'A transgeneridade em nossas fileiras e nossas falhas em relação a ela' (Sky Edith)
Se nos propomos a ser uma organização marxista-leninista que analisa a realidade através do materialismo histórico dialético, é preciso que sejamos materialistas e que tenhamos consciência de que não sabemos tratar e acolher pessoas trans.
Por Sky Edith para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Camaradas, venho através desta tribuna com a intenção de fomentar um debate já existente em nossas fileiras e fazer com que, nos espaços que esse debate não é feito, ele comece a ser. Como é sabido(ou ao menos deveria ser), hoje em dia a população trans do mundo todo é alvo de uma campanha de pânico moral promovida pela direita, fazendo com que essa população seja ainda mais vulnerável do que normalmente já seria.
É dever de todos os comunistas combater as mentiras da direita e lutar pelos direitos da população trans brasileira - e isso porque somos comunistas, reconhecemos que é nossa tarefa histórica lutar pela emancipação da classe trabalhadora, e nesta se enquadra, claro, a população trans. Tendo isso em mente, gostaria de tocar em um debate que, por mais que já exista em nossas fileiras, e principalmente na juventude, deveria ser mais amplamente discutido por nosses militantes. Estou falando da maneira que tratamos pessoas trans dentro da nossa militância.
Sou militante da UJC, e esse ano passei por duas tarefas em que tive contato com várias e vários camaradas de diversas regiões do Brasil e do meu estado, são essas tarefas o CONUNE e o CONUEE-SP. Nesses ambientes aconteceu mais de uma vez de camaradas errarem meus pronomes. Sou uma pessoa trans não binária, que utiliza os pronomes femininos, e dentro da minha experiência de gênero e minhas condições materiais, não uso roupas que são consideradas “estereotipicamente femininas”, tampouco tenho uma aparência semelhante ao que se considera pertencente à de uma mulher cisgênero(e nem é meu objetivo na minha transição de gênero), digo isso entendendo que esses estereótipos são absolutamente falsos, e reforçá-los serve somente à ideologia dominante de manutenção do status quo e a perpetuação de um modelo burguês de família, e justamente, o meu ponto é: é impossível adivinhar os pronomes e o gênero de uma pessoa somente pela aparência ou voz dela, e assumir quais pronomes devem ser usados baseado nessas duas coisas é extremamente violento, além de vexatório ter que corrigir diversas vezes camaradas acerca disso, é desanimador que nunca eu seja perguntada quais são meus pronomes, é desanimador que em meio a uma tarefa nacional eu não possa desenvolver alguma tarefa dando 100% de mim por estar sofrendo uma crise disfórica. É extremamente desanimador ser tratada de maneira inadequada por camaradas. Não somos uma organização que acolhe camaradas trans.
Compreendo que nossa maneira de tratar as pautas LGBTQ são reflexo do velho modo de fazer política do PCB formal, onde existem problemas seríssimos de opressão em torno de quadros de direção, e onde campanhas de defesa de direitos reprodutivos são direcionadas estritamente à mulheres(como se somente mulheres e como se todas as mulheres engravidassem/abortassem), onde coletivos partidários são tratados como token e com desdém, entre outras coisas tão graves quanto. Compreendo que nossa política deve se diferenciar disso, pois, se reconhecemos que a população T hoje em dia sofre com ataques institucionais, com assassinatos, perseguição, desemprego, prostituição forçada, situações de sobrevivência extremamente precárias, como podemos lutar pela emancipação desse grupo minoritário se não tratamos camaradas trans dentro de nossa fileira com dignidade?
Camaradas, não me levem a mal, não escrevo essa tribuna para reclamar que algume camarada errou meus pronomes e não os soube imediatamente ao me conhecer, escrevo pois vejo que a maneira que tratamos pessoas trans dentro de nossas fileiras está errada. O que vou dizer a seguir é algo que evito discutir com camaradas, por ser algo que me envergonha e me faz sentir impotente; eu me sinto menos apta a militar do que pessoas cis, me sinto menos militante do que pessoas cis. Compreendo que tenho uma propensão maior a sofrer violências no meio de tarefas, a exemplo de tarefas de panfletagem, onde vez ou outra sofro olhares feios, comentários sobre minha aparência, ter meus pronomes errados, porém, algumas dessas violências eu sofro até mesmo dentro de espaços de militância e camaradagem.
Se nos propomos a ser uma organização marxista-leninista que analisa a realidade através do materialismo histórico dialético, é preciso que sejamos materialistas e que tenhamos consciência de que não sabemos tratar e acolher pessoas trans. É imprescindível que nossa militância compreenda essas contradições e que sejamos uma organização que acolhe pessoas trans, no sentido literal da palavra. Se estou em uma organização revolucionária, lutando pela emancipação da classe trabalhadora, o mínimo que eu mereço é ser tratada com dignidade.
Precisamos sim de formações de gênero, de uma compreensão coletiva mais acertada sobre questões LGBTQ, precisamos de mais pessoas trans em nossas fileiras.
A revolução virá pelas mãos das travestis, dos boys trans, dês não bináries, e de todas as pessoas trans que vivem, sofrem, e lutam neste país.
Por uma revolução socialista transviada!