'As lutas LGBTQIA+ e a Revolução Brasileira - Diálogo com o camarada Rafael Moreira Neves' (Marte)
As lutas comunistas e LGBTQIA+ se encontram nos esforços incansáveis pela garantia da segurança e da vida digna para toda a classe trabalhadora, pois nossas maiores necessidades são as grandes necessidades de toda a classe.
Por Marte para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, escrevo essa tribuna para abrir um diálogo com a tribuna 'A luta LGBTQ+ trará a revolução socialista!', onde avalio que o camarada Rafael Moreira Neves, numa tentativa sincera de conectar o tema das lutas LGBTQIA+ com a construção da Revolução Brasileira, aborda o primeiro tema de forma um tanto cliché, deixando quem lê sem grandes pistas sobre quem são “as pessoas LQBTQ+”, quais são suas lutas e como elas se relacionam, de fato, com a construção de nossa revolução. A partir do texto do camarada, o que sabemos é que essas pessoas fazem parte da sociedade capitalista, aparentemente compõem uma mesma comunidade, unidas pelas formas de opressão particulares que sofrem. As conclusões imediatas que se pode fazer a partir dessas informações, é que essa comunidade tem como pauta o fim dessas opressões particulares que sofre e que, além disso, também está submetida às formas de opressão “gerais” da sociedade capitalista (exploração da força de trabalho, arbitrariedades da lei burguesa, etc.). No entanto, para entender melhor a relação das lutas LGBTQIA+ com a Revolução Brasileira, precisaremos ir além dessas conclusões, que considero um tanto óbvias. Esse “ir além” significa compreendermos o que é a comunidade LGBTQIA+, de fato, e quais são suas condições materiais de vida, pois só assim podemos entender quais são suas verdadeiras lutas.
Quem somos? Como vivemos?
Ao contrário do que boa parte dos discursos políticos faz parecer, a comunidade LGBTQIA+ não é um todo uniforme, inclusive, o número de letras na sigla e as variações da própria sigla já deveriam ser um indicativo disso. Nessa comunidade existem lésbicas, travestis, pessoas trans de várias denominações, mas também existem homens cis e pessoas heterossexuais, por exemplo, e esses dois últimos grupos costumam compor comunidades bastante distintas dos três primeiros grupos citados. Entre pessoas trans, existem as mais “passáveis” e as menos “passáveis”, isso também gera diferenças na socialização e na vida em geral. Dentro da parcela cis da comunidade, existem pessoas mais ou menos normativas (o gay “discreto” e a “bixa afeminada”, a lésbica “feminina” e a “caminhoneira”). É comum, por exemplo, que as menos normativas acabem por se aproximar mais de círculos trans do que dos círculos cis do seu próprio “nicho” (ex: uma lésbica de performance mais masculinizada ter mais homens trans, pessoas transmasculinas e não-bináries de expressão mais masculina do que mulheres cis lésbicas ou bissexuais em seu círculo de relações).
Isso tudo, camaradas, não acontece por causa da infiltração imperialista da teoria queer pós-moderna, que na verdade seria mais uma tática de “dividir para conquistar”, mas justamente por conta do que o próprio camarada Rafael pontua em sua tribuna: a fôrma cis-hetero-patriarcal que molda os sujeitos no capitalismo e a sociedad em si, sujeita corpos diferentes a opressões diferentes e isso não tem necessariamente a ver com o que temos entre as pernas. Pois o que se avalia no cotidiano é a performance de gênero. Por isso que uma lésbica cis de expressão mais masculina pode vir a se identificar mais com grupos sociais de maioria transmasculina de expressão de gênero semelhante, pois sua performance de gênero se distancia da norma cis.
Ou seja, existem gays, lésbicas e bissexuais cis e trans, e dentro da próprias comunidades cis existe a subdivisão entre “normativos” e “não-normativos”. Para além disso, existem a não-binariedade e a agenereidade, identidades cuja própria existência já pode ser vista como um desafio à norma, pois a rejeitam quase que por completo. Eu, particularmente, compreendo que ser travesti é ser não-binárie e que ser não-binárie é ser trans. Existem travestis que entendem que ser travesti é também ser gay. Existem pessoas agênero que se compreendem dentro do espectro da não-binariedade e outras que não. Resumindo, a “comunidade LGBTQIA+” é cheia de subdivisões e intersecções entre essas subdivisões, e cada um desses grupos terá suas vivências mais ou menos particulares na sociedade capitalista.
Dito isso, é inegável que pessoas LGB cis terão, via de regra, vidas “menos piores” que pessoas trans (nb, travesti, etc.), intersexo e agênero, pois quem é cis costuma ter menores dificuldades de se integrar à sociedade, pelo menos aquelas pessoas cis que performam maior normatividade. As violências que permeiam a comunidade atingem as pessoas trans com muito mais força, não à toa temos dados tão alarmantes e grotescos sobre assassinatos de pessoas trans, população de rua trans, prostituição trans e violência doméstica contra pessoas trans no Brasil. Aqui acho necessário ressaltar a diferença entre identidade de gênero e sexualidade. Mesmo que seja muito doloroso, a nossa sexualidade ainda pode ser algo que passe despercebido aos olhos da maioria, é mais fácil de esconder. A nossa identidade de gênero, não. Enquanto a violência contra gays, lésbicas e bissexuais cis é sobre sair na rua “com alguém”, a violência contra as pessoas trans é sobre sair na rua. Pois não importa com quem estou de mãos dadas, meu corpo está marcado como corpo de uma traidora de gênero, não é algo ocultável sem que nos custe muita dor e repressão. Não dá pra sair na rua “escondido” todos os dias, enquanto a nossa atividade sexual é algo que se esconde com maior facilidade, mas aí também precisamos falar sobre “banheirão” e outras práticas sexuais que a rejeição familiar e a precarização da vida levam as pessoas LGBTQIA+ a adotar, pois é muito mais difícil de transar quando você não tem um lugar seguro para isso (e aí nos sobram os lugares nada seguros em condições sanitárias nada ideais).
Em suma, a realidade da nossa comunidade é, em geral, de muita dor, negligência, rejeição e marginalidade/clandestinidade, em especial para a parcela “não-cis” e “não-masculina” da comunidade (uso esses termos para não ficar cansativo a citação individual de cada um dos grupos, mais uma vez). As travestis, por exemplo, são geralmente expulsas de casa antes dos 15 anos de idade e 90% de nós se prostitui para se sustentar. Essa realidade nos coloca em situações de gigantesca vulnerabilidade (sexual, sanitária, alimentar, física e moral em geral), pois também temos maior dificuldade de conseguir emprego formal (e informal também), o que nos leva, muitas vezes, a sermos privadas da liberdade de escolher não nos colocarmos em perigo em nome de nossa própria sobrevivência. Se existe um grupo social, junto das pessoas negras e indígenas, que pode encher a boca para dizer que “não há tempo para ter medo”, esse grupo somos nós, pessoas trans. A grande maioria de nós tem literalmente nada a perder, senão nossas correntes. E um mundo a conquistar.
Por outro lado, também é verdade que a comunidade LGBTQIA+ aglutina em si movimentos de cultura com uma potência sem igual, como é a arte drag e a cultura ballroom (sim monas, espaços de hegemonia gay, mas isso não mata suas potencialidades), ambas vindas dos EUA, mas muito bem apropriadas e incorporadas por nós, brasileires. Assim como temos nossos próprios movimentos de origem local, como uma forte cena trans e travesti na música, composta por nomes como Liniker, Linn da Quebrada, Majur, Jup do Bairro, Urias e drags como Pabllo Vittar. Esses são só alguns nomes do mainstream. Na cidade de São Paulo existe uma batalha de rap chamada “Dominação”, uma batalha temática onde não podem rimar homens cis. A batalha é organizada por mulheres cis LGBTQIA+ e pessoas transmasculinas das periferias de São Paulo e atrai pessoas de toda a comunidade, de diversas idades. Atualmente, a Dominação conta com auxílio do governo via edital de cultura, isso garante para batalha um palco, equipamento de som e cobertura caso chova. Vejo nesse espaço um exemplo de movimento cultural com potencial gigantesco, pois quem dá os temas das batalhas é o público, disso saem rimas tanto sobre mais valia, transgenereidade e antirracismo, como sobre sexo e romance. É um espaço de humanização para todes que estão ali presentes.
O outro lado dessa moeda é o fato de que a teoria e a prática políticas da comunidade LGBTQIA+ estão sob a hegemonia da ideologia liberal, principalmente a comunidade gay, o setor mais “privilegiado” da comunidade, por ser majoritariamente masculino e cis e, portanto, mais facilmente aproximável da imagem de nossos exploradores. Mas não se enganem, a hegemonia liberal permeia toda a sigla, pois ela é apenas um recorte da hegemonia liberal geral que se vê na sociedade burguesa como um todo. O liberalismo na comunidade LGBTQIA+ nos vende representatividade vazia como vitória coletiva, nos faz acreditar que o auge de nossas lutas é reivindicar o “direito de amar”, o “respeito” a “toda forma de amor”, entre outros clichés neoliberais com purpurina que se vê a cada dois anos, nas campanhas eleitorais. Esse discurso nos apassiva, rebaixa nosso horizonte e ainda nos leva à idealização das relações amorosas, como se a opressão de gênero e sexualidade fosse acabar quando pessoas LGBTQIA+ puderem se relacionar sem serem abertamente discriminadas na rua ou em casa. Mas não é óbvio que desejamos o fim dessas opressões? Como já disse, me parece que estamos tratando pautas mínimas como pautas máximas.
Pelo que lutamos (ou “o que fazer?”)?
Como já foi falado acima, atualmente a comunidade se movimenta politicamente em torno de pautas liberais e o faz de forma liberal também, geralmente via internet (hashtags, petições, etc.) e institucionalmente (demandando mudanças na legislação burguesa ou votando nas eleições burguesas). Ocorre uma supervalorização da “estética LGBT” (bandeiras e símbolos que remetem às comunidades LGBTQIA+), dispensando o conteúdo. Para não falar sobre o estereótipo do “LGBT povo animado” (acho que atualmente estamos mais pra povo cansado), que nos resume a pessoas festeiras.
Enquanto isso, seguimos vivendo sob as condições mencionadas anteriormente, de profunda violência e vulnerabilidade. Pois então, penso mais uma vez ser “óbvio”: devemos lutar por moradia, saúde, alimentação, aprender a nos defendermos de nossos agressores para nos pormos de pé e futuramente derrubá-los de suas posições de poder. É como agitava a camarada Juliana Guerra em sua campanha eleitoral em 2022: pauta LGBT é casa, comida e saúde pública, universal e gratuita. Porque para conseguir amar, camaradas, é preciso primeiro estar viva, saudável, descansada e bem alimentada. O mesmo vale para conseguir lutar. Não esperem que as travestis saiam do vício, da doença e da prostituição diretamente para as fileiras da Revolução. Por isso que discordo da formulação do camarada Rafael, não podemos esperar o socialismo para termos nossos direitos garantidos. Quem defende isso, o faz de uma posição confortável, de quem tem um teto e um prato de comida garantidos dia sim e dia também. As lutas comunistas e LGBTQIA+ se encontram nos esforços incansáveis pela garantia da segurança e da vida digna para toda a classe trabalhadora, pois nossas maiores necessidades são as grandes necessidades de toda a classe. Para que consigamos articular os movimentos LGBTQIA+ com o movimento comunista, na construção da Revolução Brasileira e da Revolução Proletária Mundial, teremos que:
- Lutar em conjunto para elevar as condições de vida de toda a classe, especialmente das comunidades negras, indígenas, originárias e LGBTQIA+ (principalmente “TQIA+”)
- Vencer a disputa ideológica contra a hegemonia liberal que nos envenena contra nós mesmos
Essas lutas conjuntas pela melhoria de nossas condições de vida podem ser o início de um movimento de massas poderoso, fundado na confiança entre os comunistas e os movimentos LGBTQIA+, confiança essa fundada justamente na nossa prática, na incidência do trabalho dos comunistas no cotidiano das pessoas e não em promessas para quando chegar o socialismo. Uma grande fonte de combustível para esse movimento pode ser o fortalecimento de um movimento cultural LGBTQIA+ que identifique essa expressão cultural particular como parte da cultura popular brasileira, resgatando figuras como, por exemplo, Xica Manicongo, conhecida historicamente como a primeira travesti do Brasil, angolana escravizada e traficada para cá em fins do século XVI.
Via movimentos de cultura podemos encontrar atalhos, facilitações para fazer a disputa ideológica contra a hegemonia liberal. Enquanto comunistas, precisamos fugir da propaganda com tom professoral e de atividades formativas maçantes, temos que identificar as formas que já são familiares para as pessoas e nos utilizarmos dessas formas para propagandear nosso conteúdo. Uma vez disseminado o conteúdo, apresentamos novas formas para que a maioria da classe se aproprie delas também e para que o nosso trabalho não fique limitado pelo nível de consciência espontâneo das massas.
Como fazer?
Essas lutas podem assumir várias formas, nossas táticas devem estar sempre orientadas pelas necessidades e capacidades materiais e ter como horizonte nosso objetivo estratégico. Para monas, manas e bixas em situação de rua, podemos construir ocupações LGBTQIA+, onde se ensine autodefesa, se produza arte e que, acima de tudo, sejam espaços seguros para a comunidade. Devemos nos aproximar de quem está no trabalho sexual, seja na rua ou na internet. Podemos e devemos nos aproximar dos movimentos de cultura da comunidade, não para ensinar nada a ninguém, mas para aprender sobre a realidade das pessoas e dos espaços em que esses movimentos se constroem, nos colocando à disposição para construir conjuntamente. Por fim, devemos intensificar os estudos de gênero e sexualidade, com foco na crítica ao liberalismo dentro dos movimentos LGBTQIA+. Precisamos publicar livros sobre os temas LGBTQIA+ como publicamos Marx e Lenin e com muito mais urgência do que publicamos Marx e Lenin, pois eles já lemos e deles já falamos há muitas décadas. Está na hora de falarmos de nós, pois a subversão da binaridade de gênero e a demolição dos rótulos de sexualidade já são um passo rumo a Revolução, dado que essas rupturas desorganizam as representações e papéis a se desempenhar na família nuclear burguesa, um dos pilares materiais e ideológicos do modo de produção capitalista. É no ambiente familiar que temos as primeiras experiências da vida, portanto, também é nesse ambiente que nos deparamos primeiro com as opressões e com a alienação. Subvertidos o sistema de gênero e a monogamia (tema para outra tribuna), a família burguesa, que um dia fora sólida como rocha, desmancha no ar, e novas formas de agrupamento humano finalmente florescerão. Mas repito, o embate ideológico, teórico, contra o liberalismo nos movimentos LGBTQIA+, é apenas um pequeno passo no caminho de nossa revolução, um passo que, se dado com firmeza, poderá nos abrir portas para a experimentação de novas formas de relação e de existência ainda sob a égide do capitalismo, algo parecido com o que conhecemos pelo nome de “Poder Popular”. É esse o horizonte que defendo que sigamos.
Venceremos, camaradas!
AS BI, AS GAY, AS TRANS E AS SAPATÃO
TÃO TUDO ORGANIZADA PRA FAZER REVOLUÇÃO!