'A solidão no tempo do capital: reflexões sobre a modernidade e o capitalismo' (João Victor Santos Nino)
A vida cotidiana do ser humano moderno é permeada pela sensação de não pertencimento a si mesmo, mesmo que haja uma percepção de liberdade, é difícil explicar e compreender plenamente.
Por João Victor Santos Nino para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Vivemos numa sociedade cansada, imersos em um mundo cada vez mais frenético e rotineiro, um mundo da cotidianidade e exploração massiva de nossa classe. Isso são sintomas do capitalismo, principalmente do capitalismo tardio que se expandiu globalmente atingindo cada vez mais as massas em seu modo de viver e pensar. Vivemos uma modernização que perdeu suas raízes com suas próprias ideias de modernidade (BERMAN, 1986). Que se altera cada vez mais depressa visando um impulso de desenvolvimento.
Desde o Renascimento, o mundo tem passado por um processo contínuo de alterações cada vez mais acelerado, abrangendo todos os seus aspectos imagináveis, desde os sociais, culturais até os econômicos. Essa constante transformação tem levado a um desconhecimento das sensações em uma sociedade em profunda mutação. Nesse sentido, num mundo que se altera cada vez mais depressa, a forma que enxergamos e a posição que ocupamos vem se alterando. Tudo se torna tão efêmero, surgindo em um dia e desaparecendo no outro. O que é novo rapidamente se torna antigo em um piscar de olhos.
A vida cotidiana do ser humano moderno é permeada pela sensação de não pertencimento a si mesmo, mesmo que haja uma percepção de liberdade, é difícil explicar e compreender plenamente. Estamos constantemente guiados pelo tempo do capital, envolvidos em uma eterna luta de classes. Vivemos em uma sociedade capitalista, onde o conhecimento é transformado em tecnologia e essa tecnologia transformada em mercadoria.
Sérgio Carvalho (1996) descreve que:
Nada parece ter história, passado ou consistência, tudo parece estar na iminência do desvanecimento, do esfacelamento, da perda, da ruptura e da morte. A lógica cultural da vida moderna se ergue cativa dos signos e emblemas da aleatoriedade excessiva e convulsiva, das visadas reticulares rápidas, da ausência total de permanência e contemplação (CARVALHO,1996, p. 130).
Com a Revolução Industrial, ocorrem uma série de mudanças significativas na produção, alterando o modo de vida dos cidadãos por meio da mecanização dos processos produtivos. Isso resulta na alteração cultural da sociedade, pois o ser humano é um sujeito social e histórico, portanto, toda sua atividade é determinada pelas condições materiais em que vivem, inclusive a cultura (MARX & ENGELS, 2001).
O tempo do capital nos controla e nos afasta em uma sociedade acelerada, onde multidões e solidão coexistem. Mesmo no meio de uma multidão, o transeunte troca olhares com rostos desconhecidos e, ao mesmo tempo, familiares. Na maioria dos dias, o transeunte segue o mesmo percurso em sua vida rotineira. E não é apenas um indivíduo, mas uma multidão infinda de transeuntes que traçam seus caminhos nas cidades em suas vidas rotineiras.
Uma sociedade em que o capital dita a vida alheia, agravado principalmente a partir do século XIX com a alteração radical das cidades, nas quais a paisagem é tomada por indústrias, zonas ferroviárias e engenhos movidos a vapor. Criação de novos ambientes, destruição dos antigos, locomoção das massas pelas cidades, explosão do crescimento demográfico, desenvolvimento catastróficos das zonas urbanas (BERMAN, 1986). Os espaços urbanos são marcados pelo distanciamento, aceleração, deslocamento rápido, um constante vai e vem. Os olhares se cruzam rapidamente e logo se voltam novamente para o caminho e a rotina de cada um. Apesar da proximidade física, o distanciamento é mais presente do que nunca. As grandes cidades são locais com alta densidade populacional, mas também são lugares de solidão, individualização e deslocamento (CARVALHO, 1996).
O modo de enxergar o mundo e a si mesmo é alterado radicalmente. De acordo com Foucault (1999) a sociedade moderna tem como base a disciplina, caracterizada pelo desenvolvimento das instituições disciplinares, como escolas, prisões, hospitais e quartéis que exercem um estado eterno de vigilância sobre o indivíduo influenciando o seu modo de agir em sociedade.
A sociedade moderna é regida pelo distanciamento, aceleração e individualização, a sensação de solidão tornou-se cada vez mais presente. O tempo do capital, sempre acelerado em busca do lucro, se altera cada vez mais depressa explorando a classe cada vez mais, os índices alarmantes de doenças mentais que vem surgindo nos últimos tempos não acontece de forma natural, surge da debilitação da classe trabalhadora que de tão explorada está sobrecarregada. A sensação de solidão do ser humano moderno está intrinsicamente relacionada à sociedade disciplinar que surge com a criação dos Estados Nacionais, a criação dos Estados Nacionais que não é nada mais do que uma etapa do desenvolvimento do capitalismo na Europa.
Através da constante vigilância, da imposição de tarefas compulsórias e da aplicação de sanções normalizadoras, o sistema de controle estabelece-se como um mecanismo altamente eficaz de adestramento. Uma das ramificações decorrentes dessa estrutura societária é a solidão. As instituições disciplinares acabam por isolar os indivíduos, além de serem submetidos a um senso intenso de monitoramento, de modo que não se consegue fugir dos aparatos ideológicos dessa sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1999). As instituições disciplinares se tornam uma espécie de poder que está sempre presente, observando e moldando as ações dos indivíduos. Esse estado de vigilância contínua acaba por influenciar profundamente a forma como o ser humano se percebe e se relaciona com o mundo, configurando uma nova forma de existência na modernidade.
Conforme Marx (1997, p. 31), “O moderno poder de Estado é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa”. O Estado moderno surge como resultado da influência da burguesia na disseminação de suas ideias como hegemônicas, enquanto a sociedade disciplinar é uma expressão das ideologias burguesas para controlar as massas. Embora Marx não tenha desenvolvido a teoria da sociedade disciplinar, sua análise crítica do Estado e da relação de poder entre a burguesia e as massas pode ser relacionada às concepções de controle e dominação presentes na sociedade disciplinar como frutos de uma ideologia burguesa.
Ideologia essa que sempre está em constante mutação. Pois “a burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas.” (MARX & ENGELS, 1997, p.32). Sendo a primeira consciência que o proletariado desenvolve, é essa consciência imediata que coloca o indivíduo contra outros indivíduos da mesma classe, pois a classe se vê na necessidade de sobreviver, sendo essa a consciência de um indivíduo inserido numa divisão social do trabalho. Lutando contra outros na concorrência do mercado (GORENDER 1999).
Isso explica por que a maioria não o faz e se submetem passivamente à ordem que a mantêm na exploração. A busca incessante pela sobrevivência desestrutura a classe proletária. A ordem do capital nunca cessou de influenciar nosso processo de conscientização. Essa ordem é caracterizada pela injustiça, desigualdade, exploração e desumanização, e ela suprime a expressão da vida como vida. No entanto, é menos óbvio porque a maioria permanece passiva diante dessa contraposição entre a ordem do capital e a vida. Essa passividade não pode ser atribuída apenas à reprodução e imposição de ideias, valores e conceitos preestabelecidos.
A individualização e o isolamento submergem o ser humano na solidão. Diálogos monótonos, indivíduos transitando, nada perdura, nada é duradouro. Tudo é efêmero. Em uma sociedade em constante declínio, impulsionada pelo consumismo e pela busca incessante do sucesso individual, as relações interpessoais são superficiais e simplistas. Caracterizam-se pela fragilidade e falta de compromisso, com poucos vínculos duradouros. Essas relações são motivadas por interesses pessoais e baseadas unicamente no mundo material momentâneo, sendo utilizadas como meios de benefício próprio por parte dos indivíduos (BAUMAN, 2004). O pensamento de se utilizar das relações sociais como modo de se beneficiar é mais uma das fontes da ideologia burguesa, o processo de individualização acontece de forma proposital.
Nas cidades modernas, o tempo escasso não permite o desenvolvimento de relações duradouras, resultando em poucos laços significativos. Os cidadãos se deslocam solitários pelas vastas paisagens urbanas. A complexidade das relações humanas do ser moderno reflete, como tudo na modernidade e no capitalismo, uma dualidade interminável:
Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam embora em diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência (BAUMAN, 2004, p.10).
A solidão do ser humano moderno é uma realidade intrínseca às grandes cidades e ao estilo de vida acelerado e individualista que caracterizado pelo modo de produção capitalista. A falta de tempo e a constante busca por sucesso e realização pessoal deixam pouco espaço para cultivar relações verdadeiramente significativas. Nas grandes cidades, é comum observar as pessoas se deslocando apressadamente pelas ruas, imersas em seus próprios mundos, distantes umas das outras. Os vínculos sociais frequentemente se limitam a relações superficiais, passageiras e guiadas por interesses individuais. Nas interações cotidianas, as relações de trabalho muitas vezes se destacam como as únicas conexões significativas que um indivíduo estabelece ao longo de sua vida adulta (BAUMAN, 2004). Fora das relações de trabalho quase não a interações. A vida cotidiana é tomada por ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa, a sensação de esgotamento é constante.
No turbilhão da modernidade, o ser humano contemporâneo encontra-se envolto em um sentimento avassalador de solidão. Ao longo do texto, exploramos os diversos aspectos que contribuem para essa sensação de isolamento: a aceleração do tempo, a busca incessante pelo sucesso individual, a superficialidade das relações interpessoais e a influência das instituições disciplinares. Todos os sintomas citados acima têm um culpado, esse culpado é a burguesia que explora o proletariado, retirando tudo que é seu por direito, tirando todos seus modos de produção, deixando o proletariado “nu” que então é obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver.
Nesse contexto, a solidão surge como uma consequência da lógica capitalista, em que a busca pelo lucro e o consumo desenfreado se sobrepõem à necessidade de conexão humana e de relações verdadeiramente significativas. A valorização excessiva da produtividade e do individualismo gera um distanciamento entre as pessoas, levando à superficialidade e à falta de compromisso nas interações cotidianas. Além disso, a sociedade disciplinar exerce um constante estado de vigilância sobre o indivíduo, moldando sua forma de agir e influenciando sua percepção do mundo. A solidão torna-se uma consequência inevitável, fruto da imposição de tarefas compulsórias e exploração da mão-de-obra do proletário.
Diante desse panorama, é fundamental refletir sobre o impacto da solidão no bem-estar e na qualidade de vida dos indivíduos. É preciso questionar e refletir os valores e prioridades que orientam nossa sociedade e buscar incansavelmente pela destruição do Estado burguês, acabando com a alta exploração de nossa classe.
A solidão do homem moderno é um chamado à ação, um convite para que cada um de nós busque romper com essa dinâmica alienante. É necessário resgatar a importância do contato humano, do diálogo autêntico e da valorização das relações que transcendem o interesse pessoal. Somente assim poderemos encontrar um sentido de pertencimento e resgatar a nossa humanidade perdida na voracidade da modernidade e do capitalismo.
Portanto em primeiro momento cabe a nós reforçarmos nosso sistema de camaradagem entre nós mesmos, a fim de fortalecer os laços e estabelecer um conhecimento compartilhado. Como vanguarda combativa, sempre engajada na luta pela emancipação da classe proletária, é essencial fortalecer nossos laços como militantes e camaradas. Devemos buscar ativamente romper com o Estado burguês e estabelecer uma ditadura do proletariado. Como camaradas, devemos, em primeiro lugar, superar entre nós uma das principais características da sociedade contemporânea, amplamente influenciada pelo capitalismo, que constantemente drena nossas energias e nos individualiza. Essa individualização do proletariado, que nos coloca uns contra os outros no mercado de trabalho, contribui significativamente para o sentimento de solidão tão prevalente nos dias de hoje.
Assim, concluímos que a superação da solidão no contexto da modernidade requer uma análise crítica das relações de poder e uma reconfiguração dos valores que regem nossa sociedade. É preciso resgatar a importância do coletivo, do compartilhamento e da solidariedade como formas de combater a solidão e reconstruir a teia de conexões humanas que foi enfraquecida pelo sistema capitalista. Ao tomar consciência dessa condição e agir coletivamente para transformá-la, podemos vislumbrar um horizonte em que a solidão do ser humano moderno seja substituída por relações autênticas, apoio mútuo e uma sensação renovada de pertencimento e coletividade.
BIBLIOGRAFIA:
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Ed 10ª. São Paulo: Forense Universitária, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das letras, 1986.
CARVALHO, Sérgio Lage T. A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos. In: Revista USP. São Paulo, USP, n.32, dez/fev, 1996/97, pp. 126-255.
FISHER, Mark. Realismo Capitalismo: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Ed 20ª. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
GORENDER, Jacob. Marxismo sem Utopia. São Paulo: Ática, 1999.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2015. MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
____________________________. Manifesto do Partido Comunista. Ed 2ª. Lisboa: Avante, 1997.