'Algumas considerações sobre extrema direita e o campo evangélico na arena de disputas sobre gênero e família na América Latina' (izacloss)

Me parece que o tema é incontornável para o campo comunista porque nos coloca diante de paradigmas religiosos misturados com o campo ideológico e de alienação ao capital que se entrecruzam em um processo altamente complexo.

'Algumas considerações sobre extrema direita e o campo evangélico na arena de disputas sobre gênero e família na América Latina' (izacloss)

Por izacloss para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, essa polêmica sobre o campo evangélico me parece incontornável e é muito interessante como as coisas aconteceram nos últimos dias em que, a junção da notícia de que o PCB em Piracicaba lançou uma candidatura evangélica com a publicação da tribuna do camarada Filipe Bezerra, causaram uma enorme erupção no campo comunista. Me parece que o tema é incontornável para o campo comunista porque nos coloca diante de paradigmas religiosos misturados com o campo ideológico e de alienação ao capital que se entrecruzam em um processo altamente complexo. Tem um tempo que tive o contato com o livro Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina e venho refletindo com as notícias de como a extrema direita vem se organizando nesse modo cunhado pelos autores do livro de “neoconservadorismo”. 

Eu li todas as tribunas feitas sobre a questão evangélica mas não vou conseguir emitir nenhuma opinião e argumentação no momento. O que intento fazer com essa tribuna é trazer alguns apontamentos do livro que citei acima para ampliar o debate por meio da pesquisa importante que os autores produziram. Importante pois sabemos como os temas que se referem às questões morais e principalmente sobre reprodução da vida, família, gênero e sexualidade são os mais espinhosos e disputados pelo campo conservador e a burguesia se apropria com força disso. Devido a falta de tempo para elaborar uma resenha do livro, me proponho nesta tribuna a apresentar,  por meio de citações do livro, a tese sobre o conceito de neoconservadorismo dos autores, bem como as cinco dimensões que eles argumentam para defender o conceito. 

Na introdução do livro temos essa apresentação: 

“Um dos argumentos centrais dos autores é que a forma atual do conservadorismo latino-americano está relacionada a uma temporalidade marcada pela produção de novas formas de subjetividades. O neoconservadorismo pode, assim, ser analisado como uma lógica normativa e disciplinadora interiorizada pelos sujeitos contemporâneos, conformando-os ao “princípio universal da concorrência”. Vai além de um projeto defensivo ou de uma tentativa de obter representação do Estado, consolidando-se como um modelo de governança e cidadania. Um dos aspectos mais importantes da aliança entre neoliberais e conservadores, que engendra o neoconservadorismo, é que eles convergem em uma narrativa da crise que tem como lócus a família. A presença mais intensa das mulheres no mercado de trabalho remunerado na segunda metade do século XX é vista como fator desestabilizante do casamento e da boa criação dos filhos.  Tirante o fato de que, para a maior parte das mulheres, nunca houve a possibilidade de não realizar trabalho remunerado, a apologia da família patriarcal projeta nela formas de segurança econômica disponíveis apenas para poucas.  Além disso, o divórcio e a autonomia sexual produziriam, na perspectiva dos neoconservadores, um quadro de irresponsabilidade masculina e de vulnerabilidade feminina, para o qual a solução seria a adoção de políticas “pró-casamento” e “pró-família”. Trata-se de uma política de responsabilização fundamental à agenda neoliberal de privatização e desregulamentação. Ainda que o “familismo” possa ser apreendido na aliança entre setores religiosos e não religiosos, parece-nos ser sobretudo no campo da regulação da reprodução e da sexualidade que os primeiros setores têm protagonismo.”

Sobre as cinco dimensões que compõem o neoconservadorismo, a primeira é de que o conceito de neoconservadorismo permite jogar luz sobre as alianças e afinidades entre diferentes setores. 

“Estudos mostram que organizações empresariais, proprietários de terra e militares têm tido papel na organização de campanhas eleitorais e no peso que os atores neoconservadores têm assumido nos legislativos. Do mesmo modo, o processo político brasileiro recente expõe uma aliança entre extrema direita, ultraneoliberais e militares na qual a reação ao gênero vem sendo um eixo central desde a campanha eleitoral de 2018 até as políticas de governo em diferentes ministérios.” Assim, “neoconservadorismo integra atores do campo evangélico e engendra novas formas de atuação política.”

A segunda dimensão do neoconservadorismo é sobre a acentuada juridificação da moralidade. Esse segmento, na América Latina, gerou nas últimas duas décadas um grupo de especialistas, tanto no campo da psicologia como no da advocacia, que se organizaram para assegurar a reprodução de valores cristãos e de defender a liberdade de expressão dos líderes pentecostais sobre a temática da sexualidade. Dentro do campo neoconservador temos a hegemonia dos pentecostais, que se utilizam de uma gramática dos direitos humanos “para defender a liberdade de crença, as prerrogativas das instituições religiosas e, em algumas sociedades, a inserção dos princípios morais cristãos nos quadros constitucionais.”

A terceira dimensão é de que o neoconservadorismo opera em contextos ditos democráticos e de que é possível observar a proliferação de organizações da sociedade civil, partidos políticos confessionais e mesmo funcionários públicos que, orientados por princípios religiosos, buscam impactar o Estado e suas leis. Atores católicos conservadores e evangélicos “maximizam” a ativação dos canais da democracia para permanecer influentes nesse novo contexto. A hipótese dos autores é a de que:“os atores conservadores são também partícipes nos processos recentes de transformação das democracias, em um momento em que, mais uma vez, seu sentido está em xeque. O neoconservadorismo é composto por uma diversidade de atores que complexifica o fenômeno. Como parte da sociedade civil, há um número crescente de organizações não governamentais “pró-vida” ou “pró-família” nos países da América Latina. Essas ONGs que têm diferentes tipos de vínculos com os religiosos: algumas são associações que dependem institucionalmente da Igreja católica, outras se identificam com o catolicismo mesmo por meio de seus nomes (Portal de Belém, Associação de Advogados Católicos etc.) e, por fim, existem ONGs que se apresentam como ecumênicas ou não religiosas. 

(...)

Outro ponto relevante é que a estratégia de definir como “ideológicos” os movimentos referenciados pelo pluralismo ético permite a atores conservadores reivindicar a ciência e até a democracia, ainda que sua atuação pese sobre os pressupostos liberais básicos e sobre a própria democracia, enquanto regime que garante direitos a minorias e se pauta pelo pluralismo ético.

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A Política Pública de Liberdade Religiosa e de Cultos, formulada por uma liderança pentecostal e implementada na Colômbia desde 2016, abre brechas para a utilização do princípio da objeção de consciência por parte de cristãos em diferentes áreas, assim como para um controle mais amplo das famílias sobre conteúdos escolares de educação sexual e religiosa das crianças.

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Entre as primeiras consequências da presença mais expressiva de cristãos conservadores na máquina de Estado, encontram-se a substituição da noção de desigualdade de gênero pela expressão “desigualdade entre homens e mulheres” nos documentos governamentais; o descumprimento das diretrizes da ONU no campo do combate às discriminações com base na orientação sexual; o esvaziamento de conselhos que garantiam a participação da sociedade civil na elaboração de políticas públicas[63]; e a denúncia, feita pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, contra um órgão de imprensa feminista junto ao Ministério Público e à Polícia Federal por apologia ao crime de aborto.”


A quarta dimensão do neoconservadorismo é seu caráter transnacional, “que permite traçar continuidades nas campanhas e nos argumentos que circulam na região. Sem ignorar as diferenças entre os países – como o fato de que dois católicos lideraram as eleições presidenciais recentes na Argentina, enquanto os evangélicos funcionavam como “minoria ativa” nas campanhas antigênero em países como Colômbia e Brasil, introduzindo novas clivagens eleitorais –, as ações do neoconservadorismo refletem uma agenda comum, que transcende a órbita nacional.

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O crescente uso do conceito “ideologia de gênero” é, em si mesmo, uma estratégia transnacional para bloquear as demandas dos movimentos feministas e LGBTQI. Embora seja usado com intensidades diferentes, em alguns anos expandiu-se por toda a região. Sua construção e suas rotas mostram uma complexa rede de atores localizados em diferentes países (de norte a sul) e identificados com o campo religioso de diferentes maneiras (líderes católicos e evangélicos e intelectuais).

(...)São muitas as iniciativas de atores políticos cristãos para difundir a agenda “pró-família” entre formuladores e executores de políticas públicas a partir de fóruns regionais. É o caso do Congreso Iberoamericano por la Vida y la Familia, realizado desde 2017 – as edições de 2017 e 2018 aconteceram no México, em seguida deram-se no Panamá e no Peru, respectivamente, em 2019 e 2020. Seu foco principal é a OEA, mas nesses eventos são discutidas também as estratégias para avançar o bloqueio à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual nos países da região. Também nessa direção, em 2019 a organização Political Network for Values/ Red Política por los Valores, cuja direção é composta por políticos dos Estados Unidos, da Espanha, da Hungria e do México, com um conselho consultivo com membros de diferentes países da América Latina, do leste da Europa e da África[65], organizou a III Cumbre Transatlántica por los Valores, na cidade de Bogotá. Tendo como anfitriões a senadora colombiana María del Rosario Guerra, de quem falaremos no segundo capítulo deste livro, e o então presidente da organização, o político conservador espanhol Jaime Mayor Oreja, o encontro contou com a presença de legisladores, ministros de Estado e representantes da sociedade civil de mais de trinta países. Segundo o portal da entidade, o objetivo do evento era “oferecer uma resposta” à ofensiva do relativismo moral, em especial a “ideologia de gênero” e o antinatalismo no globo, assim como reafirmar os princípios da dignidade humana, o direito à vida, o papel imprescindível da família e do matrimônio, além do fortalecimento das liberdades de religião, de consciência e de educação, segundo os valores cristãos. É inquestionável também que a influência da agenda cultural dos cristãos estadunidenses nos pentecostais latino-americanos aumentou e que as trocas entre líderes cristãos regionais, movimentos “pró-vida” e associações “pró-família” de natureza transnacional estão se tornando cada vez mais vigorosas. A partir de 2017, a organização Capitol Ministries, fundada pelo pastor estadunidense Ralph Drollinger com o objetivo de “criar discípulos de Jesus Cristo na arena política do mundo”, abriu ministérios em seis países da América Latina: México, Honduras, Paraguai, Costa Rica, Uruguai e Brasil.”


A última e quinta dimensão consiste na relação entre neoconservadorimo e neoliberalismo, que convergem ao posicionar a família no centro de sua concepção mais ampla de sociedade.

“A temática da família tem permitido mobilizar inseguranças em um contexto que inclui os efeitos de políticas neoliberais restritivas a investimentos estatais em nome do equilíbrio orçamentário. Uma de suas dimensões seria, assim, a de um “moralismo compensatório”, que conecta a temporalidade aqui discutida com a das mudanças no capitalismo. Nancy Fraser chama atenção para os limites entre da aliança entre neoliberalismo e uma política progressista de reconhecimento. Para a autora, os anos 2000 explicitaram a crise de um “bloco hegemônico” que, nos Estados Unidos, se fez da aliança entre financistas de Wall Street e movimentos que promoveram a agenda do “empoderamento” de indivíduos de grupos subalternizados, como mulheres, negros e homossexuais. Uma política de reconhecimento hiper-reacionária andaria hoje de mãos dadas com o neoliberalismo, nos novos padrões que assume após a crise de 2008.

Na América Latina, a história é distinta em muitos aspectos. É difícil relacionar movimentos feministas que nasceram da atuação das mulheres em oposição às ditaduras com a trajetória dos feminismos estadunidenses. Ao mesmo tempo, no processo de construção democrática nos países da região, nos anos 1980, fica clara a associação entre a agenda social distributiva e a agenda específica das mulheres, chegando, em muitos casos, a figurar como uma pauta claramente anticapitalista e anticolonialista. Mais recentemente, a reação às agendas da igualdade de gênero e da sexualidade enfrentaria, na região, forte mobilização feminista. O movimento “NiUnaMenos e as greves feministas são exemplos dos padrões atuais dessa mobilização.”


Deste modo, os autores entendem o conceito de neoconservadorismo “como referência teórica, na medida em que as cinco dimensões apresentadas colaboram para a compreensão do fenômeno de que tratamos —  alianças entre atores adversos; juridificação dos conflitos políticos de caráter moral; desenvolvimento em contexto liberal-democrático, mas participando, no início do século, de processos iliberais e de erosão das democracias; caráter transnacional; e relação com o neoliberalismo, sobretudo na perspectiva da responsabilização das famílias em meio a processos amplos de privatização e mercantilização.”

Se esse conceito é possível de ser apropriado por nós, eu não sei, mas o fato é que aponta um mapeamento sobre todo esse processo em torno da família monogâmica dentro do capitalismo, entre moralidade, alienação ao capital e questões religiosas. Eu cheguei a colocar alguns apontamentos desses nas pré-teses, mas fui alertada de que talvez isso pudesse ser tratado por meio das tribunas porque a questão que fica em aberto ainda é qual linha podemos tomar frente a isso.  


Referência:

Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina (Biroli, Flávia; Vaggione, Juan Marco; Machado, Maria das Dores Campos)