspectiva ecológica.

Por exemplo, se só teremos a condição de questionar sistematicamente o consumo de carne, alterar a lógica produtiva e construir a soberania alimentar do todo da sociedade a partir da tomada dos meios de produção, o debate do sentido do veganismo e a proposta de alternativas em atuações presentes é parte do próprio processo de conscientização e viabilização do fim do consumo de carne como um projeto societário socialista. Não se trata de fazer a revolução e decretar que está proibido comer bife, mas fazer que, pela própria ideologia socialista em construção que toma aos poucos a consciência da classe e é pela classe forjada, comer carne se torne gradativamente desnecessário, obsoleto e imoral.

Da mesma forma, não iremos controlar ou construir usinas nucleares antes de uma tomada de poder. São necessários ainda, porém, debates cientificamente embasados sobre os verdadeiros riscos da energia nuclear e a poluição por ela produzida em comparação a outras formas de energia.

A compreensão da urgência estratégica de termos uma indústria armamentista e nuclear em período de transição socialista em que o mundo tenha em si sistemas políticos em conflito - digamos, em um momento que o Brasil já passou por um processo revolucionário, mas ainda algumas potências capitalistas ainda não o fizeram, por exemplo.

O entendimento da diferença das formas de produção de energia nuclear, bem como sua aplicação se dará em uma lógica econômica, produtiva e científica em muitos termos diferente da que temos hoje. Não faremos uma usina nuclear semana que vem, mas o debate ideológico, militar, econômico e científico sólido é necessário para combatermos espantalhos imperialistas anti científicos e construirmos nossas propostas de futuro.

Como uma série de debates fundamentais para o movimento comunista, a questão ambiental deve ser abordada em toda sua complexidade, demandando dos comunistas uma proposta formulativa materialista para além da constatação dos problemas, que deve construir ainda sob o capitalismo os caminhos que vamos efetivamente concretizar sob o socialismo.

Não existe luta ambiental sem combate ao neoliberalismo, sem autonomia política das organizações da classe, sem compreensão científica materialista da realidade, sem movimento de massas, sem agitação e propaganda, sem finanças. A pauta ambiental não está só na greve do clima. Está no ar que respiramos, na comida que servimos aos nossos camaradas, na mão que estendemos aos desabrigados e à compreensão que temos da natureza do átomo.

A tempestade está sob nós. Não temos atalhos, somente a revolução.