'A Tese da ACD: Crítica ao Comitê Central do PCB' (Gabriel Xavier)

Recentemente, no início de novembro, o PCB publicou uma nota oficial em seu site, a qual defende a tese da Auditoria Cidadã da Dívida. Essa tribuna tem como objetivo expor que a ACD não tem um arcabouço teórico marxista.

'A Tese da ACD: Crítica ao Comitê Central do PCB' (Gabriel Xavier)
"Camaradas, isso é teoria econômica neoclássica, liberal e das mais ortodoxas da economia vulgar! O Estado não precisa desta poupança anterior, ou seja, não é necessário uma oferta de recursos para, aí sim, atender a determinada demanda. É uma defesa mascarada da Lei de Say!"

Por Gabriel Xavier para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Recentemente, no início de novembro, o PCB publicou uma nota oficial em seu site, a qual defende a tese da Auditoria Cidadã da Dívida. Essa tribuna tem como objetivo expor que a ACD não tem um arcabouço teórico marxista.

Antes de iniciar a crítica, quero apenas salientar que eu fui “expulso” do PCB no dia 27 de Agosto, ainda que tenha me desligado formalmente do Partido no dia 10 de Agosto. Não obstante eu tenha sido “expulso” de forma covarde, mesquinha e infantil pelos membros do Comitê Regional/DF, que fugiram do debate como bons liberais, sigo na crítica fraterna aos camaradas!

A Luta Teórica

Mas por que preocupar-se com a tese da ACD? Porque seu arcabouço teórico é da economia neoclássica, não parte de uma análise marxista do problema. Como Lênin sabiamente assinala em “O Que Fazer?: (Edição da Boitempo, 2020)

“Quem conhece, por pouco que seja, a situação real do nosso movimento, não pode deixar de ver que a ampla difusão do marxismo foi acompanhada por um certo rebaixamento do nível teórico. Graças a seus êxitos práticos e a seu significado prático, ao movimento aderiram muitas pessoas muito pouco preparadas teoricamente e até mesmo sem qualquer preparação. [...] já que é necessário unir-se – escreveu Marx aos dirigentes do partido –, então que se façam os acordos para atingir os objetivos práticos do movimento, mas não se permitam o tráfico com os princípios nem se façam ‘concessões’ teóricas. Esse era o pensamento de Marx, e eis que há entre nós pessoas que, em seu nome, procuram diminuir a importância da teoria!” (p. 39)

Nesse sentido, camaradas, procuro demonstrar como o Comitê Central defende, neste artigo, uma linha teórica liberal, seja de forma consciente ou inconsciente.

Seriam os membros do Comitê Central economistas liberais?

Lançada no dia 5 de Novembro de 2023, a nota política, intitulada Derrotar o Projeto Burguês e a Conciliação de Classes (disponível neste link), apresenta, logo em seu parágrafo inicial, a conhecida formulação política que comumente chamamos de Auditoria Cidadã da Dívida:

“[...] direcionando os recursos arrecadados pelo Estado para financiar as margens de lucro do capital. Não se trata de maldade, mas de cálculo: o desmonte da estrutura de atendimento à população mediante política social libera recursos para o pagamento do serviço da dívida;” (Grifos meus)

Oras, a condução lógica deste argumento é bem simples. Por que falta dinheiro para saúde e educação para os trabalhadores? Porque o Estado direciona os recursos tributários para o abatimento da dívida pública, a qual é detida pelos grandes conglomerados da burguesia financeira e, por isso, a defesa incessante dos ideólogos da burguesia com o superávit das contas públicas, certo?

Não! Mesmo com um enorme superávit primário, boa parte dos juros da dívida pública não é paga com abatimento via tributos, é pago via rolagem, emissão de novos títulos da dívida.

Além disso, ocorre uma questão principal do problema teórico: “libera recursos para o pagamento do serviço da dívida”. Essa argumentação dá a entender que é necessário uma poupança de recursos, via arrecadação tributária, antes que o Estado tenha capacidade de promover investimentos públicos e financiamento de importantes serviços.

Camaradas, isso é teoria econômica neoclássica, liberal e das mais ortodoxas da economia vulgar! O Estado não precisa desta poupança anterior, ou seja, não é necessário uma oferta de recursos para, aí sim, atender a determinada demanda. É uma defesa mascarada da Lei de Say!

O próprio Estado Burguês não sofre de restrições orçamentárias “naturais”, este sempre poderá “imprimir” moeda interna, no caso Reais, para investimentos e serviços públicos. O novo teto de gastos, por exemplo, é uma restrição política, não para direcionar os recursos tributários para abatimento de juros da dívida pública e sim para impedir o pleno emprego, o fortalecimento do SUS e aumentar o exército industrial de reserva ao impedir o uso da política fiscal do governo federal – não faltam recursos para isso, eles existem.

Cito uma argumentação do próprio Marx, onde é deixado explícito que a produção de mercadorias só tem sentido caso possa ter seu valor realizado na esfera da circulação, indo contra a Lei de Say e utilizando o conceito de demanda efetiva: (O Capital, Livro III, Vol. 5, Edição Civilização Brasileira)

“Admitamos que o comerciante não consiga vender os 30.000 metros de linho durante o intervalo que o fabricante precisa para lançar no mercado outros 30.000 metros no valor de 3.000 libras esterlinas. O comerciante não pode comprá-los novamente, pois ainda armazena, sem vender, 30.000 metros ainda não reconvertidos em capital-dinheiro. Então para, cessa a reprodução. Entretanto, é possível que o produtor dispusesse de capital-dinheiro adicional, que ele poderia, sem haver a venda dos 30.000 metros, transformar em capital produtivo e assim prosseguir o processo de produção. O problema, porém, em nada se alteraria com essa suposição. Para o capital adiantado nos 30.000 metros está e continua interrompido o processo de reprodução. Patenteia-se aí, portanto, de maneira contundente que as operações do comerciante não passam de operações indispensáveis para transformar em dinheiro o capital-mercadoria do produtor e que por intermédio delas se efetuam as funções do capital-mercadoria no processo de circulação e de reprodução.” (p. 364)

A Tese da ACD e a Dívida Externa

A principal diferença entre a dívida externa e interna é que o Brasil não precisa se preocupar com moratória de um título público denominado em Reais, afinal, o país detentor soberano dessa moeda sempre poderá realizar a rolagem da dívida via emissão de novos títulos em Reais. Não temos situação semelhante com recursos em moeda estrangeira, neste caso, a rolagem desta dívida necessita que o Estado tenha sempre um fluxo constante, e positivo, desta moeda circulando na economia nacional para poder realizar a emissão de novos títulos.

A tese da ACD remonta ao período que o Brasil sofreu com a nossa dívida externa, em especial durante a crise da dívida que atingiu os países na América Latina, tendo seu estopim a moratória no México em 1982. Segundo dados do Banco Central, é perceptível que o modelo de expansão econômica durante a Ditadura Empresarial-Militar dependia de um contínuo endividamento externo. Em 1971, a Dívida Externa Bruta, em bilhões de dólares americanos, registrava uma importância de US$ 8,8 bilhões, com reservas internacionais de apenas US$ 1,7 bilhões, ou seja, uma posição líquida negativa de -US$ 6,6 bilhões. Ao final do chamado “milagre econômico”, em 1973, esses números estavam em US$ 14,9 bilhões, US$ 6,4 bilhões e US$ 8,4 bilhões, respectivamente.

Acontece que, em Outubro de 1973, ocorre o primeiro choque do petróleo, com uma severa restrição à oferta mundial de petróleo pelos países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), com o preço desta mercadoria crescendo quase 300% na Bolsa de Nova York. Assim, com uma economia estadunidense amplamente dependente da importação de petróleo, ocorre uma transferência de valor, via preços, para os países da OPEP, fenômeno conhecido como “petrodólares”, essa restrição na oferta dessa mercadoria causa uma elevação nos preços generalizada nos Estados Unidos. Em resposta, o banco central dos Estados Unidos, conhecido como Federal Reserve, eleva sua taxa básica de juros, de 4,1% a.a. ao final de 1971 para 12,9% a.a. em Julho de 1974.

E o Brasil com isso? Acontece que a dívida externa estava indexada a essas taxas flutuantes, portanto, os pagamentos em juros mais do que dobraram. Entretanto, com os títulos em dólares, o governo brasileiro não pode simplesmente realizar o pagamento de juros, quaisquer que sejam, em Reais, moeda a qual há liberdade para emissão, devendo sempre procurar maneiras de financiar essa dívida seja via refinanciamento (o que ocorreu), ou promover exportações para adquirir dólares.

A reação foi aprofundar a dependência externa, uma vez que logo após o fim do choque do petróleo, as taxas do Federal Reserve voltaram a cair, atingindo 5,2% a.a. em Maio de 1975, facilitando a captação de recursos durante este período. Portanto, o pagamento desses juros foi realizado com a emissão de novos títulos, a dívida externa bruta encerra 1978 com um estoque de US$ 52,2 bilhões e apenas US$ 11,9 bilhões em reservas, totalizando uma posição líquida negativa de -US$ 40,3 bilhões.

Aqui não cabe incorrer na década de 1980, esse preâmbulo histórico serve de demonstração das diferenças entra a dívida em moeda interna e estrangeiro e como aquela é, concretamente, uma restrição aos gastos do governo, caso assim sejam financiados.

Conclusão

Portanto, este o principal problema da ACD:

Primeiro que não parte de uma abordagem marxista, já que a taxa de juros, que remunera o capital financeiro (Livro III d’O Capital), é uma parte da taxa de lucro do capital em geral, não existe “dinheiro que gera dinheiro”, o D-D’ deve vir de algum lugar e este lugar não vem da arrecadação de tributos.

Segundo que afirma uma restrição orçamentária que não existe. Camaradas, o Estado pode e deve gastar com saúde, educação e pleno emprego, não faltam recursos para isso. No mais, prometo (já são duas!) uma tribuna para aprofundar melhor como então a dívida pública opera no capitalismo para a transferência de valor do capital industrial para o capital financeiro.