'Acerca dos “delegados natos”' (Doni)

Tenho certeza de que todos ês atuais dirigentes são perfeitamente capazes de participar dessas etapas e de contribuir imensamente para seu enriquecimento, justamente em razão dos diversos saberes que ês levaram a ser eleites para essas funções.

'Acerca dos “delegados natos”' (Doni)
"Entendo que para além do reforço da legitimidade do processo congressual, nossas finanças também se beneficiariam do fortalecimento das etapas de base, uma vez que a participação de todes nas primeiras etapas resulta também num alívio sobre o custeio do Congresso, cujo financiamento sabemos não ser uma pequena tarefa."

Por Doni para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, essa tribuna trata de uma questão, em princípio (e até onde sei), relacionada ao Estado de São Paulo, mas que a meu ver deve ser conhecida e avaliada por todes militantes de nosso Partido.

Como sabemos, a organização de nosso Congresso é uma de nossas maiores prioridades (senão a maior delas) e, nesse contexto, definiu-se na última reunião do CRP/SP a possibilidade de eleição de delegades nates para a etapa regional de nosso Congresso – essa questão deve ainda ser referendada pelo Comitê Nacional para que possa se efetivar.

No contexto paulista, isso significaria que ês dirigentes eleites nas recentes plenárias estaduais (além dos Comitês Regionais/Estaduais da UJC e CFCAM, recentemente incorporados ao CR) já estariam automaticamente presentes na etapa regional do Congresso, ou seja, não precisariam passar por etapas de célula/etapas locais.

Tratar dessa questão é tratar de um emaranhado de questões políticas, organizativas e até financeiras as quais tenho certeza de que não consigo esgotar, logo minha intenção é principalmente provocar a reflexão e o questionamento de todes camaradas.

Em uma aula de antropologia, ouvi que a única coisa que faria um líder guerreiro Yanomami perder sua posição seria dar uma ordem aos seus camaradas, porque a legitimidade de sua posição de comando, sempre precária, só existiria enquanto ele fosse capaz de convencer todes demais sobre a necessidade de se praticar uma ou outra ação.

Não tenho certeza sobre a veracidade dessa afirmação, mas creio que concordamos com a premissa de que a liderança só se justifica enquanto reflexo das capacidades atuais do dirigente, que podem, ou não, refletir seu histórico, sua experiência, seus acúmulos teóricos, etc.

Em razão disso, qual o sentido de privar as etapas de célula/de base da presença desses dirigentes? Justamente por conta de seus acúmulos esses dirigentes deveriam ajudar militantes menos experientes a elaborar e aprofundar debates que precisam ser travados por todos nós, especialmente as discussões sobre nossa formação social e, a partir disso, sobre nosso programa político.

Afinal de contas, o significado de um Congresso partidário é, em primeiro lugar, político. A necessidade de nos organizarmos em um Partido é uma consequência lógica de nossa adesão à coerência da política comunista, ou seja, partindo do diagnóstico de Marx e Engels sobre os aspectos econômicos, políticos e ideológicos da sociedade burguesa, entendemos que precisamos transformá-la radicalmente.

Assim sendo, a tarefa principal desse Congresso é justamente a criação de um programa político que conecte o socialismo científico às condições econômicas, políticas e ideológicas do Brasil de 2023, e todos debates organizativos só farão sentido se forem direcionados à efetivação de nosso programa a partir de uma estratégia e de táticas revolucionárias.

Um exemplo claro disso é o fato de que não podemos definir quais são os setores de lutas/do trabalho nos quais precisamos nos inserir prioritariamente (ou se essa prioridade se justifica cientificamente), p. ex., se não fizemos antes um diagnóstico pormenorizado acerca de nossa formação social. Isso seria dar um tiro no escuro.

Discutindo sobre a questão de delegades nates, um camarada me questionou se uma célula seria capaz de determinar se um dirigente regional foi, ou não, um bom dirigente, afirmando que o melhor seria que esses dirigentes estivessem necessariamente na etapa regional para responder a eventuais questionamentos sobre sua gestão que pudessem surgir (se não entendi errado).

Sobre isso, reforço minha posição sobre a preponderância do caráter político do Congresso e de nossa própria atuação, no sentido de que se esse Congresso redefine nosso programa político não seria produtivo tecer críticas retroativas a partir de critérios que sequer existiam em um momento passado. Entendo que na verdade o próprio programa político e a própria redefinição de nossa forma organizativa a partir dele são uma crítica por excelência aos entendimentos e às lideranças anteriores, uma crítica construída coletivamente e que não deve ser personalizada.

Ademais, se falamos em proletarização de nossas fileiras como consequência de uma política comunista, devemos começar a empreender esse esforço de baixo para cima, elevando os níveis das discussões políticas travadas em todos os âmbitos e tratando das questões difíceis e espinhosas desde o início de nosso processo congressual, sem deixar nada pra depois.

Afinal de contas, camaradas, se o Congresso é um momento de construção coletiva de um programa e de um estatuto e as etapas de base/de célula representam o seu momento inicial de produção desse acúmulo coletivo,  ê delegade é apenas o representante desse acúmulo, não proprietárie. Reforçar a participação de todes nesse processo é justamente reforçar o caráter coletivo de nossos esforços e de nossas direções.

Tenho certeza de que todos ês atuais dirigentes são perfeitamente capazes de participar dessas etapas e de contribuir imensamente para seu enriquecimento, justamente em razão dos diversos saberes que ês levaram a ser eleites para essas funções.

Além disso, outro impacto importante da adoção dessa medida seria um impacto financeiro negativo, causado pela necessidade de acomodar, transportar e alimentar mais militantes durante as etapas regionais.

Entendo que para além do reforço da legitimidade do processo congressual, nossas finanças também se beneficiariam do fortalecimento das etapas de base, uma vez que a participação de todes nas primeiras etapas resulta também num alívio sobre o custeio do Congresso, cujo financiamento sabemos não ser uma pequena tarefa.

Enfim, camaradas, penso que precisamos nos chacoalhar da inércia pecebista tal qual um cachorro se seca e realmente tratarmos, desde já, de construir uma organização coletiva, que exista, cresça e frutifique apesar de nossos esforços e falhas individuais, no sentido que aqui expõe Amílcar Cabral [1]:

“Devemos evitar a obsessão de alguns camaradas de que tudo estará estragado, tudo irá acabar se eles deixarem a posição que estão. Ninguém é indispensável nesta luta; todos somos necessários, mas ninguém é indispensável. Se alguém precisar ir embora e acaba indo e então a luta fica paralisada, é porque essa luta era inútil. O único orgulho que temos hoje em dia, que eu tenho, é a certeza que, depois do trabalho que tivemos, se eu tivesse que ir embora, ser parado, morrer ou desaparecer, existiriam aqueles aqui no Partido que poderiam continuar a tarefa do Partido. Se isso não acontecesse, então que desastre; nós não teríamos conquistado nada. Uma pessoa que tiver enquanto conquista algo que somente ela pode dar prosseguimento não fez nada ainda. Uma conquista vale a pena, somente quando pode ser uma conquista de muitos, e se existem muitos que conseguem tomar essa conquista e sustentá-la, mesmo que um par de mãos seja levado embora”.

P.s.: fui informado de que a II Plenária Nacional, que definiu as pré-teses para o Congresso, proibiu a eleição de delegados nacionais nos Estados, de forma que sei agora que não haverão delegados natos. Todavia, ainda acho a polêmica importante em razão de seu plano de fundo político, de modo que ainda assim envio o texto para leitura e crítica de todes.


[1] Amílcar Cabral, “Os Insubstituíveis”, https://www.marxists.org/portugues/cabral/ano/mes/94.htm;