'Agitação, propaganda e poder popular: para onde estamos indo?' (Jones Manoel)

Precisamos mudar […] nossos debates congressuais e nossa construção. O povo trabalhador não precisa de outra organização de nicho. Precisa de um partido revolucionário que lute […] para ser um organizador coletivo da classe e abra perspectivas revolucionárias de futuro a partir das lutas de hoje!

'Agitação, propaganda e poder popular: para onde estamos indo?' (Jones Manoel)
"Existe um certo fetiche pelo “grande debate”. Todo mundo tem algo a dizer sobre a história das experiências socialistas, alguma questão da teoria marxista, polêmicas da formação social brasileira e da estratégia ou o que a esquerda tem que fazer. Mas na hora de debater, concretamente, como criar uma associação de moradores, uma batalha de rap ou organizar as mulheres de uma comunidade, a tendência é o silêncio e a ausência de contribuição."

Por Jones Manoel para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Todo racha tem mil razões. Em um processo político de ruptura sempre podemos elencar os pontos centrais, mas junto aos pontos centrais, temos um conjunto variado de motivos que levam à ruptura: política internacional, mandonismo, violação do centralismo-democrático, amadorismo, descumprimento das relações congressuais, perseguições, academicismo etc. Enfim, os motivos são vários. De minha parte, além de estar no centro da questão e ter sido expulso, o motivo central foi entender que não existia mais espaço interno para mudar os rumos do PCB e tornar o partido um verdadeiro instrumento da Revolução Brasileira. 

Mudar para que rumo? Não existia mais espaço no PCB para fazer do partido um instrumento vivo de organização da classe trabalhadora, indo das lutas imediatas até a Revolução Brasileira. E essa minha crítica, internamente e externamente, é bastante antiga. Na época da pandemia, por exemplo, publiquei na Revista Opera um escrito criticando abertamente o Comitê Central pela total ausência de organização de um trabalho de base contra a fome durante a pandemia. Tirando exceções locais, simplesmente não tivemos protagonismo em organizar distribuição de alimentos, montar cozinhas solidárias, organizar brigadas para potencializar cuidados com a saúde, orientar sobre os cuidados com a pandemia. 

Meu antigo partido, infelizmente, era um tipo clássico de Partido Testemunho: a ideia de montar uma organização comunista afastada das massas, que faz propaganda contra o capitalismo/imperialismo e espera o Grande Dia quando o povo trabalhador verá que estamos certos ou se cansará do reformismo. Essa noção, não declarada, mas existente na prática, reflete uma realidade objetiva: o movimento comunista não é uma força política de massas no Brasil há quase 40 anos! 

Temos no mínimo duas gerações de comunistas acostumados a fazer o debate sobre estratégia, tática, organização, imperialismo, internacionalismo proletário, marxismo-leninismo e afins, afastados do cotidiano do povo trabalhador, suas lutas imediatas, contradições, limites e potencialidades. Essa realidade deixa várias sequelas. Cito apenas três para ilustrar meu ponto. 

Como estamos afastados do dia a dia do povo trabalhador, pregando para círculos restritos uma estratégia revolucionária, não somos pressionados e demandados a apresentar um debate de qualidade sobre políticas públicas, políticas econômicas e as questões imediatas. A Campanha da “esquerda radical”, no geral, começa e termina com a ideia de estatizar algum setor e acabou. Ano passado, quando foi lançada a proposta do Governo Lula do Novo Teto de Gastos, duas organizações comunistas lançaram análises erradas sobre o projeto (tenho dúvidas se leram mesmo) e concluíram com bordões sobre conciliação de classes, poder popular e rumo ao socialismo - e sem encaminhar nenhuma ação para lutar contra o Novo Teto de Gastos. 

A capacidade do movimento comunista de fazer o simples exercício da crítica às medidas do Governo Lula e governos estaduais é limitadíssima. Eu posso estar procurando errado, mas, até agora, no site das organizações comunistas, não achei nenhuma análise qualificada do Novo Teto de Gastos, Pacote de PPPS, Novo PAC, política do BNDES, meta de déficit zero etc. Teve até organização comunista que no começo de 2023, reproduziu a fala de Henrique Meirelles sobre Bolsonaro ter deixado um “rombo” de 400 bilhões de reais, sem compreender que estava repetindo a fina flor da ideologia neoliberal (depois, é claro, a matéria foi apagada do site). 

A segunda consequência é a ausência brutal de formulação sobre o trabalho de massas revolucionário (ou o famoso “trabalho de base”). Já cansei de repetir que é muito difícil achar livros e textos marxistas atuais que buscam teorizar sobre finanças, agitação e propaganda, recrutamento, trabalho comunitário, atos de rua, segurança etc. Existe um certo fetiche pelo “grande debate”. Todo mundo tem algo a dizer sobre a história das experiências socialistas, alguma questão da teoria marxista, polêmicas da formação social brasileira e da estratégia ou o que a esquerda tem que fazer. Mas na hora de debater, concretamente, como criar uma associação de moradores, uma batalha de rap ou organizar as mulheres de uma comunidade, a tendência é o silêncio e a ausência de contribuição. 

Com exceção do movimento estudantil, alguns exemplos locais de luta por moradia e outras lutas, simplesmente não estamos produzindo inovações práticas e teóricas para organizar a classe (e nem retomando experiências exitosas de outras épocas). Falta experiência, debate, ousadia, espírito de iniciativa, organização e tudo que você imaginar. Acho muito chamativo que aos 25 anos eu tenha participado da minha primeira ocupação. Aprendi toda dinâmica de como planejar e realizar uma ocupação. Mas essa experiência não veio do meu antigo partido. Na época, por causa da frente Povo Sem Medo, estávamos muito próximos do MTST e fomos ajudar os camaradas na ocupação que iriam fazer em Recife. O MTST tem método de aprendizagem para o trabalho prático, como formar um militante capacitado para construir e organizar uma ocupação ou o trabalho comunitário numa favela. Os comunistas, no geral, não têm. 

Adicione a esses dois elementos um terceiro que decorre das outras duas realidades citadas. Se não temos inserção de massas, não somos pressionados a responder demandas imediatas e não temos acúmulo prático em trabalho de base revolucionário, vamos, tendencialmente, recrutar majoritariamente figuras de classe média, trabalhadores de melhor salário e instrução ou pessoas vinculadas à espaços mais “politizados”, como as universidades públicas. 

Esse perfil de recrutamento vai gerar lideranças, organizadores e intelectuais que não vivem no dia a dia do povo trabalhador e, tendencialmente, não vão ser pressionados pela sua atuação política a pensar nas demandas imediatas da classe e problemas organizativos do cotidiano. Isso gerará - sempre tendencialmente! - uma produção de linha política muito voltada para propaganda dos grandes temas da estratégia, tendo pouco ou nada a dizer sobre lutas imediatas, e manterá o perfil de recrutamento. 

Resultado prático: seremos um nicho maior ou menor no âmbito das esquerdas sem qualquer protagonismo nas lutas e organização da nossa classe. Uma das consequências possíveis disso é oscilar entre dois pêndulos: ser “comunista” no programa interno, nos seminários, nas formações e na prática atuar como linha auxiliar de um campo político social-democrata ou social-liberal para não se “isolar”; ou se proclamar os mais revolucionários, mais marxistas, os mais coerentes e taxar tudo e todos de reformistas, oportunistas e conciliadores de classe, falando apenas para sua militância e simpatizantes. 

O nosso grande desafio é entender os últimos 40 anos do movimento comunista brasileiro fora do cotidiano do povo trabalhador e girar em sentido contrário, evitando “crescer” em um nicho onde já temos contato e realmente se tornando um partido revolucionário que não faz uma propaganda e um debate sobre estratégia revolucionária afastado do seio do povo trabalhador. Cito aqui um trecho de um escrito do comunista Francisco Martins Rodrigues,

Os comunistas, claro, não têm que inventar lutas especiais. Temos que estar presentes nas lutas reais, por pequenas e limitadas que sejam nos seus objectivos: contra o desemprego, o trabalho precário, o agravamento constante das condições de saúde, habitação, ensino, a sobre exploração e opressão da mulher; nos movimentos contra a impunidade dos capitalistas e a onda mafiosa e corrupta que é hoje a política burguesa; nos protestos contra as expedições militares imperialistas e a montagem do Estado policial... Sabemos que a revolução só se constrói a partir do movimento real e não a partir de modelos por nós inventados. Fora das situações excepcionais de crise revolucionária, as massas lançam-se na luta para obter pequenas melhorias dentro dos limites da lei e da ordem; só participando nessas lutas podem os comunistas ajudar os colectivos de trabalhadores a percorrer a sua própria experiência, tomar consciência do antagonismo dos seus interesses face aos da burguesia, criar hábitos de organização, ganhar confiança nas suas próprias forças[1].

Abstratamente, nenhum comunista vai discordar dessa análise. Como já falei na tribuna anterior, em formações e palestras, todo mundo diz que a classe trabalhadora não se move por “abstrações” e que precisamos estar e organizar as demandas concretas e imediatas do nosso povo. A prática, contudo, é outra. 

Ando muito preocupado com a tendência que cresce no RR. Caminhar em grandes debates sobre estratégia, questão internacional (China e afins) e organização, sem conectar à conjuntura, demandas imediatas, desafios do momento e acumular força social de verdade. Por exemplo, fiquei assustado com os debates sobre a questão eleitoral. Praticamente todos eles caminham a partir de generalizações, grandes questões e debates em maior nível de abstrato. O básico, tipo qual é a especificidade de uma eleição municipal, não é abordado. 

Quando minha tribuna sobre o “Partido Testemunho e nossa tática eleitoral” foi publicada, vi alguns comentários na rede social dizendo que participar da eleição com filiação democrática seria necessariamente rebaixar o discurso. Sabe o que achei interessante? Rebaixar o discurso em que aspecto e para quem? Vamos pegar o exemplo da eleição de 2022. Fui candidato ao Governo do Estado de Pernambuco. Nas entrevistas eleitorais, até onde lembro, não falei em momento nenhum da ditadura do proletariado e quase não falei de Lênin, fim da mais-valia, imperialismo, economia planificada etc. Me apresentava sempre como comunista, destacava a necessidade da organização da classe e buscava apresentar o ponto de vista proletário e mais avançado em cada debate. Só que o ponto mais avançado de acordo com os múltiplos graus de compreensão, consciência de classe e demanda do nosso povo. 

Então, para muitos camaradas, fui um maldito reformista por não falar em expropriar toda saúde privada de Pernambuco. Para alguns camaradas, debater o papel do Lafepe, preço dos remédios, situação do povo trabalhador da saúde (com muita ênfase na defesa do piso da enfermagem), orçamento da Atenção Primária à Saúde, interiorização da média e alta complexidade, combater as OS e as diversas formas de privatização do SUS, é mero reformismo e rebaixamento do discurso. 

É curioso. As OS (organizações sociais) levam 30% do orçamento da secretaria da saúde do estado de Pernambuco. Só uma OS, o IMIP, fatura 1 bilhão por ano. Estamos falando do setor privado que mais se apropria do fundo público da saúde no estado e tem ação direta na privatização do SUS. Fui o único candidato a debater durante toda a campanha as OS. Recebi no instagram muitas mensagens de enfermeiras que afirmaram que votaram em mim por causa do debate sobre OS e condições de trabalho. Mas não colocou ênfase em estatizar já todo setor privado da saúde? Maldito reformista! 

Ficando nesse exemplo, alguém pode falar: “mas nosso papel é desde já convencer todo mundo que não deveria existir saúde privada e muito menos propriedade dos meios de produção”. Concordo. A questão é: como vamos fazer isso? Por quais caminhos? Por quais mediações? Compondo quais lutas? Como fugir da pressão pela conciliação e do programa máximo descolado das massas? 

Camaradas, uma das coisas mais difíceis que existe para um partido comunista é ser um instrumento de organização da classe conectando as lutas de hoje com a conquista do poder. O partido que organiza a luta para regularizar a coleta de lixo, colocar uma creche onde não tem, garantir mais ônibus numa linha com déficit, organizar no local de trabalho o respeito ao tempo de descanso e coisa do tipo e dessa luta forjar quadros revolucionários e difundir uma propaganda comunista, revolucionária, radical. 

Camaradas, não existe propaganda boa que não dialogue com a agitação! É quase inútil - ainda ficando no exemplo da saúde - preparar um programa lindo sobre um SUS 100% público, gratuito e de qualidade com um complexo industrial da saúde gerido pelo povo trabalhador numa economia planificada e não termos nenhuma inserção (ou perspectivas de) no povo trabalhador do setor e nas lutas dos usuários do SUS. 

Nos espaços do meu antigo partido, cansei de acompanhar debates sobre os “setores estratégicos” do proletariado. Debates abstratos, formais, sem carne e sem sangue, que nunca conseguiram produzir encaminhamentos práticos com metas, objetivos, prazos, responsáveis e acompanhamento da ação! 

Como é que vamos construir o poder popular se não criarmos as condições para sermos os melhores na propaganda e na agitação; na denúncia do capitalismo, na defesa do socialismo e na disputa da política econômica; na defesa da ditadura do proletariado e na compreensão de todas as dinâmicas institucionais do Estado burguês; nas grandes lutas e na luta do dia a dia, como brigar por uma praça para as crianças e famílias terem espaço de lazer. 

Esse próximo congresso não vai resolver esse problema. O movimento comunista brasileiro há 40 anos convive com esse problema. Mas precisamos ter ciência da questão. Começar a enfrentá-la. Formular hoje, já, agora, sobre o trabalho de massas, nossa agitação, os desafios da conjuntura, as contradições postas. Como é que mais de 2 milhões de trabalhadoras e trabalhadores passaram os últimos 4 anos fazendo uma mobilização atrás da outra, colocando a categoria sozinha de 20 a 50 mil pessoas nas ruas (nas capitais) e aumentar nossa influência nessa categoria não é/não foi uma das nossas prioridades nos últimos meses? Falo, como sempre, da enfermagem. Em 2022, em Recife, vi a categoria sozinha botar mais de 20 mil pessoas na Praça do Derby! Nesse protesto, durante a eleição, estávamos lá pelo PCB (antes do racha) apenas eu e Luiza Melo. Apenas dois militantes numa ação de mais de 20 mil assalariados!!!! 

Precisamos mudar o espírito que está guiando os nossos debates congressuais e a nossa construção. O povo trabalhador não precisa de outra organização de nicho. Precisa de um partido revolucionário que lute com todas as suas forças para ser um organizador coletivo da classe e abra perspectivas revolucionárias de futuro a partir das lutas de hoje! 


[1]  Ação dos comunistas em tempo de maré baixa: https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/ano/mes/baixa.htm