'Antiveganismo na esquerda: Uma incoerência que precisa ser superada' (Cauê Huler)
Veganismo não é dieta, não é estilo de vida. É um posicionamento ético e político em relação aos animais, e o reconhecimento de sua senciência, necessidades e subjetividades. Em suma, é práxis revolucionária, sobretudo porque é interligada com a questão ambiental e soberania alimentar.
Por Cauê Huler para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
O antiespecismo como práxis interseccional
Escrevo esse texto me dirigindo especificamente a comunistas e a outros amigos de esquerda radicalizados, inspirado pelos camaradas Felipe Resende, Marião e Camarada Rosa em suas contribuições (Pela construção de um veganismo marxista; Veganos comunistas do Brasil, uni-vos e Veganismo e Comunismo são contraditórios?) para a Tribuna de Debates.
Percebo que há algum tempo, os meios marxista-leninistas tem reproduzido uma retórica que, apesar de sólida e bem fundamentada na realidade material, se levada ao pé da letra pode, ao meu ver, causar uma incoerência com o que pregamos enquanto comunistas. Estou falando aqui da noção de ação individual. Como já bem elaborado pelos textos que citei anteriormente, há um dissonância dentro do nosso movimento quando o assunto é especismo, veganismo e exploração animal. Gostaria aqui de elucidar um pouco sobre algumas das falácias que pela minha experiência pessoal, mais ocorrem dentro das esquerdas sobre a causa animal:
1- Veganismo como ação direta/individual
A primeira que mais vejo especialmente entre marxistas-leninistas, é a fala de que o veganismo seria apenas uma ação individual, aquém de por exemplo, não usar canudos plásticos ou tomar banhos mais curtos numa tentativa de salvar o planeta. Embora isso seja tecnicamente verdade, onde a prática de não consumir alimentos e produtos de origem animal por si só não tenham um impacto relevante no que diz respeito a acabar com essa indústria, o erro fundamental do comunista (ainda) não vegano, é tratar pedaços de animais como produtos. Nós veganos e antiespecistas, queremos justamente desconstruir a noção de que uma parte animal, como um bife ou sobrecoxa, é equivalente a recursos naturais como água, madeira ou combustíveis fosseis. Nós entendemos que é o capitalismo que transformou partes do corpo animal em mercadoria, que reduziu este ser vivo à condição de commodity. Logo, tratar carne e derivados animais como se fossem recursos naturais, que estão ali meramente para satisfazer nossas necessidades (necessidades estas que muitas vezes são fabricadas, pois sabemos que nutricionalmente falando, o ser humano não necessita de carne ou lacteos para se desenvolver saudavelmente, e isso inclui crianças e gestantes), é justamente operar dentro da lógica opressora do capitalismo. Esta relação então, se torna inválida pois é categoricamente diferente. E é conveniente para nós tratarmos os animais assim, pois isso nos isenta de dar a eles o benefício da consideração moral. E imagino que não preciso lembrar ao leitor que outros sistemas econômicos e grupos políticos agiam e agem de forma semelhante, operando numa lógica onde determinados corpos e condições biológicas são tratadas como inferiores em relação à classe dominante. Qualquer semelhança não é coincidência, a lógica de por trás é a mesma. Tanto que dizemos que certos corpos, sobretudo o negro e indígena, são ''animalizados'', fazendo referência à forma como vemos e tratamos seres de outras espécies. Não é incomum também dizer que certas populações são ''tratadas como animais'' ao denunciarmos uma injustiça. Isso sem falar em xingamentos racistas comparando grupos de pessoas com algum animal específico. Nossa própria língua reconhece essa diferença arbitrária de tratamento entre as espécies.
Embora veganos liberais de fato acreditem e deem protagonismo ao consumo individual e o poder do indivíduo sozinho, nós veganos de esquerda, entendemos que o ato de se abster de ''produtos'' animais é muito mais representativo que objetivo. A ação de não comer animais pode ser em primeiro momento individual (pois está presente literalmente todos os dias, a cada refeição, no nosso cotidiano), mas está longe de ser uma ação individualista. Entendemos como um ato de solidariedade com os animais não humanos (afinal, somos todos animais!), uma forma de mostrar para os outros as incoerências de consideração moral e ética que temos entre as diferentes espécies deste planeta. De como é possível nos alimentarmos (juntamente com a luta agroecológica e pela soberania alimentar) sem causar sofrimento desnecessário à outro ser vivo.
Mesmo que vivamos em uma sociedade patriarcal, racista e fóbica com as diferentes sexualidades, corpos e condições financeiras, nós enquanto agentes da antiopressão, nos organizamos e agimos coletiva e individualmente de forma a negar e combater a cultura de opressão que nos cerca. Ou seja, vivemos e praticamos a práxis. Nas palavras de Sabrina Fernandes e Paulo Freire, respectivamente
''A práxis é quando teoria e prática se completam e se resolvem. Se a teoria erra, a prática aponta isso. Se a prática está errada, a teoria pode identificar também.''
''É práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.''
O antiespecismo, e a prática vegana seriam então formas de resistência à um sistema que enxerga corpos animais como produtos para consumo, seja alimentar ou entretenimento. E vai além, pois assim como o patriarcado, o especismo, ou ao menos a exploração de animais, é anterior ao próprio capitalismo. Logo, é inaceitável e contraditório pensar que usar animais mesmo dentro de um sistema agroecológico e socialista é admissível, especialmente se há condições materiais para não faze-lo.
2- O veganismo é moralista/elitista
Este provavelmente é um dos pontos mais atacados e questionados por camaradas de luta. Talvez me faltem mais estudos teóricos, mas percebo um discurso no mínimo questionável sobre a importância da(s) moral(idades). Assim como a ação individual é erroneamente confundida com ação individualista, a consideração moral que exigimos e divulgamos para os animais é confundida com moralismo.
Argumento que ora, todas as nossas pautas são em alguma instância (eu diria em primeira), de natureza moral/ética (usarei ambos os termos como sinônimos neste texto). E a partir desta afirmação, já faço a ponte com o conceito de interseccionalidade: Por exemplo, embora entendamos as origens históricas do machismo e da sociedade patriarcal, embora tenhamos os dados de quantas mulheres morrem por dia vítimas de crimes misóginos, nossa mobilização, nossa atitude, nossa ação por mudança, se dá pela simples conclusão de que tal tratamento com elas, é injusto. Nós coletamos estes dados e fatos sobre o racismo, sobre a colonização indígena, sobre a perseguição com a comunidade LGBT+ e diversas outras opressões, e chegamos na conclusão que todas elas são arbitrárias e injustas, e não coincidentemente, beneficiam majoritariamente o mesmo grupo, além de trazer sofrimento aos indivíduos e comunidades envolvidas. Logo, nós comunistas não estamos isentos de um pensamento moral, ou um senso de justiça. A diferença, penso eu, é qual é moral que queremos construir? Qual é a justiça que defendemos? A burguesa, a da opressão e competição, ou a proletária? Uma moral cooperativa, livre de explorações arbitrárias? Queremos de fato libertar a todos, ou estamos dispostos a manter alguns vícios do atual sistema intactos, só porque nós (humanos) não somos mais as vítimas? Que fique claro, não estou aqui igualando ou nivelando dores. Todas as lutas tem suas particularidades e origens históricas. Estou apenas tentando demonstrar como todas elas tem questões em comum entre si (e isso já é bem aceito no nosso meio) e com a causa animal, ou como certas retóricas são usadas para algumas dessas lutas, mas arbitraria e convenientemente esquecidas quando o assunto são os animais. Não levar a dor e o sofrimento que aflige os animais por nossas ações individuais e enquanto coletivo faz tanto sentido quanto discutir qualquer outra luta antiopressão sem citar a dor e o sofrimento inferido à qualquer grupo marginalizado, sendo você individualmente o perpetuador dessa violência, ou coletivamente e estruturalmente falando. É justamente o sofrimento, o tratamento desigual que milhões de pessoas sofrem por causa de sua classe, etnia, corpo e sexualidade, que mobilizam a nossa ação. Com os animais não é diferente. Se isso é ser moralista, então todos nós somos culpados deste pecado.
Não é raro ver camaradas não veganos parafraseando Chico Mendes ao se referirem à causa animal, dizendo: ''Veganismo sem luta de classes é piquenique''. E embora eu concorde 100% com esta frase isolada, volto com a pergunta: ''Luta de classes sem consideração pelos animais, é o que?''. Em termos de coerência, é possível luta de classes sem o feminismo, sem a luta antirracista ou a luta LGBT+ por exemplo?
Outra questão que me pega é a acusação que o veganismo seria elitista. No meio comunista, não é raro ouvirmos que ''o trabalhador não tem tempo para pensar nos animais''. Sobre esta afirmação, me choca como tal argumento é semelhante ao discurso de alguns esquerdistas (estes que me recuso a chamar de camaradas) onde, tentando esconder sua intolerância ou falta de interesse no assunto, dizem que ''o trabalhador não tem tempo para pautas LGBT+/indígenas'' por exemplo. Nesta minha análise interseccional, me parece que o mesmo acontece com a pauta animal. E uma dedução possível é que isso acontece justamente porque a pessoa que faz estes comentários geralmente não pertence ao grupo oprimido, ou direta ou indiretamente, é beneficiado por tal sistema desigual. Não é atoa que geralmente, na minha experiência pessoal pelo menos, são homens héteros e brancos que desdenham as lutas identitárias em sua maioria.
Nós como humanos, nos beneficiamos da maneira que consumimos os animais. Consumimos como entretenimento via rodeios, zoológicos, parques aquáticos, como alimento, embora muitas vezes de forma social, como churrasco e datas comemorativas, por exemplo. E mesmo que nós como espécie nos beneficiemos dos animais, até nisso existem recortes sociais, étnicos e de gênero. Notem como nos comentários das postagens dos camaradas aqui citados, e provavelmente desta se for publicada, que os comentários mais ignorantes e agressivos, são geralmente de homens e geralmente brancos. Falácias como ''veganismo é moralismo cristão, desvio pequeno burguês e etc são rotineiras em nosso meio. Às vezes, a argumentação beira à discursos bolsonaristas, em frases como ''você não pode obrigar todo mundo a aceitar/gostar disso'' ou que consideração com os animais é ''mimimi'' e etc. Gosto de falar que, se você quer ver um revolucionário regredir a um reacionário, questione a carne em seu prato.
E isso não é exagero, muitas vezes antiveganismo dentro da esquerda toma um tom covarde e reacionário. Não é incomum vermos camaradas usando a realidade da população mais pobre como forma de justificar sua própria não adesão e repulsa à causa. Ou seja, usam o pobre de escudo para desmerecer esse debate. Mal sabem eles que o que não falta são influenciadores e personalidades periféricas que discutem com muita propriedade o veganismo popular. Mas como dito anteriormente, isso se assemelha muito ao discurso que pautas identitárias de alguma forma atrapalham a causa trabalhadora, enquanto na verdade ambas andam juntas.
A autora Carol J. Adams em uma de suas obras já fazia a relação entre um conceito ocidental de masculinidade e com o consumo de carne, sendo a carne associada com virilidade e masculinidade enquanto vegetais mais associados à fragilidade e feminilidade. E esta análise casa muito bem com um estudo de 2016 realizado pela Vegan Society, que duas vezes mais mulheres são adeptas ao veganismo ou vegetarianismo do que homens no Reino Unido. No caso dos EUA, 79% das pessoas que se declararam veganas se identificam como mulheres.
É claro, não são apenas homens que reproduzem o especismo e o antiveganismo. Como dito anteriormente, o uso de animais para as mais diversas finalidades, quase todas envolvendo algum tipo de exploração, precede ao próprio capitalismo. Logo, é esperado que numa sociedade capitalista, que aumentou em proporções grotescas a exploração animal, que a sociedade como um todo esteja dessensibilizada com a forma que os animais são tratados. Essa dessensibilização, esse aparato da superestrutura, é necessária para justificar o modo de produção e outros hábitos que temos. E lógico, eu sei no que apoiar e sobretudo praticar essa causa implica, e acredito que é nesse ponto que haja tanta resistência. Ver os animais como dignos de uma vida em paz implica em abrir mão daquele churrasco de domingo. Implica em não comprar aquele cão de raça lindo e optar por adotar um vira lata. Implica em recusar aquelas opções quase todas com queijo e ovos disponíveis em encontros sociais. Implica em simplesmente abrir mão de um sabor ou textura que você gosta. E sim, é compreensível essa resistência. Mas tal lógica é verdadeira para outras coisas que consumíamos antes de obter o conhecimento de como aquilo é prejudicial para o outro. Nascido em uma família classe média e cristã, entendo muito bem como piadinhas homofóbicas, classistas e por vezes até racistas, fazem parte da socialização. E por nos negarmos a participar dessas coisas, somos excluídos ou saímos por vontade própria destes espaços. Não apenas isso, mas séries e conteúdos que antes tinham graça, que ofereciam entretenimento, deixam de ter graça, por sabermos como aquilo machuca o outro, e contribui para uma lógica de dominação. E todas essas coisas são consumo. Consumimos a piada, consumimos o rolê com a família preconceituosa, consumíamos toda hora conteúdos ou ambientes que hoje em dia, enquanto comunistas, não fazem mais sentido com nossos valores antiopressão. O veganismo é isso. Mas reitero aqui que não se trata de comparar dores, mas apenas mostrar as semelhanças entre lógicas de opressão e consumo.
Veganismo não é dieta, não é estilo de vida. É um posicionamento ético e político em relação aos animais, e o reconhecimento de sua senciência, necessidades e subjetividades. Em suma, é práxis revolucionária, sobretudo porque é interligada com a questão ambiental e soberania alimentar.
Por fim, gostaria de encarecidamente pedir para que todos, sobretudo camaradas homens, deem uma chance para essa causa. Sabemos que toda luta nova (e o veganismo em si é super recente, um veganismo politizado à esquerda então, um mero embrião) é sempre vista com resistência por toda a sociedade, justamente por questionar privilégios e relações que antes eram dadas como normais, e isso mexe com nossos modos de vida. Mas como revolucionários, como pessoas que se indignam frente às mais diversas opressões, será tão difícil abraçar mais uma?
O tom provocativo e talvez um pouco ácido deste texto é intencional, pois vem de um lugar de desabafo que muitos comunistas veganos sentem quando seu próprio meio exclui tal pauta do debate. Como todos sabemos, não existem espaços vazios. E o liberalismo mais uma vez, sai a frente de nós por oferecer uma alternativa aos que se preocupam minimamente com os animais. Não é atoa que ONG's liberais, influencers e até políticos que não tenham compromisso nenhum com nossa luta política, sejam mais conhecidos que nós quando o assunto é a pauta animal. Debatem o veganismo, maus tratos, saúde e bem estar animal, tudo à direita do espectro político, enquanto nós simplesmente negligenciamos o tema. Poderíamos estar discutindo uma alimentação vegana e saudável para as escolas e pequenos comércios, poderíamos pautar uma saúde pública para animais de estimação, setor que é praticamente todo tomado pelo setor privado, poderiamos estar exigindo programas de adoção e a proibição de comércio de animais, atacando a prática de vaquejadas e rodeios, setores estes também tomados pela direita e pelo agro, dentre outros temas que usam animais como meros objetos. Enquanto usarmos desculpas (e estas sim, moralistas) para evitar o debate sobre consumo animal, não apenas nosso movimento cai numa incoerência com si próprio, como é um espaço que cada vez mais a direita vai ocupar.
Mas mais do que tudo, essa crítica vem de um grande amor pela causa comunista e por todos os camaradas que fazem parte ou virão a fazer parte da mesma. Vem de um compromisso irrestrito com todos os oprimidos e a importância de não oprimirmos uns aos outros por critérios arbitrários como etnia, gênero, sexialidade, e no caso que é o foco deste texto, espécie.
Fecho parafraseando a militante do MST, vegana e anarquista Sandra Guimarães: ''ser de esquerda significa não deixar ninguém para trás. Enquanto a gente tiver deixando alguém para trás, seu compromisso com a luta da esquerda não está completo''.