'Amadeo Bordiga, Centralismo Orgânico e a nossa Reconstrução Revolucionária' (gatasovietica e João Vitor Benites)

Essa formulação contrasta e se propõe a ser uma proposta mais radical da que vemos alguns camaradas defendendo, de que deveríamos “ter mais pessoas diversas nas direções”, ora, se dar direções significa dar voz, a base não tem direito a voz, na prática.

'Amadeo Bordiga, Centralismo Orgânico e a nossa Reconstrução Revolucionária' (gatasovietica e João Vitor Benites)
"Trazemos à tona, agora, alguma contribuição da esquerda italiana para o tópico das frações, que, em nossa leitura, não é hoje um tema em alta, mas pode vir a ser, tendo em vista que é uma questão comum a quase todo Partido Comunista."

Por gatasovietica e João Vitor Benites para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

O seguinte texto surge com a tentativa, por nossa parte ainda simplória, de resgate do chamado “Comunismo de Esquerda”, que vem sendo melhor difundido recentemente, por trabalhos de camaradas como o grupo Fio Vermelho e Coletivo Ruptura (este último em Portugal), e demais interessados em desbravar essas contribuições teóricas, que, por muitas vezes, são pouco compreendidas e muitas vezes demonizadas pelos centristas e direitistas, atualmente e ao longo da história.

Em primeiro lugar, é candente – em nossa avaliação – entender as causas desse pequeno avivamento e resgate de teóricos da ultraesquerda. Sobre isso, elaboraremos algumas teses adiante.

O recente processo de racha que nos acometeu pode ser uma das motivações para tal movimento. Pois, como foi observado pelos camaradas que hoje militam pela Reconstrução Revolucionária, as posições cada vez mais à direita que se apresentam no Comitê Central do PCB, tanto com relação à política interna e externa, quanto nas formas organizativas, que pela “mão de ferro” tentavam cercear debates e trabalhos, seguindo uma lógica burocratista, e, algumas vezes, até monolítica, sob a bandeira do “anti-fracionismo” acabaram por gerar uma diferenciação de uma ala ampla a esquerda (ainda que não organizada) e uma ala direitista e oportunista a direita, com muita representação nas dirigências do partido, especialmente no Comitê Central.

Dito isso, podemos colher bons frutos de algumas obras dos comunistas de esquerda da Itália, que viveram situação parecida na década de 1920 no Partido Comunista da Itália (PCd’I), que fora tomado de assalto – em conjuntura que a ala esquerda era mais forte –, pela ala direita e pelo centro, com o apoio do PCUS (Partido Comunista da União Soviética). Com isso, o PCd’I passou pela chamada “bolchevização”, uma tática que buscava, acima de tudo, centralizar o Partido a partir de manobras – a maioria das vezes ilegais –, e de expulsões e perseguições sumárias aos conhecidos militantes da esquerda do partido. Essa perseguição deu-se a partir da “necessidade” de combater as “frações” no seio do partido (tática semelhante à adotada pelo governo Stálin e governos subsequentes em perseguição aos opositores de esquerda), que, segundo o centro e a direita, travavam o avanço do Partido.

Apesar de, em nosso caso (Racha com o PCB), não termos uma ala esquerda propriamente formada e consistente, as táticas de perseguição se assemelharam no que diz a assegurar no mando do partido, uma ala vacilante e direitista. Essa semelhança nada poderia nos trazer além de debates e discussões para a reconstrução de um partido que cogita ser revolucionário, e por isso, deve estabelecer, a partir de agora, a firmeza da doutrina marxista invariante como seu Norte, combatendo falsificadores e modernizadores, e uma relação organizativa em que as bases tenham maior participação nas formulações e direções do partido. Essa formulação contrasta e se propõe a ser uma proposta mais radical da que vemos alguns camaradas defendendo, de que deveríamos “ter mais pessoas diversas nas direções”, ora, se dar direções significa dar voz, a base não tem direito a voz, na prática. 

Trazemos à tona, agora, alguma contribuição da esquerda italiana para o tópico das frações, que, em nossa leitura, não é hoje um tema em alta, mas pode vir a ser, tendo em vista que é uma questão comum a quase todo Partido Comunista. Pontuamos, da mesma forma, que a preocupação apresentada pelos camaradas nesse trecho, reflete-se igualmente em casos que as frações simplesmente não existem, ou não tem expressão alguma, e ainda assim, direções mandonistas tendem a execrar o inexistente, para direcionar as bases à força, sem debate e sem direcionamento político acertado. Tal citação deve nos encaminhar, também, para o cerne de nosso texto, o centralismo orgânico.

Sobre as frações e seu surgimento, escreve o camarada Bordiga, analisando a situação da III Internacional e o PCUS:

 Do ponto de vista histórico, a superação das frações no partido russo não tem sido um expediente, nem uma receita mágica aplicada no âmbito estatutário, mas sim o resultado e a expressão de uma formulação correta sobre os problemas da doutrina e da ação política.[1]

Ou seja, o que o camarada, e a ala esquerda esclarece é que, sob a política de um centralismo forçoso — que cerceia o debate e se utiliza de outras táticas para coagir os opositores de esquerda, críticos firmes de políticas desviantes —, o controle das frações é (ao invés de trabalhado no debate e formulação coletiva) emanado de um autoritarismo, que de nada tem de positivo ao avanço teórico e prático do Partido revolucionário, afinal, como fica provado historicamente, as alas centristas e direitistas vitoriosas, que em alguns casos se valem de ilegalidades, conduzem, inevitavelmente, os respectivos partidos à guinadas cada vez mais abruptas para a direita, e consequentemente, minam qualquer possibilidade de organizar um organismo capaz de conduzir o proletariado à vitória na revolução. Isto é, sem uma política de centralismo prático, não há opções senão a organização histórica das frações, que se vendo num ambiente no qual a disputa e o convencimento não podem ocorrer no próprio seio do partido, se organizam dentro do mesmo contra uma direção mandonista.

Partiremos, nesse momento, para a exposição de como o centralismo orgânico – conceito a ser aprofundado no próximo tópico do texto – pode nos ser útil frente a frações e manobras prejudiciais que, em teoria, atacam elas.

Para iniciarmos, vamos deixar com que a ala esquerda que redigiu as Teses de Lyon introduza esse conceito:

Os partidos comunistas devem realizar um centralismo orgânico que, por meio da máxima consulta possível com a base, garanta a eliminação espontânea de qualquer agrupamento que tenda a se diferenciar. [2]

Posta a questão do fracionismo, a redação das Teses de Lyon nos apresenta algumas proposições importantes no que diz respeito às influências pequeno-burguesas que podem acometer o partido e como estas podem ser combatidas. Para os camaradas, qualquer tentativa de eliminar essas divergências perigosas a partir de fórmulas mecanicistas e estatutárias, apenas adiaria o problema, e não resolveria em seu cerne. Isso seria apenas uma ilusão burocrata e juspositivista, a mesma ilusão que leva os camaradas que continuaram no antigo PCB usam para dizer que, por exemplo, a UJC é a juventude do PCB porque assim está escrito no estatuto do partido. Apontam, ainda, o perigo de tentar a resolução dos problemas partidários dessa forma: 

O perigo da influência burguesa sobre o partido de classe não se apresenta historicamente pela organização de frações, mas sim por uma ardilosa penetração de agitações demagógicas por unidade [3]

Ou seja, o perigo maior do que as ditas frações, é a burocratização e consequências de imobilização que essa pode causar.

Essas citações e esse breve debate sobre o fracionismo e o “fracionismo”, precisam, obrigatoriamente, de serem elucidadas por mais textos do camarada Bordiga, para poderem dar um horizonte prático para a questão nos dias atuais para o nosso partido.

Preferimos nos basear em três textos, respectivamente dois de Amadeo Bordiga e um do Partido Comunista Internacional, para tentar elaborar uma síntese sobre o centralismo orgânico. São eles: O Princípio Democrático, Organização Comunista e a Disciplina e Lênin, o Centralista Orgânico. Tais obras nos ajudarão nessa tarefa.

Como todo e qualquer comunista/marxista, o camarada Amadeo Bordiga é um crítico assíduo da dita democracia. Contudo, o camarada se diferencia de muitos quando nega esse conceito até mesmo quando ele está relacionado à organização partidária. Para ele e a corrente da ultraesquerda, a organização do Partido Comunista deve se diferenciar completamente dos preceitos democráticos, e ser desenvolvida de maneira original, regada diretamente das contribuições teóricas de, principalmente, Marx e Engels (Lênin será assimilado um pouco mais tarde pelo camarada e pela corrente de esquerda).

A fundamentação da “rejeição” ao termo “centralismo democrático” deriva diretamente do entendimento de que a democracia é um conceito puramente burguês, que pouco deve ser apropriado pelos comunistas. Para Bordiga,

A ilusão da democracia é que a maioria sempre sabe o melhor caminho a seguir e que, ao votar, cada indivíduo carrega o mesmo peso e influência.[...] essa crítica não apenas rejeita o monumental embuste do parlamentarismo burguês, mas também se aplica ao princípio da maioria [...] e até mesmo do nosso partido. [4]

Em seguida, o camarada destaca que, para os marxistas, é inegável a importância da minoria organizada dentro do Partido Comunista seguir a disciplina partidária, em prol da classe e da revolução. No mesmo texto, escreve o seguinte: “somos contra qualquer federalismo autonomista e aceitamos o termo centralismo por seu significado de síntese e unidade”. [5]

Uma análise histórica se segue em outro texto. Em O princípio democrático, o italiano faz um grande apanhado histórico das formas de organização coletiva; não nos cabe nesse momento a análise profunda de tal texto nesse aqui que escrevemos, mas de um trecho em que o autor se propõe a exemplificar como a noção da maioria sobre a minoria pode ser danosa, até mesmo durante a ditadura do proletariado.

no dia seguinte à revolução, o proletariado não será ainda uma coletividade totalmente homogênea nem será a única classe. [6]

Em seguida, vemos uma exposição sobre a relação entre campesinato e trabalhadores industriais na Rússia pós-revolução

o poder está nas mãos da classe trabalhadora e do campesinato; mas se considerarmos todo o desenvolvimento do movimento revolucionário, é fácil demonstrar que a classe proletária industrial, embora muito menos numerosa do que o campesinato, desempenha, no entanto, um papel muito mais importante. [7]

Mais a frente, ainda no mesmo texto, Bordiga aponta que, para nós comunistas, a democracia não deve ser algo intrínseco para a organização partidária, pois, segundo ele, confiar que, necessariamente, a decisão da maioria é a mais acertada, apresenta-se como um erro. Porém, destaca que, na altura da escrita desse mesmo texto, 

O critério democrático até agora tem sido para nós um fator material incidental na construção da nossa organização interna e na formulação dos estatutos do nosso partido; não é a sua plataforma indispensável. [8]

Escreve também que, será necessário ao Partido Comunista desenvolver uma nova forma de tomada de decisões, liberta do assim chamado “princípio democrático”, e que será então, uma forma à altura das tarefas históricas do proletariado e do partido revolucionário. Ainda pontua, mais adiante, que a negação da democracia não é sua extinção absoluta imediata no âmbito partidário, mas sim a sua transformação gradual, passando, porém, pela sugestão do autor, de descartar o termo “democrático” (apesar de, na prática, pelo menos inicialmente, ainda se utilizar das formulações desse princípio). O camarada conclui esse grande texto, com o destaque de reivindicarmos o “centralismo”, que é essencial para a prática conjunta do partido.

A fim de expressar a continuidade da estrutura partidária no espaço, o termo centralismo é suficiente, mas para introduzir a ideia essencial de continuidade no tempo – a continuidade histórica da luta que, ultrapassando sucessivos obstáculos, avança sempre para o mesmo objetivo – proporemos dizer, ligando estas duas ideias essenciais de unidade, que o partido comunista baseia a sua organização no “centralismo orgânico(grifo nosso). [9]

Devem se perguntar agora os camaradas que nunca tiveram contato com tal contribuição, se essa “negação” do centralismo democrático não seria um desvio grotesco da orientação leninista. Afirmamos que não, e tentaremos a seguir demonstrar o porquê. O centralismo orgânico, é nada mais do que a prática leninista em sua máxima efetividade. Para isso, beberemos da fonte já citada acima: Lênin, o Centralista Orgânico, coletânea de textos organizada pelo Partido Comunista Internacional.

Para inaugurar esse debate sobre o centralismo na ótica de Bordiga e do Partido Comunista Internacional (organização de orientação “bordiguista”), podemos recorrer à importância dada para a formulação do Centralismo Democrático leninista, que fora um grande avanço, combatendo diretamente as tendências autonomistas que compunham o POSDR na primeira década do século XX.

Para os autores do texto, o centralismo orgânico é uma continuidade legítima do leninismo pois, entendendo a época histórica, não renuncia aos princípios fundamentais do marxismo. Para eles:

nossa história nos ensina que a aquisição de nosso método não pode derivar de descrições livrescas, por mais detalhadas que sejam; o camarada domina o método de trabalho do partido trabalhando dentro dele, em seu ambiente “ferozmente antiburguês”, que reúne todos os tipos de camaradas e de gerações, com a dificuldade adicional de que, em nosso caso, ele deve se livrar de uma massa de peso morto cultural-ideológico, encharcado com o mito do indivíduo, da pátria e da divindade, com o qual os meios ilimitados da sociedade burguesa envenenaram o fundo de sua alma. [10]

Na concepção da ultraesquerda, em seu resgate de Lênin, o partido e seus partidários, são forjados na prática corriqueira, porém, devem estar firmemente direcionados pelo marxismo, e toda e qualquer disputa tática deriva diretamente da organicidade em que as atividades do partido vem a ser desenvolvidas. 

Para além da organização tática, existem ainda dois pontos que merecem destaque. Um deles é a crítica que a esquerda organiza para atacar os falsificadores do marxismo, que, se utilizam do discurso de um marxismo mutável, para degenerar a ciência do proletariado, e engendrá-la de seus desvios pequeno-burgueses.

O centralismo democrático, levantado como um princípio contra Lenin, sanciona o princípio não marxista da reconstrução contínua da teoria e da tática, em congressos periódicos, com base em supostas mudanças nas condições sociais, econômicas e políticas da sociedade, condições que, obviamente, variam de país para país, se não forem realmente moduladas para áreas específicas dentro de cada país. [11]

É inegável para todo marxista que cada época e localidade cria algumas condições próprias de atuação, contudo, o que advertem os camaradas, é quanto à mudança da base do pensamento marxista, e da organização leninista. 

As “escolhas” não são determinadas com base em um programa invariável (grifo nosso), nem com base em evidências históricas e científicas, mas com base na maioria reunida em torno de uma determinada solução. [12]

Para os centralistas orgânicos, a comprovação de efetividade dessa “forma organizativa” se dá por “estar seguro sobre as pedras fundamentais doutrinárias de Marx, Engels, Lênin e a esquerda”[13], estando assim, invariavelmente lastreados nas obras dos grandes teóricos do comunismo, e consequentemente bem orientados.

 O outro ponto que necessitamos destacar é a utilização do centralismo orgânico como um preceito para a fundamentação de uma organização realmente internacionalista e capaz de aglutinar a vanguarda do proletariado mundial, e rumar, dada as condições materiais, para a revolução no mundo inteiro.

Na verdade, a questão do centralismo orgânico em oposição ao centralismo democrático está longe de ser terminológica. [...] A nosso ver [...] o partido se apresenta com caracteres de centralidade orgânica porque não é uma “parte”, ainda que a mais avançada, da classe proletária, mas seu órgão, sintetizador de todos os seus impulsos elementares como de todos os seus militantes, [...] e isso se deve à posse de uma teoria, um conjunto de princípios, um programa, que ultrapassa os limites do tempo atual para expressar a tendência histórica, o objetivo final e a forma de trabalho das gerações proletárias e comunistas[...], e que ultrapassam as fronteiras da nacionalidade e do estado para incorporar os interesses dos trabalhadores revolucionários de todo o mundo. [14]

O centralismo orgânico está, dado o exposto, em completo acordo com os fundamentos basilares do marxismo, e se constroi diretamente a partir desses, se alimentando também, do grande revolucionário Lênin, que fora, acima de tudo, um comunista extremamente fiel à Marx e Engels, e um exímio internacionalista.

Encaminhando a conclusão, gostaríamos de salientar a importância de camaradas que se alinham à esquerda comunista de se expressarem, por meio das tribunas ou outros modos de enriquecer o debate sobre essa vertente que, como esperamos ter demonstrado, segue à risca as orientações da teoria revolucionária do proletariado. Destacamos, igualmente, que essa tribuna não pretende ser A elaboração sobre o centralismo orgânico, afinal, como os próprios “organicistas” dizem, essa análise não é uma realização estatutária, aplicável do dia para a noite, e facilmente definível; estaremos mais satisfeitos se conseguirmos despertar o interesse de camaradas, para adentrarem mais profundamente essa linha teórica, que, como pontuamos no início, é muito demonizada, porém pouco realmente conhecida.


- Notas

[1] Projeto de teses apresentado pela Esquerda ao III Congresso do Partido Comunista da Itália, 1926. Disponível em: https://medium.com/@fiovermelho1917/teses-de-lyon-1926-por-a-bordiga-0adf5fa415cc

[2] Idem 

[3] Idem

[4] Amadeo Bordiga, Organização Comunista e a Disciplina, 1924. Disponível em: https://traduagindo.com/2022/12/23/amadeo-bordiga-organizacao-comunista-e-a-disciplina/

[5] Idem

[6] Amadeo Bordiga, O Princípio Democrático, 1922. Disponível em: https://traduagindo.com/2022/08/16/amadeo-bordiga-principio-democratico/

[7] Idem 

[8] Idem

[9] Idem

[10] Partido Comunista Internacional, Lênin, o Centralista Orgânico. Disponível em: https://www.international-communist-party.org/Portugue/Textos/CentrOrg/21LeninOrg.htm

[11] Idem

[12] Idem

[13] Idem

[14] Idem