'A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira (uma resposta aos camaradas Yuri Miyamoto e Ouriço Azul)' (L. Queen)

É somente se apropriando do método que poderemos levar à cabo a Revolução Brasileira, e se continuamos a definir a China como socialista é simplesmente porque nossa militância não se apropriou do método.

'A vulgarização do marxismo, a China e a Estratégia da Revolução Brasileira (uma resposta aos camaradas Yuri Miyamoto e Ouriço Azul)' (L. Queen)

Por L. Queen para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

Recentemente me deparei com duas tribunas que, na tentativa de argumentar a favor da tese da China socialista, jogam uma pá de poeira sobre o debate, mistificando e vulgarizando a teoria marxista sem trazer nenhum tipo de argumento realmente novo para o debate. Me refiro às tribunas “Uma resposta sobre a Delegação do Distrito Federal: Como se transformar em um liberal medíocre” do camarada Ouriço Azul e “China: um socialismo imperialista” do camarada Yuri Miyamoto.

A tribuna do camarada Ouriço Azul é uma enorme confusão teórica e metodológica, em que o camarada tenta argumentar pela manutenção do termo “socialismo com características chinesas” nas nossas teses. Vejamos:

Um lado defendia que se mantivesse “o vertiginoso avanço do capitalismo na China”, o outro defendia substituição por “o vertiginoso avanço das contradições estruturais do Socialismo com características chinesas”. Eu defendo a segunda opção e posso falar o porquê. Não é porque eu acredito que não existam contradições de modos de produção capitalistas na China mas porque é importante estudar o socialismo com características chinesas pelo o que ele é.

O camarada, de maneira extremamente irônica diz, ainda:

Posso falar por mim, não sou pro-china, etapista, revisionista, basista, o-que-seja-ista, muito pelo contrário, e luto contra a utilização desses termos de maneira acritica e em tom de superioridade quase moral. Acredito que é comum que oportunistas se apoderem desses termos afim de mostrar autoridade e domínio incontestável da teoria (...).

Portanto, se utilizando do termo oportunista de maneira acrítica, já que oportunismo significa o abandono das posições proletárias, do método e teoria marxista. Curiosamente, o camarada cai em uma posição claramente oportunista ao abandonar completamente o método em sua tribuna, não constituindo, em momento algum, uma crítica devidamente marxista, fundamentada nas relações de produção chinesas e no desenvolvimento histórico deste país. Oportunismo, camarada, não é um xingamento moral contra pessoas do mal, é uma clara caracterização de uma posição política – independentemente das boas intenções do camarada.

De modo similar, o camarada Yuri sugere que devemos observar o fenômeno do “socialismo” chinês com base nos fatos e não nas aparências, muito embora ele siga com sua análise, nem baseada em aparências, nem muito menos em fatos:

Porém, camaradas, não custa lembrar que “toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas”. Portanto, se seguimos o marxismo-leninismo e acreditamos que ele é a ciência do proletariado, é uma contradição aprovar nossas teses baseando-nos apenas na aparência das coisas.

Assim, eu gostaria antes de mais nada tentar limpar o terreno dos diversos significados equivocados sobre o que é o socialismo e assumir uma definição simples e que seja mais ou menos consensual: socialismo é a fase inferior do comunismo, uma etapa de transição para a sociedade sem classes em que o Estado definha à medida que as classes e a propriedade privada são suprimidas, definida como uma ditadura do proletariado sobre TODAS as outras classes.

Portanto, nesta definição que creio (ou espero) que dificilmente teremos discordâncias em nosso partido temos dois elementos centrais: 1) a transição de um modo de produção burguês para um modo de produção em que a propriedade é coletiva, os produtos da produção econômica são divididos de acordo com as necessidades de cada trabalhador e ninguém é responsável por se apropriar do trabalho alheio; e 2) a classe proletária é a classe dominante sobre todas as outras (campesinato, burguesia, pequena-burguesia, etc), exercendo poder sobre elas a partir do Estado proletário, a ditadura do proletariado.

São essas as características que definem o socialismo: o movimento em direção à supressão das formas de propriedade privada e o poder exercido pelo proletariado através de seus órgãos de poder.

Portanto, se os camaradas querem conhecer a China por sua essência, isto é, suas relações reais de produção e não por sua aparência, eles devem se perguntar se a China cumpre estes dois critérios. Particularmente eu esperava que a tribuna do camarada Gabriel Xavier, criticada pelo camarada Ouriço Azul, fosse o suficiente para provar a todos que a China não é, nem nunca foi, uma ditadura do proletariado. Para mim, a própria teoria maoísta do Bloco de Quatro Classes e da Nova Democracia já seriam suficientes para provar a validade desta hipótese, mas os camaradas se negam a observar isso.

1. As características econômicas do projeto do “socialismo” com características chinesas

Gostaria de começar observando, então, o que o “socialismo” com características chinesas é, de acordo com os próprios doutrinadores do PCCh – já que, em momento algum, ninguém se propôs a ler a própria doutrina oficial referente ao “socialismo” com características chinesas. Se isso não bastar, irei mais para frente trazer dados materiais que demonstram a falência do socialismo chinês ainda sob o período maoísta e tentarei, contra todo meu bom senso, definir uma data (aproximada) para seu fim, já que o camarada Yuri sugere, de maneira completamente absurda, que não podemos dizer que o socialismo chinês acabou porque não há uma data para seu fim (eu espero sinceramente que o camarada repense o absurdo anti-dialético que é a suposição de que só podemos dizer que o socialismo em um país acabou quando tivermos uma data objetiva para tal).

Vejamos o que diz Wu Xuangong, professor do departamento de economia da Universidade de Xiamen, vice-reitor e secretário do Comitê do Partido Comunista da China na Universidade de Xiamen (ou seja, um doutrinador, no sentido objetivo do termo, do PCCh). 

Pelo fato de passar pelo processo de reforma e abertura, em nosso país formou-se uma estrutura social onde as relações de produção socialistas e capitalistas existem ao mesmo tempo. Estes dois tipos de relações de produção são essencialmente distintos, por isso possuem objetivos sociais de produção completamente diferentes, leis de desenvolvimento diferentes, assim como são diferentes as contradições sociais e os seus impactos. (...)

O objetivo da produção social no socialismo é atender as crescentes necessidades materiais e culturais dos trabalhadores; sua contradição principal é que o desenvolvimento da produção não pode satisfazer às crescentes necessidades dos trabalhadores. No capitalismo, o objetivo da produção social é buscar o máximo de mais-valia; sua contradição principal se manifesta como uma contradição entre os capitalistas e os trabalhadores assalariados, a contradição entre a produção organizada no interior da empresa e a situação onde a produção social é cega, a contradição da capacidade relativamente insuficiente de se pagar o desenvolvimento da produção. (...)

Na China socialista, há muitas contradições e problemas complicados porque, com a dualização da propriedade e das relações de produção, existem também as leis econômicas do capitalismo, além das leis econômicas socialistas. Nas relações de produção socialistas, os meios de produção e os produtos do trabalho são apropriados coletivamente pelos trabalhadores. (...)

Completamente diferente do socialismo são as relações de produção capitalistas. Nas relações de produção capitalistas, a burguesia possui e controla todos os fatores de produção, com o objetivo de maximizar o seu lucro, tentando fortalecer a exploração dos trabalhadores nas empresas, (...). 

Além disso, as duas relações de produção e as suas leis econômicas coexistem em nossa sociedade e inevitavelmente influenciam-se. A economia pública socialista, especialmente a economia estatal, tem um certo efeito externo positivo sobre a economia privada. (...) A economia estatal desempenha um papel importante nos objetivos de regulação e controle, o que ajuda na redução dos danos ao desenvolvimento coordenado da produção social pelo impulso privado que visa ao lucro; desempenha um papel de liderança na inovação tecnológica, no ajuste estrutural social e econômico e na proteção ecológica e ambiental. Da mesma forma, as leis do capitalismo têm um enorme impacto sobre a economia pública socialista, principalmente interferindo no funcionamento normal das leis econômicas socialistas. Devido à pressão competitiva da economia capitalista, as empresas estatais também devem lutar por mais acumulação. Por isso, não podem aumentar os salários e os benefícios, nem podem assumir mais responsabilidades sociais e realizar os objetivos de produção socialista. Sob a influência dos maus comportamentos da burguesia, nestas circunstâncias, algumas empresas estatais também podem realizar algumas atividades irregulares, o que não conduz à utilização eficaz dos recursos sociais e à coordenação das relações de cooperação entre as empresas estatais.

Temos aqui uma série de confusões e confissões liberais por parte do teórico chinês. Vejamos, o “camarada” Wu diz em seu texto que a produção socialista “não pode satisfazer às crescentes necessidades dos trabalhadores”, repetindo um mito liberal e anticomunista. Por esse motivo a produção capitalista existe na China, para contrabalancear a pouca produtividade da produção socialista.

Porém, o que Wu chama de produção socialista? Fica claro que “economia pública socialista” para ele é, em última instância, sinônimo de “economia Estatal”. Aqui já podemos realizar uma segunda crítica a respeito desta ideia: economia estatal não é, nem de longe, um fenômeno socialista ou um sinônimo de socialismo. Na verdade, é um fenômeno que surge justamente com o capitalismo na tentativa dos Estados nacionais de suprirem as necessidades de suas burguesias por uma infraestrutura que só é possível com investimentos de longa duração e alto montante, com pouca possibilidade de retorno de lucro em curto ou médio prazo. Para além disso, Wu diz que a economia estatal chinesa não funciona completamente tal qual uma economia estatal socialista deveria funcionar, ou seja, promovendo a “redução dos danos ao desenvolvimento coordenado da produção social pelo impulso privado que visa ao lucro” e desempenhando “um papel de liderança na inovação tecnológica, no ajuste estrutural social e econômico e na proteção ecológica e ambiental” (isso tomando sua própria definição do que seria uma economia estatal socialista, que ainda é rebaixada e burguesa). Do contrário, ele admite que “devido à pressão competitiva da economia capitalista, as empresas estatais também devem lutar por mais acumulação” e, por isso, “não podem aumentar os salários e os benefícios, nem podem assumir mais responsabilidades sociais e realizar os objetivos de produção socialista”.

Ou seja, até mesmo aquilo que Wu define como sendo o lado “socialista” da produção econômica chinesa está terrivelmente tomado por relações burguesas de produção. As empresas estatais, supostamente socialistas, trabalham incessantemente para a geração de mais valia e para o acúmulo de capital. Vejamos a explicação que ele dá para que isso tenha acontecido:

Antes da reforma e da abertura, o sistema de propriedade estatal estava altamente concentrado no Estado, e as tarefas de produção das empresas eram atribuídas pelo Estado em diferentes níveis, e todos os lucros eram pagos ao Estado, enquanto todas as perdas eram subsidiadas pelo Estado. Sob este sistema de direitos de propriedade, as empresas não têm autonomia nem interesses locais, e não são responsáveis por lucros e perdas; portanto, não se podem tornar verdadeiros agentes do mercado.

Alguns estudiosos, ao simplesmente considerarem a propriedade como uma relação entre quem possui os meios de produção e tratarem a estrutura na qual todos os tipos de direitos de propriedade estão concentrados no Estado como a única forma de propriedade estatal, argumentaram que o sistema estatal é incompatível com a economia de mercado. Após a reforma, a maioria das empresas estatais implementou um sistema de direitos de propriedade que separa propriedade e administração, e algumas também estabeleceram um sistema corporativo que separa os direitos de propriedade dos contribuintes dos direitos de propriedade das pessoas jurídicas. (...) Desta forma, as empresas estatais, que não tinham seus próprios poderes autônomos e interesses parciais, tornaram-se entidades proprietárias com uma parte substancial (ou a totalidade) dos direitos de propriedade. Sob este novo sistema de direitos de propriedade, a existência ou não de uma troca de equivalentes entre as empresas estatais depende de os custos de mão de obra da empresa poderem ou não ser realizados (...).

Quando o Estado e uma empresa estatal precisam dos produtos uns dos outros, eles não adotam os mesmos métodos de alocação como no passado, mas realizam a troca por meio do mercado a preços iguais, de modo que não infringem os interesses econômicos de ambos. (...) Como resultado, deve ocorrer uma verdadeira relação de mercantil entre o Estado e a empresa estatal. Quando as empresas estatais gozam de poder e interesses independentes e se tornam produtores e operadores mercantis verdadeiramente independentes, elas só podem organizar suas atividades econômicas de acordo com as condições de mercado e submeter-se à autoridade da lei do valor e do mecanismo de mercado para seus próprios interesses e desenvolvimento. O Estado não pode mais dirigir as atividades das empresas apenas por meios administrativos e de planejamento, como fazia no passado. Como resultado, o mecanismo de mercado tornou-se inevitavelmente o meio e a forma básica de regular a alocação de recursos sociais, e a economia planificada foi gradualmente substituída pela economia de mercado.

Se um trecho desses não coloca um comunista de cabelos em pé, eu sinto dizer que este “comunista” não se trata de um comunista de fato. Portanto, Wu admite (e ao longo do texto ele realiza inúmeras loas ao “socialismo” com características chinesas) que após o movimento chamado de abertura e reforma, iniciado por Deng Xiaoping, a “economia planificada foi gradualmente substituída pela economia de mercado”, devido às insuficiências da planificação econômica – um argumento que poderia sair da boca de um Reinaldo Azevedo. Além disso, ele admite que a economia estatal passou a agir tal qual a economia privada, buscando lucros e acúmulo de capitais, pois era objetivo do Partido tornar as empresas chinesa em “agentes do mercado”. Fica evidente, em todo este trecho, que a preocupação do Partido Comunista Chinês é, na verdade, mercantilizar as relações de produção na China (e no mundo).

Podemos ainda observar outro trecho, desta vez do “camarada” presidente Xi Jinping em sua coletânea “A Governança da China”, no texto chamado “Como resolver as principais dificuldades na realização da Primeira Meta Centenária”:

Em relação às tarefas-chave de transformar o modelo de crescimento econômico e ajustar a estrutura econômica, foram apresentadas exigências específicas nas "Recomendações do Comitê Central do Partido Comunista da China para o 13º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social". A chave para realizar essas exigências está em garantir um desenvolvimento de alta qualidade e eficiente. (...) Primeiro, os investimentos devem ser produtivos. (...) Segundo, os produtos devem ser comercializáveis, o que determina se um investimento terá retornos razoáveis. Se o governo, sem analisar o mercado, substituir empresas na alocação de recursos, ou incentivar as empresas a expandir investimentos por meio de políticas preferenciais, provavelmente impedirá o progresso contínuo. Terceiro, as empresas devem obter lucros. Ser uma empresa significa ter a capacidade de ganhar dinheiro. (...) Devemos basear nossas políticas no desenvolvimento das empresas, especialmente das empresas na economia real, prestar atenção especial ao seu desenvolvimento sólido e aumentar sua lucratividade. Quarto, os funcionários devem ter rendimentos razoáveis. (...) Ninguém trabalharia em uma empresa se os salários (...) fossem inferiores ao salário médio determinado pelo mercado. Claro, se os salários aumentarem mais rapidamente do que os lucros de uma empresa determinados pela macroeconomia, os salários mais altos se tornarão um peso. Em tais circunstâncias, algumas empresas estrangeiras intensivas em mão de obra transferirão para outros países com menores custos salariais. Quinto, o governo deve arrecadar impostos. O governo deve fornecer serviços públicos e infraestrutura. De onde o governo obtém o dinheiro? Principalmente das receitas fiscais. O governo também pode emitir títulos, mas não pode se exceder.

Podemos observar, novamente e de maneira muito clara, que os objetivos do PCCh estão ligados diretamente à produção de mais-valia e à expansão dos lucros das empresas privadas. Repare, não falo apenas da manutenção dos lucros, ou da existência razoável do lucro (que já seria de se questionar), mas da necessidade de aumentar a lucratividade das empresas, subordinando a política do PCCh aos mandos e desmandos do mercado. Não se pode aumentar os salários, porque as empresas iriam sair da China para países com mão de obra mais barata. Ora, um comunista deveria dar graças a Deus se uma Tesla saísse de seu país, já que dificilmente a Tesla conseguiria arrancar sua fábrica do território chinês e recolocá-la em outro país. Seria a oportunidade perfeita para a nacionalização dessa empresa!

A partir do momento que um Partido Comunista assume que precisa controlar o crescimento dos salários para não melindrar a burguesia e derrubar suas margens de lucro e, do contrário, busca o aumento da produção de mais valia, há uma confissão clara de que a conciliação de classes é o modus operandi e que não há poder proletário de modo algum controlando o Estado.

Ainda, vemos aqui outro mito liberal: o governo obtém dinheiro de receitas fiscais? Não seria esse o mito neoliberal que tanto combatemos contra o teto de gastos de Haddad? É essa a lógica de funcionamento de um Estado socialista? Arrecadar receitas por meio de impostos e gastar posteriormente em suas despesas?

Portanto, temos que, de acordo com os doutrinadores, subsistem dois sistemas econômicos na China: uma forte economia privada, de forma que 92,3% de todas as empresas da China são privadas[1]; e uma economia estatal que, embora menor em termos numéricos, é também forte pelo porte de suas empresas. Contudo, a economia estatal chinesa atua, em grande parte, tal qual a economia privada, buscando a expansão dos lucros, a acumulação de capital e o equilíbrio do mercado.

Não quero aqui, de modo algum, dizer que acho que deve ser objetivo de uma revolução socialista o fim imediato de toda forma de propriedade privada. Acho isso um tanto quanto improvável e inviável. Mas me chama a atenção que o movimento histórico dos desenvolvimentos das forças produtivas chinesas ocorre na direção contrária à supressão da propriedade privada, de acordo com os próprios doutrinadores chineses, visto que faz parte das metas CENTENÁRIAS o aumento da lucratividade das empresas.

É fundamental ainda ressaltar que nos três volumes de “A Governança da China” o termo “classe trabalhadora” aparece muito pouco, geralmente usado de modo ufanista e demagógico, muito distante de uma análise de classes marxista, enquanto “mercado” é citado inúmeras vezes, sempre na perspectiva de crescimento, melhoria e expansão, como se fosse algo positivo. Veja bem, esta coletânea é um importante registro do Pensamento Xi Jinping e a única conclusão possível de se tirar ao ler seus textos é que o pensamento Xi Jinping é mais próximo de um social chauvinismo do que de fato de um marxismo-leninismo. A isso se soma a definição feita no artigo “Trabalho Duro Torna Sonhos Realidade” (um título bem sugestivo) de que “os valores socialistas fundamentais são prosperidade, democracia, civilidade, harmonia, liberdade, igualdade, justiça, o estado de direito [rule of law], patriotismo, dedicação, integridade e amizade”. Nesta coletânea também é dita, em diversos momentos, a respeito do “sonho chinês”, um sonho de prosperidade comum para o “povo”, uma ideologia muito similar à ideologia sonho americano em muitos aspectos: trabalho duro recompensa, crescimento econômico, harmonia entre classes, patriotismo chauvinista, etc.

Eu pergunto aos camaradas que defendem que denominemos o sistema econômico-político chinês de “socialismo com características chinesas” se são estes os valores socialistas fundamentais que eles acreditam: estado de direito, patriotismo, democracia e liberdade. Se eles me disserem que acreditam nessa bobagem liberal, peço que escrevam logo uma tribuna defendendo o “socialismo com características nórdicas” e o eurocomunismo, para podermos separar o joio do trigo dentro deste novo Partido em construção.

Dessa forma, caracterizar o “socialismo” com características chinesas como socialismo, como o camarada Yuri acredita ser o correto, seria, do contrário do que o camarada defende, assumir a aparência das coisas como sua essência. Não há nas relações de produção econômica, nem nas relações de poder chinesas um mínimo que seja de uma tentativa de superação da propriedade privada ou de poder proletário. Dessa forma, o camarada Yuri realiza uma inversão dos fatos e das evidências, dizendo que é um absurdo que um país socialista faça parte da cadeia imperialista mundial e que, por isso, a China não poderia fazer parte da cadeia imperialista. A inversão está justamente em negar as evidências claras que não há nada de socialista na China contemporânea, pelo menos desde o final da Revolução Cultural (se vocês, contra toda teoria marxista, não querem aceitar o fato de que a Nova Democracia chinesa e a aliança do bloco de quatro classes nunca constituíram uma ditadura do proletariado). Por outro lado, as evidências de que a China é um país que se insere na cadeia imperialista estão aí aos montes. Vejamos a mais recente delas, a possível compra da empresa brasileira SIGMA Lithium, pela chinesa BYD, que se encontra em uma disputa com o capital americano, na caricata figura do bilionário Elon Musk e sua Tesla:

Citando o Financial Times, a Reuters divulgou que a fabricante chinesa de carros elétricos BYD está mantendo negociações com a Sigma Lithium sobre um possível acordo de fornecimento, joint venture ou aquisição. Informa-se que a BYD manteve um encontro com a presidente-executiva da Sigma, Ana Cabral Gardner, em São Paulo, em dezembro passado, o que foi confirmado pelo presidente da BYD no Brasil, Alexandre Baldy, sem fornecer mais detalhes.

Em janeiro de 2024, a Sigma iniciou o processo para listagem primária da Sigma Brazil, proprietária dos direitos minerários de minério de lítio que a empresa possui no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, nas bolsas Nasdaq e de Cingapura, como um passo para a venda da empresa a grupos interessados. A Sigma está em negociações com as empresas CATL (maior fabricante de baterias de lítio da China), Volkswagen e agora a BYD. As negociações com a BYD envolvem tanto o fornecimento de concentrado de lítio grau bateria, para uma fábrica que a empresa chinesa pretende instalar no Brasil, com apoio financeiro da Berkshire Hathaway, do bilionário Warren Buffet – que disse estar disposto a investir até R$ 3 bilhões – quanto uma possível associação ou aquisição[2]. 

Reparem no trecho acima que o capital chinês, nas figuras da BYD e da CATL, está competindo com o capital alemão, na figura da Volkswagen, pelo controle do Lítio da Sigma. Em uma matéria recente do Intercept, ficamos sabendo ainda que a Tesla também está envolvida nessa disputa de capitais[3]. Para além disso, precisamos observar as relações de exportação de capital que a China estabeleceu com o Brasil nos últimos anos: 

No Brasil, a China se tornou ao longo deste século o maior investidor externo do país. Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores divulgados em 2019, entre 2003 e 2019 os chineses colocaram por aqui US$ 72 bilhões, ou 37,3% do total investido por estrangeiros.

Apesar de menores em número de projetos, os chineses já investem mais no Brasil do que americanos ou japoneses e canadenses, cuja presença no país já está estabelecida há décadas.

Diferente dos americanos também, chineses têm atuado por aqui, ao menos neste primeiro momento, por meio da compra de participações em projetos locais, seja majoritária ou minoritária, como os campos do pré-sal adquiridos durante o leilão de Libra.

Do total investido por chineses, apenas 11% foi destinado a projetos novos. O restante focou em aquisições[4].

Assim, 89% dos investimentos chineses no Brasil são para a compra e aquisição de empresas brasileiras, muitas delas fruto de privatização. Portanto, monopólios chineses estão exportando capitais (ou seja, exportando a exploração do trabalho) para países da periferia do sistema capitalista. Seria isso um exemplo do internacionalismo proletário chinês? Se os camaradas não consideram isso como ser parte da cadeia imperialista, espero que eles parem de se enganar e defendam de vez o fim do marxismo-leninismo como teoria guia do Partido.

Se ainda querem evidências militaristas do imperialismo chinês, como se imperialismo fosse sinônimo de política militarista, podemos falar do Partido Comunista da Burma, que rachou em 1989 para formar o Exército da Aliança Nacional Democrática do Myanmar (MNDAA em inglês), localizado na região do Kokang. Este exército busca separar a região de Kokang, de maioria étnica Han e na fronteira com a China, do restante do Myanmar. Recentemente junto com o Exército Arakan e o Exército de Libertação Nacional Ta’ang, o MNDAA formou a Aliança da Irmandade [Brotherhood Alliance], com diversas ligações e influências da China no processo:

Uma série de conversas em Kunming intermediadas pela China viu o regime [do Myanmar] e a Aliança da Irmandade de três exércitos étnicos - o Exército da Aliança Democrática Nacional de Mianmar (MNDAA), o Exército de Libertação Nacional Ta'ang (TNLA) e o Exército Arakan (AA) - concordarem com um cessar-fogo em meados de janeiro, embora o cessar-fogo tenha sido limitado ao norte do estado de Shan, que faz fronteira com a China.

A Aliança da Irmandade rapidamente sofreu pressão da China para interromper os combates após lançar sua ofensiva anti-regime Operação 1027 no norte do estado de Shan, no final de outubro do ano passado.

A China tem enormes investimentos em Mianmar, incluindo minas de cobre e níquel, projetos de energia hidrelétrica e comércio transfronteiriço no valor de mais de US$ 5 bilhões por ano. Além disso, possui oleodutos e gasodutos que vão da cidade fronteiriça chinesa de Ruili, passando pelo norte do estado de Shan, pelas regiões de Mandalay e Magwe, até o estado de Rakhine, no Golfo de Bengala.

Qualquer interrupção nesse fornecimento poderia impactar seriamente os negócios na China, especialmente na província de Yunnan, sem litoral.

Atuando em seus interesses nacionais, Pequim interferiu abertamente na ofensiva lançada pela Aliança da Irmandade, sobre a qual possui influência.[5]

Portanto, aqui há uma clara influência da China sobre grupos separatistas, que atuam para proteger os interesses chineses no Myanmar. O governo do Myanmar já acusou a China de financiar estes grupos:

O governo de Mianmar afirma que ex-soldados chineses recrutados como mercenários estão entre aqueles que apoiam os rebeldes étnicos Kokang em combates mortais contra tropas governamentais.

O tenente-general Mya Htun Oo, chefe de assuntos de segurança militar, fez a afirmação no sábado, enquanto um espectro mais amplo de grupos rebeldes étnicos emitia uma declaração de apoio moral aos Kokang[6].

É possível ainda encontrar em páginas no Twitter de propagandistas do Exército Popular de Libertação Chinês inúmeras exaltações destes grupos étnicos. Felizmente já não possuo mais uma conta nesta rede social e, infelizmente, não poderei trazer aqui as referências, já que o Twitter agora limita quem pode acessar seu conteúdo àqueles que possuem conta registrada. 

Mas, o que eu vejo aqui é: um Partido Comunista que rachou, a partir de 1989 (período em que Deng Xiaoping já era Chefe do CC do PCCh), em grupos separatistas étnicos que possuem ligações orgânicas com a China. Não há nada de socialista nisso. O socialismo é uma ideologia internacionalista e que vê a classe trabalhadora como única, qualquer tentativa de dividi-la em grupos étnicos é um ato contrário aos fundamentos mais básicos do marxismo. Na verdade, o que há aqui é um chauvinismo Han servindo aos propósitos econômicos chineses, mesmo que isso leve a uma balcanização do Myanmar (o que já acontece na prática). Não adianta tentar disfarçar isso como uma exportação da revolução, porque se fosse o caso (como foi no caso da terceira internacional), haveria uma tentativa de unificação destes diversos movimentos em um Partido Comunista unificado, e não o racha de um Partido Comunista em movimentos separatistas étnicos. Se trata, na verdade, de uma tentativa de balcanizar o Myanmar.

Nada disso parece em nada com socialismo ou marxismo-leninismo, nem as políticas econômicas de exportação de capital à países da periferia, nem a balcanização do Myanmar. O que a China pratica, hoje, na verdade, é uma política similar àquela exercida pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial, em que ofereceu créditos baratos para a reconstrução da Europa em relações “ganha-ganha”, mas que, ao longo do tempo, sedimentaram relação de subordinação; enquanto balcanizava países da periferia do capitalismo para seus interesses próprios. Se os camaradas querem argumentar a favor do “socialismo” com características chinesas, espero que eles tragam dados e batam estes dados com a teoria marxista-leninista, com o materialismo histórico, e não apenas com suposições metafísicas do que seria o socialismo, em contraposição ao socialismo real. Se balcanizar o Myanmar é um efeito do “socialismo real”, então me coloquem no barco dos socialistas utópicos.

Isso que os camaradas fazem ao defenderem o caráter socialista do Estado chinês é um abandono da práxis, isto é, a prática fundamentada na teoria marxista. Não existe um “socialismo real” em contrapartida a um socialismo metafísico. O que existem são relações sociais de produção e poder socialistas ou não. Se o dito “socialismo” real não é uma ditadura do proletariado e não aponta para a superação das formas de produção burguesas ele não é socialismo, nem metafísico, nem real, por mais que assim se autodefina. É necessário, como bem nos diz o método, olhar para as relações de produção para definir um país como socialista.

2. Das estruturas de poder na China contemporânea

Gostaria ainda de trazer mais algumas evidências factuais, históricas e fundamentadas em dados concretos, sobre o desenvolvimento histórico do capitalismo chinês, sua relação com o Partido Comunista e as estruturas de poder da China contemporânea. Dessa vez trago um texto de comunistas contemporâneos chineses, comunistas de verdade. Se trata de um enorme estudo do Coletivo Chuang[7], com mais de duzentas páginas, a respeito da China. Não posso aqui, evidentemente, reproduzir a integridade do estudo, mas gostaria de destacar alguns trechos a respeito da história da China, já que o camarada Yuri parece fazer questão de uma data para definir o fim do socialismo na China, com o objetivo de delimitar o desenvolvimento do socialismo chinês em termos históricos como tendo seu fim definitivo junto da Revolução Cultural.

Quero ressaltar particularmente dois períodos: o período inicial de desenvolvimento do socialismo chines, desde o período revolucionário até o final dos anos 50, que eles chamam de “projeto comunista”, e o período da Revolução Cultural, que é exatamente o período em que a linha esquerda foi derrotada, com a capitulação de Mao (em consonância com a análise de Francisco Martins Rodrigues). Vejamos um trecho da introdução do documento:

Ao longo do período revolucionário e até o final da década de 1950, nos referimos a esse processo como um "projeto comunista". Este projeto foi incrivelmente diverso ao longo de sua existência, e sempre foi definido por seu status como um movimento de massa com raízes profundas na população. (...) Com o tempo, a visão e a estratégia específicas do PCCh ganhariam hegemonia - mas isso também significava que o próprio PCCh absorvia parte da heterogeneidade do movimento, que assumiria a forma de facções (e expurgos) dentro do próprio Partido. Essa hegemonia, no entanto, não foi imposta sobre o projeto [comunista]. Foi o resultado de um mandato popular dado ao PCCh, que havia sido fundamental para a formação de um exército camponês bem-sucedido e de um movimento operário clandestino durante a ocupação japonesa.

Aqui, portanto, podemos ver que, de fato, o começo do processo de construção do socialismo chinês foi um processo de massas, com ampla participação popular e uma tentativa honesta do PCCh de se direcionar ao comunismo. Quero ressaltar isso aqui porque precisamos, de fato, não jogar o bebê com a água do banho, como disso o camarada Ouriço Azul. Assim, muitos dos ensinamento e escritos do camarada Mao Zedong permanecem importantíssimos para o nosso movimento hoje e devemos sim estudá-los. Devemos entender que a Revolução Chinesa foi, sim, uma revolução “genuína” como diria Fidel Castro, levada à cabo pelo povo chinês (ainda que fosse uma revolução de libertação nacional que instaurou uma ditadura democrática popular e não uma ditadura do proletariado). Prosseguindo:

O PCCh manteve sua hegemonia no projeto comunista nos primeiros anos do pós-guerra, liderando campanhas populares de redistribuição no campo e reconstruindo as cidades. Com os fracassos do final da década de 1950 (fome no campo e greves nas cidades costeiras), não apenas o mandato popular do PCCh foi questionado, mas o próprio projeto comunista começou a se ossificar. À medida que a participação popular evaporava em resposta a esses fracassos, o que havia sido um projeto comunista de massa foi reduzido a seus meios: o regime de desenvolvimento. Esse regime só poderia ser mantido pela intervenção cada vez mais extensiva do Partido, que o fundiu com o Estado (como um aparato administrativo burocrático de facto) e cortou sua conexão com o projeto comunista.

Mesmo no auge de sua diversidade, no entanto, este projeto foi, em última instância, definido por um horizonte comunista específico que havia surgido da combinação do movimento operário europeu e da própria história da região de revoltas camponesas milenares. Hoje, esse horizonte comunista não existe mais. Não há sentido em "tomar partido" nessas questões históricas, simplesmente porque não há simetria entre então e agora - as condições materiais (expansão industrial rápida, grande periferia não capitalista, etc.) que estruturavam esse horizonte comunista anterior estão ausentes, mesmo que as crises fundamentais do capitalismo permaneçam.

Assim, o coletivo argumenta que a China contemporânea abandonou este projeto comunista, que teria seu ponto de virada justamente no fracasso da revolução cultural. Mais do que “abandonar” o projeto comunista, acho importante dizer que a linha de esquerda, verdadeiramente comunista, foi derrotada no processo da Revolução Cultural e a restauração da ditadura da burguesia foi realizada plenamente.

Aqui é importante entender o que levou a essa burocratização do PCCh e a transformação de seus quadros em burgueses. De acordo com o coletivo, o conceito de classe na China se modificou, após o período revolucionário, para se adequar mais a uma ideia de origem de classe do que propriamente de classe no sentido marxista do termo. Eles dizem:

Os primeiros a responder ao apelo do Partido para "rebelar" foram os filhos relativamente bem-sucedidos das elites políticas, concentrados nas principais universidades do país. Esses estudantes não percebiam intuitivamente a verdadeira estrutura do sistema de classes sobre o qual estavam assentados e tinham muito pouco contato com a maioria camponesa do país. "Classe" era, portanto, compreendida de acordo com categorias administrativas oficiais. Eles vinham de origens de "boa" classe, como filhos de quadros, soldados revolucionários ou mártires, enquanto seu entorno era povoado por pessoas de origem de "má" classe: aqueles que haviam sido pequenos comerciantes, donos de oficinas ou capitalistas antes de 1949, bem como aqueles que haviam sido designados como "direitistas", "elementos ruins" ou "contrarrevolucionários" durante várias campanhas de retificação. Assim como os alunos privilegiados de linhagem "vermelha" participavam da glória de seus pais, os filhos dessas famílias "negras" (ou seja, de má origem de classe) também participavam da vergonha de seus pais. Aqui, a "interpretação predominante da questão de classe" se manifestava na forma da "teoria da linhagem de sangue" (xuetong lun), na qual a classe era entendida como designando uma linhagem tipo casta herdada do período revolucionário. (...) Havia até demandas feitas em grandes cartazes pedindo para que os hospitais parassem as transfusões de sangue daqueles de linhagem vermelha para as famílias não vermelhas, e para proibir completamente as doações de indivíduos de má linhagem.

Portanto, esta era a visão de classe detida pelos estudantes que se rebelaram durante os primeiros momentos da Revolução Cultural. Poderíamos ainda argumentar que esta é uma visão fundamentada no confucionismo, mas não pretendo aqui me alongar nisso. Recomendo a quem quiser compreender melhor a questão do confucionismo que leia o artigo “O Confucionismo é compatível com o marxismo?” do marxista chinês Hao Guisheng[8] (a resposta curta à pergunta do título, dada pelo próprio camarada, é que não, o confucionismo não é compatível com o marxismo). A crítica à posição confucionista do “socialismo” com características chinesas é também um ponto importante para o camarada Hao, que argumenta que a filosofia de Confúcio existiu justamente para legitimar as castas e relações feudais de poder e produção. Assim, não me parece incoerente que um movimento que tenha surgido da “teoria da linhagem de sangue” se apegue tanto ao confucionismo.

A visão da “teoria da linhagem de sangue” se modificou para uma visão mais radical ao longo do desenvolvimento da Revolução Cultural, com o surgimento da “Comuna de Xangai”, que foi posteriormente suprimida e combatida pelo PCCh. Me perdoem a citação grande:

Não foi até o final de 1966 e início de 1967 que visões mais radicais de classe começaram a ser formuladas, à medida que a Revolução Cultural se espalhava de Pequim para outras cidades chinesas, onde as batalhas de facções entre estudantes seriam substituídas por uma mobilização social mais ampla em ambos os segmentos privilegiados e privados da população urbana. O primeiro pico dessa mobilização geral ocorreu em Xangai no inverno de 1966-1967. Esse processo de radicalização seria posteriormente referido como a "Tempestade de Janeiro", culminando com a formação da "Comuna de Xangai" no início de fevereiro.

(...) Totalmente diferente de Pequim, Xangai era habitada por uma enorme classe trabalhadora, muitos dos quais haviam experimentado a onda de greves uma década antes. Mas ao contrário do final da década de 1950, quando trabalhadores sênior lideraram a supressão de greves por uma minoria de temporários e jovens, Xangai agora encontrava uma porção muito maior de sua força de trabalho em posições ainda mais precárias. Estima-se que, até meados da década de 1960, temporários e "camponeses-trabalhadores"[9] compunham até 30 a 40% da força de trabalho não agrícola de Xangai. Uma grande parte desses temporários era composta por mulheres, já que o sistema "encaminhava mulheres para empregos de baixa remuneração e menos seguros em oficinas de pequeno porte, lojas de varejo e equipes de trabalho temporárias", com cerca de 100.000 mulheres empregadas em tais ocupações até 1964.

Enquanto isso, os salários continuaram estagnados e os benefícios não salariais foram limitados, à medida que o investimento se afastava da "primeira linha" das cidades costeiras e rumava para a "terceira linha" das províncias ocidentais. Mais importante ainda, as políticas de retração pós-GLF [Great Leap Foward / Grande Salto Adiante] viram milhões sendo deportados para o campo em programas de rusticação[10]. Somente em Xangai, a "força de trabalho industrial foi reduzida (jingjian) em cerca de 15 a 20 por cento - mais de 300.000 trabalhadores - entre 1961 e 1963. Cerca de 200.000 desses trabalhadores foram realocados para áreas rurais [...] e perderam assim seu precioso status de residência urbana." Apesar de seu apoio ao estado em 1957, muitos dos afetados por essa demissão em massa eram trabalhadores veteranos, pois sua manutenção era mais cara. Quando o investimento se expandiu novamente na metade da década de 1960, um grupo de rusticates também foi "reassentado nos subúrbios rurais para serem recontratados como trabalhadores temporários", mantendo seu hukou rural.

Isso efetivamente recriou a situação urbana explosiva que existia em 1957, mas em uma escala muito maior. Não apenas os trabalhadores temporários começaram a diminuir a produção no final de 1966, mas, quando as demissões ocorreram, eles agora começaram a formar suas próprias organizações independentes. Em novembro de 1966, a primeira grande organização de trabalhadores temporários foi formada, chamada de "Quartel-General Rebelde dos Trabalhadores Vermelhos". Ao contrário dos grupos estudantis de Pequim, este não era uma pequena facção organizada em torno de uma ou duas instituições, mas uma enorme rede guarda-chuva que "logo se tornou um dos maiores grupos rebeldes da cidade, contando com mais de 400.000 membros." Nem a tendência estava limitada a Xangai. No mesmo mês, temporários de todo o país formaram o "Quartel-General dos Rebeldes Trabalhadores Vermelhos de Toda a China", e "o grupo rapidamente se expandiu, estabelecendo filiais em mais de uma dúzia de províncias" e realizando ocupações nos quartéis-generais da ACFTU [All-China Federation of Trade Unions / Federação de Sindicatos de Toda a China] e do Ministério do Trabalho.

Portanto, vemos que durante a Revolução Cultural existia um substrato objetivo para a indignação dos trabalhadores – péssimos salários e condições de vida, exploração brutal das mulheres trabalhadoras. Existia uma série de conceções do PCCh às burguesias nacionais que constituíam o Bloco de Quatro Classes, no sentido de uma enorme exploração do trabalho, que fundamentavam a revolta. Com este aumento das contradições e a decisão do PCCh de iniciar a Revolução Cultural, estes trabalhadores se viram na possibilidade de tomar o poder e começar a construção, de fato, de uma ditadura do proletariado. Era neste momento, como bem coloca Francisco Martins Rodrigues em seu “A Revolução Cultural e o Fim do Maoísmo”, que a Nova Democracia chinesa poderia dar o salto de qualidade e abrir uma nova revolução em direção à ditadura do proletariado. Contudo, como nos demonstra a história, o PCCh deu para trás e capitulou, efetivamente lutando contra os trabalhadores que iniciaram este processo e transformação das relações de produção do país.

No meio desse caldo houve a possibilidade de surgimento de um movimento comunista que pudesse levar adiante a revolução, mas que infelizmente falhou em se constituir, fosse às margens do Partido ou dentro dele:

Apesar da simples política de poder que sustentava grande parte da atividade dos rebeldes, também surgiram os chamados "novos pensamentos" (xinshichao), alguns dos quais tinham uma natureza mais coerentemente comunista. Essas novas tendências começaram a reimaginar o conceito de classe sob o socialismo e a fazer propostas tentativas para a reestruturação da sociedade. Quando reprimidos, a muitos desses movimentos foram dados o rótulo pejorativo de "ultraesquerda" (jizuopai) atribuído a eles por seus oponentes. Sinais dessa tendência foram visíveis já no inverno de 1966-67 em Pequim, quando Yu Luoke, um trabalhador temporário de má origem de classe, ajudou a fundar um jornal que publicava artigos nos quais ele se opunha à teoria da linhagem de sangue e aos excessos dos grupos conservadores dos guardas vermelhos. Yu acabou sendo preso e executado, mas seus simpatizantes em breve formariam a "Facção de 3 de Abril (si san pai)", que publicou o artigo "Sobre os Novos Pensamentos", identificando a tendência nascente.

(...) Conflitos armados começaram a diminuir à medida que o exército consolidava seu controle e novos órgãos de poder eram estabelecidos. Em muitas cidades, "líderes rebeldes estavam ávidos por conseguir assentos nos futuros comitês revolucionários", muitas vezes traindo suas próprias bases eleitorais para fazê-lo. Este fenômeno convenceu muitos dentro da nascente ultraesquerda de que os comitês eram uma farsa que disfarçava o exercício do poder por uma nova classe burocrática gerada pelo próprio sistema socialista, à medida que quadros e técnicos assumiam a propriedade de facto sobre os bens coletivos "do povo". (...)

As principais temáticas para todos esses grupos eram a noção de que uma nova classe privilegiada havia surgido na forma de burocratas estatais, que essa classe dominante explorava o povo da China, especialmente os camponeses, e que apenas uma guerra civil revolucionária que derrubasse essa nova classe poderia resultar em uma sociedade comunista. No entanto, além disso, os grupos diferiam amplamente nos detalhes (...). Muitos defendiam a formação de um novo Partido verdadeiramente comunista - mas onde e como isso poderia ser feito permanecia obscuro.

O resto é história. A Revolução Cultural falhou, o PCCh e o grupo centrista ligado a Mao capitularam e, após sua morte, foram destruídos pela ala direita. Após isso, Deng Xiaoping é reabilitado e começa o processo de abertura e reforma, pedra fundante do “socialismo” com características chinesas, como o próprio Xi Jinping diz no artigo “Um Futuro Brilhante para o Socialismo com Características Chinesas”, em que tece inúmeros elogios à Deng e reafirma a continuidade histórica de seu projeto com o de Deng. 

Coloco ainda um dado que comprova essa teoria dos grupos “esquerdistas” da Revolução Cultural: cerca de 91% dos milionários chineses em 2008 eram filhos de oficiais do alto escalão do Partido[11]. É curioso que um processo similar ocorreu após 1991 na Rússia com a dissolução da URSS, em que a grande maioria da burguesia emergente era de antigos quadros do alto escalão do Partido.

Portanto, se o camarada Yuri quer uma data para o fim do socialismo na China (este que nunca existiu de fato como ditadura do proletariado, mas apenas como um processo interrompido), podemos precisar o ano de 1976, após a morte de Mao, com a derrota de seu grupo, a mal chamada “Gangue dos Quatro”. 

Assim, a aliança do Bloco de Quatro Classes pendeu para o lado da burguesia e o Partido, fragmentado, vacilante e sem unidade ideológica o suficiente para levar o processo da revolução proletária adiante, capitulou, suprimiu o poder proletário insurgente e matou a revolução socialista, permitindo a subida do grupo de direita, liderado por Deng Xiaoping, que detém o poder até hoje.

3. A estratégia da Revolução Brasileira

Camaradas, espero ter deixado suficientemente claro que o processo de degeneração ideológica do PCCh não começa com Deng, mas muito antes disso e culmina na capitulação do Partido durante a Revolução Cultural. Portanto, não sobrou nada, nem nas bases econômicas, nem nas bases do Estado, um resquício sequer de ditadura do proletariado. Eu peço aos camaradas que querem “deixar os garoto brincar” que brinquem em outro lugar e não em um Partido Comunista. A teoria marxista não precisa desta vulgarização ridícula que o camarada Ouriço Azul defende e o camarada Yuri pratica.

Espero que o estudo do “socialismo” com características chinesas empreendido acima tenha deixado suficientemente claro para todos que é sim um equívoco chamar esta aberração burguesa de socialismo, tal qual é uma aberração chamar o socialismo nórdico de socialismo (do contrário peço que os camaradas Ouriço Azul e Yuri me respondam, defendendo o socialismo com características nórdicas e sua não participação na cadeia imperialista). Se os camaradas realmente querem um estudo baseado no concreto sobre o “socialismo” com características chinesas, recomendo a eles que leiam as 244 páginas da primeira edição da publicação do Coletivo Chuang (há ainda uma segunda, que infelizmente ainda não tive a possibilidade de ler). Mas basta ler o que dizem os próprios doutrinadores chineses sobre o seu “socialismo” com características chinesas para se chegar à conclusão de que não há socialismo nenhum na China hoje em dia, há apenas um social chauvinismo chinês que busca expandir suas garras imperialistas para o restante do mundo, competindo diretamente com os capitais americanos e europeus pela partilha do mundo e pela exploração da classe trabalhadora.

Os camaradas (dentre outros) repetem chavões e fraseologias Jabbourianas para defender que a China é um país socialista, mas não se dedicam em momento algum em suas tribunas a estudar a estrutura econômica e a história da China, como manda o método do materialismo histórico-dialético.

Eu insisto na escrita desde enorme texto, repleto de citações e referências, porque acredito que precisamos, urgentemente, definir um programa e uma estratégia para a Revolução Socialista no Brasil e isso só será possível através da definição mais ortodoxa possível do que é o socialismo, limpando o terreno das experiências fracassadas (embora tenham suas virtudes) de construção do socialismo do século passado. Precisamos definir, o quanto antes, a forma de construção do poder proletário. Precisamos, como apontam os camaradas do Movimento Marxista 5 de Maio em seu texto recente, abandonar a formulação de Poder Popular, que é confusa e abre espaço para uma indefinição do caráter de classe da revolução socialista no Brasil (como foi o caso da revolução “socialista” na China, com sua contraparte chinesa do Poder Popular, a Nova Democracia). Precisamos substituir “Poder Popular” nas teses por “Poder Proletário”, já que o caráter da revolução no Brasil é socialista e NÃO democrático-popular (como se pensava no passado).

É fundamental que formulemos, desde já, como construir os organismos de Poder Proletário, para longe da lógica paternalista de que o Partido é este Poder e que, de resto, o Estado pode funcionar mais ou menos como um Estado burguês (como é o caso da China hoje). O Poder Proletário precisa ser criativamente pensado e revisto, sob a luz do marxismo-leninismo, em suas novas estruturas e formas de poder e organização. Podemos ver, claramente, que durante o período da Comuna de Xangai este Poder tentou se erguer, mas o PCCh, imerso no pântano teórico criado por Mao para conciliar as quatro classes, foi incapaz de dar cabo ao processo que ele mesmo começou.

Só se refletirmos sobre as experiências de construção do socialismo passadas e presentes, e as criticarmos de maneira devidamente ortodoxa, apropriando-se do método e não de achismos, que seremos capazes de constituir um programa e uma estratégia devidamente comunista para a Revolução Brasileira. Só assim seremos capazes de criar verdadeiros órgãos proletários e instaurar a ditadura do proletariado no Brasil.

Há uma enorme indefinição estratégica no nosso programa, que é resultado não só de uma confusão formativa sobre o que significa socialismo, que é fundamento de uma ignorância que leva certos camaradas a aclamar pela existência de um “socialismo” com características chinesas, sem refletir muito bem a respeito sobre o que isso significa e quais as bases materiais da economia e do Estado chinês. Ainda, essa definição do caráter do Estado chinês não é supérflua, não é um mero debate academicista sem fundamento na prática real do nosso Partido (como querem dizer alguns que defendem o caráter socialista da China, como o camarada Jones Manoel), é antes uma necessidade para a definição do próprio programa e estratégia da Revolução Socialista Brasileira. 

Confesso que até me soa estranho um Partido que rachou por conta da participação de um Secretário de Relações Internacionais em uma plataforma pró-Rússia (e, portanto, pró-China) não ter um consenso sobre o caráter capitalista da economia e do Estado chinês. Ainda, concordo com o camarada Yuri quando ele diz que é um contrassenso definirmos a china como participante da cadeia imperialista e, ainda assim, como um país socialista.

A diferença é que, ao invés de jogar o método marxista no lixo como faz o camarada, eu defendo que deixemos de lado qualquer formulação que coloque dúvidas sobre o caráter capitalista da China. A China é um país capitalista, dominado e controlado pelo Capital, cujas regras fundamentais de funcionamento Estatal e econômico são burguesas, pautadas na mercadoria e na extração de mais-valia, como o próprio Xi Jinping admite em seus diversos textos. Não resta dúvidas sobre isso.

É somente se apropriando do método que poderemos levar à cabo a Revolução Brasileira, e se continuamos a definir a China como socialista é simplesmente porque nossa militância não se apropriou do método. Sendo assim, peço ainda aos camaradas das direções nacionais que formulem, para o próximo período, um curso de formação marxista comum a todos os militantes que seja capaz de dar as armas do método marxista ao Partido como um todo. Do contrário, continuaremos no pântano.

Saudações comunistas

L. Queen

PS.: Eu sinto que correrei o risco de estar psicologizando a insistência dos camaradas em defender a China ao dizer o que vou dizer, mas parto justamente de uma perspectiva de alguém que, no passado, defendeu a existência de um “socialismo” com características chinesas e, através do estudo aprofundado, chegou à conclusão de que isso não se trata de socialismo de forma alguma. Uma das maiores dificuldades que tive nesse processo foi justamente abandonar a sensação de que a China poderia ser uma luz no fim do túnel, uma possível nova União Soviética, a qual os comunistas pudessem propagandear e agitar para demonstrar os benefícios do “socialismo real”. Isso é uma mera ilusão, camaradas, e as ilusões precisam ser abandonadas. Estamos sozinhos no barco da revolução neste quartel do século XXI. A agitação a respeito da China no Brasil, inclusive, precisa ser decididamente anti-imperialista, como é contra os EUA e as potências europeias. Afinal, a burguesia Chinesa hoje explora a classe trabalhadora brasileira e nossos recursos naturais. Dizer para um trabalhador brasileiro, que trabalha numa empresa chinesa instalada no Brasil, que a China é socialista é atirar no nosso próprio pé. É tentar fazer o trabalhador de idiota. Os benefícios do “socialismo” com características chinesas pertencem hoje, se pertencem, apenas aos trabalhadores chineses – mesmo que sejam apenas migalhas da mais-valia produzida por eles e pelos trabalhadores do restante do mundo.


[1]  http://english.scio.gov.cn/pressroom/2023-11/14/content_116814954.htm#:~:text=The%20number%20of%20registered%20private,Regulation%20(SAMR)%20said%20Tuesday.

[2]  https://www.brasilmineral.com.br/noticias/sigma-lithium-inicia-negociacoes-com-a-chinesa-byd

[3]  https://www.intercept.com.br/2024/04/08/seguimos-o-dinheiro-que-movimenta-os-ataques-de-elon-musk-a-alexandre-de-moraes/

[4]  https://www.infomoney.com.br/colunistas/felippe-hermes/isso-e-o-que-a-china-ja-comprou-no-brasil/

[5]  https://www.irrawaddy.com/opinion/analysis/why-chinas-self-interested-strategy-for-myanmar-is-doomed-to-fail.html

[6]  https://www.bangkokpost.com/world/480462/myanmar-points-finger-in-kokang

[7]  Aqui pode ser baixado o estudo em sua integridade: https://chuangcn.org/journal/one/

[8] https://revistahongqi.com/index.php/2024/03/09/hao-guisheng-o-confucionismo-e-compativel-com-o-marxismo/

[9] Este trecho faz referência ao sistema chamado de Hukou, em que trabalhadores possuíam “passaportes” internos para se locomover, de forma que um trabalhador com hukou camponês não poderia morar ou possui moradia fixa em uma cidade. Dessa forma, diversos camponeses migravam para as cidades em busca de empregos temporários, mas não podiam se fixar no local, devido ao seu hukou.

[10] Processo de envio de trabalhadores urbanos para regiões rurais.

[11] Boston Consulting Group, Wealth Markets in China. 2008 Report.