'As perguntas que recusamos' (Borboleta Vermelha)
Desde que os comunistas passaram a pleitear as pautas LGBTQIA+, nós quase só nos propusemos a defender a sobrevivência da comunidade. Claro que temos que defender o mínimo, compreender os dados, saber as expectativas de vida das populações mais ameaçadas da comunidade, mas temos que ir além disso.
Por Borboleta Vermelha para Tribuna Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
.me resumir a sobrevivência é tirar um pouco de bom que vivi.
Por muito tempo no Movimento Comunista as pautas de gênero e sexualidade foram renegadas. Isso não é segredo algum, as esquerdas trataram como doenças, degenerações pequenos-burguesas e até hoje se escuta sobre umas tais "pautas identitárias". Entretanto, atualmente, nós, comunistas, marxistas-leninistas convictos que vivemos e defendemos de maneiras mais progressistas a comunidade LGBTQIA+ e analisamos suas questões com olhares do Materialismo Histórico-Dialético, tratamos de algumas pontuações feitas por certos intelectuais – muitas vezes pós-estruturalistas, leitores de psicanálise, herdeiros de Foucault e Simone de Beauvoir – como pautas pós-modernas. Seria um grande equívoco da minha parte não dizer que há críticas de extrema validade a esses pensadores. Os "teóricos queer" muitas vezes trazem premissas problemáticas e anti-materialistas, têm leituras e proposições organizativas quase, quando não totalmente, anarquistas, usam em suas obras ideias de anti-comunistas como Orwell, mas, inegavelmente, propõem novos mundos possíveis.
Desde que os comunistas passaram a pleitear as pautas LGBTQIA+, nós quase só nos propusemos a defender a sobrevivência da comunidade. Claro que temos que defender o mínimo, compreender os dados, saber as expectativas de vida das populações mais ameaçadas da comunidade, mas temos que ir além disso. Temos que entender que essa galera tá no armário, muites por depender financeiramente da família e que, quando não dependem, vivem de sub-empregos, ou por expulsões de casa ou por ter saído para poder ser quem é, ficando relegades ao telemarketing, aos plantões de cursinhos pré-vestibulares, à prostituição ou a outras formas de empregabilidade precária e oculta da sociedade. Claro, isso é importantíssimo, mas e o que mais? O que quer essa comunidade? Por que a luta dela é a luta de todos?
Partindo dessas perguntas, acho interessante pensarmos um pouco sobre os processos de socialização e subjetivação na atual etapa do capitalismo que vivemos. Todos são socializados por uma estrutura racista, burguesa e cisheteropatriarcal. Quanto ao cisheteropatriarcado: por onde ele nos afeta? Onde essa socialização fica visível? Claro, em tudo. Sim, na maneira em que sentamos, falamos, pensamos, agimos, nos vestimos e no policiamento para isso – os riscos que correm as populações dissidentes de sairem vestidas de forma diferente da norma na rua são grandes. Meu incômodo é que parece que esquecemos que todos são socializados sob essa ótica e do fato de que nossas ações em defesa da comunidade LGBTQIA+, quando partem somente das pessoas que já se reconhecem nela, são menos eficientes. Vale aqui ressaltar o quanto essa visão pode nos trazer uma divisão mecanicista e liberal do trabalho político mesmo de nós revolucionários marxistas-leninistas, já que parece dar espaço para formulação sobre a pauta LGBTQIA+ só a pessoas LGBTQIA+, quase que inspirado na leitura mais liberal o possível da noção de “lugar de fala” (Reflexão acertadíssima pontuada por meu camarada N.A.). Não tenho grandes propostas, me radicalizei à pouco tempo e possivelmente não consiga fazer essa grande articulação para jogar aqui uma futura tese congressual, claro, tentarei. Porém agora o que consigo tentar é propor a reflexão. Então aí vai!
.um pensamento trans
Se não fosse o processo de socialização e as dificuldades de acesso material, quantas pessoas se hormonizariam? Gosto dessa pergunta, pois defendo que seriam mais pessoas já que poderíamos ser como quiséssemos, mas algumas pessoas me responderam que achavam que seriam menos, já que muitas pessoas só se hormonizam para serem reconhecidas por um pronome ou por um gênero. Gosto que essa pergunta também suscita pensar e repensar o sistema de saúde, óbvio, a coisas muito urgentes para se pensar no SUS, mas o quão acessível a gente pode tornar a questão da hormonização? Os tabus sociais também se prendem nas impossibilidades de acesso e isso também nos permite refletir sobre cirurgias de redesignação.
.uma contribuição assexual
Outra questão interessante seria pensar sobre a hiperssexualização em nossa sociedade, não digo pessoas específicas, mas penso algo como: quantas pessoas ainda transariam ou transariam do jeito que transam (não tenho muitos acumulos aind sobre a demissexuallidade, por isso não falarei mais sobre nesse texto, mas fica aqui uma nota de uma pesqusa que vale a pena para entender as conexões teórias que a demissexualidade pode proporcionar futuramente) se não fosse uma forma de subjetivação das pessoas que às transformasse em "corpos" (desculpem-me o termo pós moderno rs) de sexo, a crítica assexual (uso aqui o termo assexual para delimitar uma ampla gama de possibilidades de fuga de um padrão de performance da sexualidade) as formas de pensar profundamente alossexuais (alossexuais eu uso aqui como um termo em oposição ao assexual, alossexua é a normal de sexualização constante dos sujetos) devem ser levadas em consideração. Precisamos usar dessas críticas, por exemplo, para pensar a educação, as propagandas e sua regulamentação ainda dentro do capitalismo, precisamos pensar nos danos psicológicos e às vezes físicos que isso causa. Pensar libertação sexual hoje é, também, pensar sobre não transar, é entender que mulheres negras cis, trans e travestis tem o sexo muitas vezes como uma imposição, enquanto o feminismo branco e liberal falou por muito tempo de poder transar com varias pessoas sem ser julgada, as mulheres negras viviam com constantes assédios e formas sujeição a vivência sexual. Uma crítica assexual aos modelos de organização sexual da vida é também uma crítica anti-racista.
.outros caminhos para se caminhar
Por fim, uma pergunta que veio do meu contato com pessoas que pensam a não-monogamia (e aqui não farei a crítica ao trabalho reprodutivo e à toda divisão social do trabalho, mas acho que em outro texto, meu ou de outros camaradas, essa questão merece espaço) e dos grupos de BDSM que estudei: em outra sociabilidade, uma sociabilidade anticapitalista, como as pessoas transarão? Essa questão não trago para ser aquela pessoa chata que fica perguntando no instagram de influenciadores comunistas "no socialismo vai poder *insira aqui qualquer coisa, qualquer coisa mesmo*", questiono isso para pensarmos que a sociabilidade burguesa atinge até isso. Será que seremos tão falocêntricos, ou melhor, quantas serão as pessoas que ainda vão querer transar com penetração? Será que ainda haverá tanto sexo entre apenas duas pessoas?
.uma atualização para a noção marxista de libertação sexual
E trago aqui a minha resposta, mesmo que incompleta, já que esse é um caminho de resposta que convido os leitores desta tribuna a percorrerem comigo, para diversas questões que apontei: um socialismo-comunismo pleno (e não digo isso para invalidar as experiências socialistas que estudo e defendo com unhas e dentes, mas para pensar a construção de nosso projeto comunista enquanto partido revolucionário), trará, sobretudo, O Direito Absoluto sobre nossos corpos, nós socialistas-comunistas PRECISAMOS pensar o tesão e TODAS as formas de se existir no mundo e é nosso dever histórico construir um sistema político econômico e social que abranja todas as possibilidades de existência e vivência e isso passa por olhar o campo do sexual e essa tarefa é para ontem. O socialismo-comunismo é o Direito Absoluto sobre nossos corpos.
Por motivos pessoais, assino com o singelo pseudônimo, mas sem problemas de assumir, fora da internet, essa autoria de Borboleta Vermelha[1].
[1] Grupo gay estadunidense maoísta dos anos 70.