A visita de Lenin à Escola de Artes e Ofícios
Os estudantes convidaram Vladimir Ilyich e Nadezhda Konstantinovna para compartilhar o jantar. Colocaram sobre a mesa quase toda a comida do mês, mas Lenin estava cansado e recusou o convite. Para não decepcionar seus convidados, Nadezhda teve que honrar a kacha que havia sido servida, e a comeu.

Por Inéssa Alexandrovna Armand[1]
Data da primeira publicação: 1922. Reproduzido na revista literária “Oeuvres et Opinions”, 16º ano, nº 4, abril de 1960, p. 138-141.
Nos anos 1920 a 1922, tive a sorte de estar com Vladimir Ilyich com muita frequência, visto que depois da morte de minha mãe, Inès Fedorovna Armand[2], Lenin e Nadezhda Konstantinovna Krupskaya[3] cuidaram de mim, de minha irmã e meu irmão. Durante esses anos, portanto, pudemos experimentar por nós mesmos mais de uma vez o carinho que Vladimir Ilyich expressava pelas pessoas e o extremo cuidado e atenção que demonstrava a todos ao seu redor, apesar de sua vida política.
No final de fevereiro de 1921, fui ver Nadezhda Konstantinovna. Estávamos em seu quarto no Kremlin conversando quando Vladimir Ilyich apareceu. Enquanto conversava, ele começou a examinar a sala como de costume. Ele estava muito animado, muito contente e me perguntou sobre minha vida e meu trabalho. Então ele quis ouvir minha irmã, Varvara Armand, que estava estudando na “Vkoutemas”, a Escola Superior de Artes e Ofícios[4]. Minha irmã morava no alojamento estudantil. Vladimir Ilyich me fez muitas perguntas sobre ela e as condições de vida dos alunos, querendo saber se o aquecimento do alojamento era bom, se os alunos tinham comida e se as aulas eram interessantes.
Com base no que soube da minha irmã, assegurei que as condições de vida do alojamento eram boas e que não precisava de muitas melhorias. Vladimir Ilyich me ouviu com um ar bastante cético e de repente se virou para Nadezhda Konstantinovna: “E se fôssemos visitar Varvara e ver como está nossa juventude?”, propôs ele.[5] Eram 11 horas da noite, mas Nadezhda Konstantinovna aceitou a proposta. Eles me levaram junto.
No carro, Vladimir Ilyich não parava de me provocar, repetindo: “Vamos ver se o que você disse é verdade!”
O alojamento estudantil estava localizado na Rua Myasnitskaya, em frente ao Correio Central. Tivemos que atravessar um pátio escuro e subir uma escada com degraus escorregadios, cobertos de gelo. Vladimir Ilitch estava andando na nossa frente com o zelador e estava constantemente queimando fósforos por causa do escuro e do breu em volta de nós.
“Bom começo, nada a dizer!” Pensei com horror ao ajudar Nadezhda Konstantinovna a subir as escadas. Mas todos os meus medos acabaram quando entramos no alojamento.
Os jovens deram a Lenin uma recepção entusiasmada. Ele foi imediatamente cercado por todos os lados, aclamado e celebrado. A notícia de sua chegada se espalhou rapidamente para os alojamentos vizinhos. Estudantes entraram correndo de todos os lados e cercaram Lenin em um círculo cada vez mais apertado. Ele estava cheio de alegria, de animação, muito feliz por estar com os jovens. Os quartos foram inspecionados. Lenin até deitou nas camas, ou melhor, nas tábuas duras das camas. Não havia móveis, mas, por outro lado, as paredes estavam cobertas de palavras de ordem, desenhos, jornais e armários.
Vladimir Ilyich notou um desenho representando uma locomotiva com linhas estranhas e “dinâmicas”. O autor dessa composição afirmou que as locomotivas reais também deveriam ser cobertas com essas linhas coloridas, o que, segundo ele, influenciaria a velocidade do trem. Essa declaração fez Lenin rir muito.
Em seguida, seus olhos foram atraídos por um slogan baseado em um verso de Mayakovsky[6]:
“Estamos torpedeando o céu de concreto armado.”
Lenin riu e protestou: “E por que torpedear o céu quando precisamos de concreto armado aqui na terra?!”
Vladimir Ilyich se comportou de forma tão simples, tão alegre, que os jovens imediatamente começaram a conversar com ele sem nenhum constrangimento. Estávamos falando sobre pintura, literatura, a vida e as ocupações de jovens artistas, seus estudos. Muitos detalhes me escapam agora, mas ainda me lembro dos momentos seguintes. Naturalmente, começamos com o que preocupava principalmente os jovens pintores: artes plásticas e, acima de tudo, pintura, porque aí, em pelo menos um ponto, todos os jovens concordaram, enfatizando em uníssono a necessidade da pintura seguir os passos da Revolução, dar a ela um forte caráter político, “sair dos museus para as ruas” e mobilizar as massas para a luta revolucionária. Sobre isso, todos concordaram e apoiaram apaixonadamente seu ponto de vista. Mas como alcançar esse objetivo, o de que a arte deveria ser capaz de seguir os passos da Revolução? Esse foi o problema que todos tentaram resolver à sua maneira. Alguns estudantes foram ferrenhos defensores dos futuristas, outros rejeitaram completamente a pintura de cavalete. Lenin ficou muito satisfeito com o entusiasmo da juventude, bem como com sua espontaneidade, seu total desprezo pela rotina monótona e seu desejo apaixonado de se colocar a serviço da Revolução. Mas de tudo o que os jovens artistas disseram tão ardentemente sobre Lenin, pode-se facilmente concluir que eles não tinham uma ideia definitiva do caminho que a arte deveria seguir em sua evolução. Lenin se manifestou contra eles, defendeu os princípios da pintura realista, mas era difícil para ele acompanhar duas dúzias de jovens que estavam todos conversando ao mesmo tempo, se agitando e se interrompendo.
Mayakovsky recebeu um grande lugar na discussão. Os jovens artistas começaram expressando sua admiração pelos famosos cartazes de propaganda de Mayakovsky nas vitrines de Rosta[7]. Vladimir Ilyich confirmou de bom grado seu valor revolucionário e depois conversamos sobre a poesia de Mayakovsky. Você podia ver que o ardor com que os jovens defendiam seu poeta favorito e o caráter revolucionário de sua obra era de fato do gosto de Lenin.
A respeito da poesia a discussão foi animada, pois descobriu-se que nesse campo, como na pintura, havia grandes admiradores do futurismo entre os jovens.
Finalmente cansado de todas essas discussões, Lenin brincou dizendo que iria prestar atenção especial ao futurismo na pintura e na poesia, que iria ler livros sobre esse problema e depois voltar aqui e demonstrar aos jovens que ele estava certo.
Vladimir Ilyich então começou a perguntar aos estudantes sobre a literatura russa clássica. Eles mal a conheciam e os poucos que liam eram totalmente contra, vendo a literatura russa como um “legado do antigo regime”. Lenin falou com paixão dos melhores representantes da cultura russa pré-revolução, suplicando aos jovens a conhecê-los melhor e a apreciá-los pelo seu valor. Ele confidenciou o quanto ele mesmo amava Pushkin e o quanto gostava de Nekrasov.[8] “Uma geração inteira de revolucionários estudou com Nekrasov”, declarou ele.
Lenin naturalmente não expressou seus pontos de vista na forma de discursos ou aulas. Mas em suas palavras, suas respostas, suas perguntas e seus comentários, havia uma ideia da necessidade de dominar tudo o que havia de melhor na cultura do passado e criar nossa nova cultura soviética com base nisso, e não acima de um vácuo.
Depois conversamos sobre a vida estudantil. Naquele alojamento, os estudantes formaram uma pequena comuna. Era a comuna dos melhores estudantes da Faculdade, permeada pelos comunistas do Komsomol[9]. Vladimir Ilyich perguntou-lhes por que eles se consideravam uma comunidade, como organizavam seu alojamento de maneira conjunta, como mantinham a limpeza, etc. Então ele se interessou pela comida dos estudantes, querendo saber os satisfaziam. “No final tudo vai dar certo, Lenin”, eles responderam em coro. “No máximo, nos falta apenas quatro dias de pão por mês” Essa declaração fez Lenin rir muito.
Vladimir Ilyich também perguntou aos jovens sobre seus estudos e trabalho social. Entre outras coisas, ele perguntou se eles ficavam acordados por muito tempo à noite e descobriu que não só estavam acordados, mas que às vezes passavam noites inteiras conversando sobre arte, planos de estudo, etc. Vladimir Ilyich estava irritado e reprovava muito a atitude dos universitários. “Vocês trabalham muito”, disse ele, “vocês comem mal e com isso nem dormem o suficiente. Se você continuarem assim, tudo acabará mal. Vocês só perderão sua força em vão. Então você não será bom em nada e precisamos salvar a nós mesmos. Eu darei a ordem para apagar a luz em sua casa à noite.”, disse ainda.
Depois da conversa, os estudantes convidaram Vladimir Ilyich e Nadezhda Konstantinovna para compartilhar o jantar. Colocaram sobre a mesa quase toda a comida do mês, mas Lenin estava cansado e recusou o convite. Para não decepcionar seus convidados, Nadezhda Konstantinovna teve que honrar a kacha[10] que havia sido servida, e a comeu.
Mas era hora de sair, era tarde. Nós não fomos escoltados de volta para permitir que passássemos despercebidos. Os tempos estavam conturbados na época.
No caminho para casa, Vladimir Ilyich estava pensativo e silencioso. Pelo tão breve “sim” que ele proferia de vez em quando com uma entonação específica, você podia entender que seus pensamentos estavam relacionados à visita que ele acabara de fazer e que algo o estava incomodando.
Ele não compartilhou comigo as impressões de sua visita, mas fiquei sabendo com Nadezhda Konstantinovna que, quando Lenin viu o Comissário de Educação Pública, Anatoly Lunatcharsky[11], disse a ele com reprovação: “A juventude é magnífica em nosso país, mas com que tipo de coisas você está enchendo a cabeça dela?”.
[1] Armand Inna Alexandrovna (1898-1971), filha da militante bolchevique Inéssa Armand, Inna oficialmente adotada por Lenin e Krupskaya após a morte de sua mãe biológica, em 1920. Participou da Guerra Civil como educadora política no Exército Vermelho. Membra do Comitê do Partido Comunista de Moscou (1919-1921) Funcionária da Embaixada Soviética na Alemanha (1923-1930) Especialista nos manuscritos de Karl Marx no Instituto Marx-Engels (1933-1961), ela preparou a primeira edição de sua correspondência e de seus trabalhos completos.
[2] Armand, Inessa Fedorovna (1874—1920). Russa de origem francesa, militante bolchevique desde 1904 e amiga pessoal de Lenin. Presa em 1907 e condenada a 2 anos de deportação para a Sibéria. Emigrou em 1909. Na véspera da Primeira Guerra Mundial, com Krupskaya, dirigiu a primeira revista sobre a emancipação das mulheres para as trabalhadoras, “Rabotnitsa” (Trabalhador), que existe até hoje. Representou os bolcheviques no Bureau Socialista Internacional em Bruxelas (1914), Zimmerwald (1915) e Kienthal (1916). Organiza a Conferência Internacional das Mulheres Socialistas Contra a Guerra (1915) na Suíça. Em seu retorno à Rússia, membra do Soviet de Moscou e “comunista de esquerda”, ela foi contrária à paz de Brest-Litovsk. Presidente da seção feminina do Comitê Central (1919), ativa na Terceira Internacional, organizou ainda a Primeira Conferência Internacional das Mulheres Comunistas (1920). Morreu de cólera em 1920.
[3] Krupskaya, Nadezhda Constantinova (1869-1939): Filha de um oficial russo, militante marxista desde 1891, presa e deportada em 1896. Casou-se com Lenin em 1898 e, entre outras coisas, esteve em sua companhia no exílio, o liberando das tarefas domésticas enquanto assumia uma infinidade de tarefas militantes. Secretária editorial do Iskra, ela organizou sua rede de transmissão clandestina, bem como conectou líderes bolcheviques no exterior com seções do partido na Rússia. Após a Revolução de Outubro, ele se preocupou particularmente com questões pedagógicas e com a gestão de bibliotecas como adjunta do Comissário do Povo para a Educação Pública, Lunatcharsky.
[4] Escola Superior de Artes e Ofícios, uma escola artística e tecnológica estatal soviética fundada em 1920 em Moscou, sucedendo a “Svomas”.
[5] Era 25 de fevereiro de 1921. (Nota do editor da revista onde o artigo foi publicado em sua edição francesa).
[6] Mayakovsky, Vladimir (1893-1930), poeta e dramaturgo futurista. Nascido na Geórgia, colaborou com os social-democratas locais em 1905. Tornou-se bolchevique em 1908. Preso três vezes entre 1908-1909, deixou o POSDR depois de ser liberto da prisão e se tornou uma figura central na vanguarda artística com o movimento “futurista”, que liderou. Publicou seus primeiros poemas no início da década de 1910. Acolhe a Revolução de Outubro com entusiasmo e contribui para a agitação do novo governo com poemas, slogans, cartazes e peças de teatro, e contribui ativamente para o jornal soviético “Izvestia”. Em 1923, fundador da revista e do movimento artístico futurista-comunista “LEF” (Left Art Front). Cometeu suicídio em 1930.
[7] Agência Central de Imprensa da Rússia (Nota do tradutor).
[8] Nekrasov, Nikolai Alexeievich (1821-1878), poeta russo de produção engajada. No final da década de 1860, publicou várias sátiras importantes, sendo a principal “Os contemporâneos” (1865), uma crítica o capitalismo russo em ascensão.
[9] “União da Juventude Comunista”, Juventude do Partido Comunista.
[10] Prato de cereais cozidos, comida típica russa.
[11] Lunatcharsky, Anatoli Vassilievich (1875-1933). Jornalista, dramaturgo e crítico literário. Atua na social-democracia desde 1982. Preso e deportado em 1898, emigrou em 1904 e se juntou aos bolcheviques. Contribui para o jornal “Novaia Jizn”. Delegado nos congressos de Estocolmo (1906) e Londres (1907) e membro da delegação russa no Congresso de Stuttgart da Internacional Socialista. A partir de 1908, formou com Bogdanov uma corrente de oposição a Lenin em questões táticas e filosóficas em torno do jornal “Vperiod”, e foram afastados do Partido. Juntou-se aos mencheviques internacionalistas e, em 1917, ingressou na organização “Interrays” de Trotsky, em Petrogrado, que se fundiu com o Partido Bolchevique em julho. Depois de outubro, ele foi nomeado Comissário do Povo para a Instrução Pública (1917-1929), onde desempenhou um papel importante no desenvolvimento das artes. Membro do Presidium do Comitê Executivo dos Sovietes e eleito para a Academia de Ciências (1930), foi nomeado o primeiro embaixador soviético na Espanha, mas morreu na França, a caminho da tarefa.