'A revolução será trabalhadora, nada mais, nada menos: resposta ao camarada Filipe Bezerra' (C. Fernandes)

Nosso campo de disputa não é o reino celeste, nossos modos de fazer política deve corresponder aos nossos propósitos.

'A revolução será trabalhadora, nada mais, nada menos: resposta ao camarada Filipe Bezerra' (C. Fernandes)

Por C. Fernandes para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas,

De longe a atual polêmica é uma das mais desqualificadas em debates que acabou por surgir na nossa militância ao longo do período congressual, ao lado dos espantalhos moldados em cima da suposta “ameaça bordiguista” e das posições absurdamente anti-leninistas pró China, a “disputa do povo de Deus” por meio do “livro sagrado” é uma das posições mais absurdas possíveis no seio de um partido comunista.

Colocando aqui uma breve contextualização da polêmica: o finado PCB insistindo em suas candidaturas e no uso de sua preciosa sigla eleitoral lançou para vereança candidatos cristãos com o uso do cristianismo, de Jesus, da Bíblia e da promessa do reino dos céus para a classe trabalhadora. Essa proposição digna de vergonha e profundamente anti-leninista foi parcial ou totalmente defendida por parte de nossa militância, virando a polêmica atual. O camarada Filipe Bezerra, em sua tribuna, defende “um comunismo que lê a Bíblia”, nesta tribuna pretendo mostrar que seu equívoco é enorme, com a predisposição de entender isso como equívoco e não como oportunismo.  

Vou procurar nesta tribuna destacar alguns pontos ignorados pelo camarada Filipe bem como trazer à tona pontos importantes ignorados pelo conjunto da militância até agora participando deste debate.

O primeiro deles é: o cristianismo não é o único conjunto de crenças relevantes no Brasil. Chocante, eu sei. Qualquer debate sobre religião que não leve em conta religiões de matriz africana e práticas sagradas indígenas é, por si só, automaticamente insuficiente. Se colocamos como pretexto para a aliança com setores pentecostais e neopentecostais a questão da crescente proletarização entre as massas nesses grupos, que sentido faz levar em conta somente o cristianismo? A população negra tem relações históricas ancestrais com religiões de matriz africana e ao mesmo tempo é um dos alvos mais marcados pelo capitalismo mundial (inclusive o capitalismo à moda brasileira). Devemos então passar a focar nos aspectos religiosos em vez dos sociais nesse caso? Me parece que não.

Para além disso, o camarada Filipe parece ter uma concepção limitada sobre a religião como um todo, colocando que as religiões são “utilizada(s) para gerar guerras, que matam trabalhadores em todo mundo”. Religiões não são usadas para gerar guerras, camaradas, nossa realidade material histórica nos mostra que o capital usa a Igreja como instituição ideológica para sustentar princípios para suas guerras econômicas e exploradoras (como as cruzadas ou a perseguição religiosa da Segunda Guerra) ou como pretexto para disfarçar sua real motivação genocida (como a colonização das Américas ou o mais atual genocídio financiado pelo discurso falsamente religioso de Israel). 

Me permitirei aqui também fazer uso de uma figura polêmica, camaradas, por favor não se ofendam, mas citarei Lênin. E reforço aqui o caráter polêmico dessa citação já que ela vem sendo ignorada. Em “Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião”, Lênin coloca pontos fundamentais sobre qual deve ser nosso posicionamento nesse tipo de polêmica:

Um marxista deve ser materialista, isto é, inimigo da religião, mas um materialista dialético, isto é, que coloca a luta contra a religião não de modo abstrato, não no terreno da propaganda abstrata, puramente teórica, sempre igual a si própria, mas de modo concreto, no terreno da luta de classes, que tem lugar de fato e que educa as massas mais e melhor que tudo. Um marxista deve saber ter em conta toda a situação concreta, encontrar sempre a fronteira entre o anarquismo e o oportunismo (esta fronteira é relativa, móvel, mutável, mas existe), não cair no “revolucionarismo” abstrato, verbal, de fato vazio, do anarquista, nem no filistinismo e no oportunismo do pequeno burguês ou do intelectual liberal, que teme a luta contra a religião, esquece esta sua tarefa, se reconcilia com a crença em Deus, se guia não pelos interesses da luta de classes, mas por cálculos pequenos e mesquinhos: não ofender, não afastar, não assustar, pela sapientíssima regra: “vive e deixa viver os outros” etc., etc.

Essa formulação é extremamente didática e resume dois lados igualmente errôneos adotados por marxistas. Não é nosso dever ler a Bíblia muito menos falar de Deus, igualmente não é nosso dever nos valer de um ateísmo abstrato que de nada nos serve. Lênin ainda complementa:

Devemos lutar contra a religião. Isto é o á-bê-cê de todo o materialismo e, por conseguinte, também do marxismo. Mas o marxismo não é um materialismo que se deteve no á-bê-cê. O marxismo vai mais longe. Ele diz: é preciso saber lutar contra a religião, e, para isso, é preciso explicar de modo materialista a fonte da fé e da religião entre as massas. Não se pode limitar a luta contra a religião a uma prédica ideológica abstrata, não se pode reduzi-la a essa prédica; é preciso pôr esta luta em ligação com a prática concreta do movimento de classe, dirigido para a eliminação das raízes sociais da religião. 

A partir disso é também possível encontrar uma fragilidade muito grande da formação da nossa militância: o estudo de outras áreas das Ciências Sociais além da Política, sobretudo, nossa incompreensão e falta de apropriação da Antropologia. Como leninistas devemos usar os avanços da ciência a nosso favor, é preciso replicar o esforço de Engels na “Origem da Família…” em nossos debates e formulações de táticas sobre a religião e a cultura.

Cito aqui principalmente o trabalho da antropologia marxista (ou antropologia materialista). Em “Vacas, Porcos, Guerras E Bruxas: Os Enigmas Da Cultura”, o antropólogo Marvin Harris faz o trabalho de investigação e formulação materialista a fim de entender práticas culturais como uma resposta social aos fatores materiais dados na realidade. O primeiro capítulo intitulado “A mãe vaca”, faz uma reconstituição dos possíveis motivos materiais que expliquem a valoração sagrada das vacas na Índia. O trabalho de Harris é simultaneamente nosso ponto de partida e onde devemos chegar com nossa análise sobre o fenômeno pentecostal e neopentecostal brasileiro. Portanto, camaradas, leiamos marxistas em vez da Bíblia!

Não vou me deter em responder em detalhes as colocações do camarada Filipe em defesa de um aprendizado de disciplina, política de finanças e agitprop com os cristãos evangélicos, a isso respondo de maneira breve: nosso campo de disputa não é o reino celeste, nossos modos de fazer política deve corresponder aos nossos propósitos. Não deve ser do nosso interesse a promoção da disciplina do temor, o autofinanciamento moralizado nem o uso de discursos inflamados sem conteúdo político revolucionário!

Por fim, camaradas, deixarei que Lênin mesmo responda qual deve ser nossa percepção frente às candidaturas infames do PCB: 

Se um sacerdote se dirige a nós para um trabalho político conjunto, e realiza conscienciosamente o trabalho partidário, não se manifestando contra o programa do partido, podemos aceitá-lo nas fileiras da socialdemocracia, porque a contradição do espírito e das bases do nosso programa com as convicções religiosas do sacerdote poderia permanecer, nessas condições, uma contradição pessoal, que só a ele diga respeito, e uma organização política não pode submeter os seus membros a provas acerca da ausência de contradição entre as suas concepções e o programa do partido. Mas, evidentemente, semelhante caso poderia ser uma rara exceção, mesmo na Europa, e na Rússia ele é pouquíssimo provável. E se, por exemplo, um sacerdote entrasse no partido socialdemocrata e se pusesse a fazer, neste partido, como seu trabalho principal e quase único, uma ativa prédica das concepções religiosas, o partido deveria absolutamente expulsá-lo do seu seio. Nós devemos, não só admitir, como atrair sem falta para o partido socialdemocrata, todos os operários que conservam a fé em Deus, somos absolutamente contra a menor afronta às suas convicções religiosas, mas atraímo-los para se educarem no espírito do nosso programa, e não para lutarem ativamente contra ele. Nós admitimos dentro do partido a liberdade de opinião, mas em certos limites, determinados pela liberdade de agrupamento: não somos obrigados a andar de mãos dadas com pregadores ativos de concepções repudiadas pela maioria do partido.  

Referências bibliográficas:

LÊNIN, Vladimir I.. Sobre a Atitude do Partido Operário em Relação à Religião., 1909. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1909/05/26.htm. Acesso em: 13 maio 2024.

 HARRIS, Marvin. Vacas, Porcos, Guerras E Bruxas: os enigmas da cultura. : Civilização Brasileira, 1978. Disponível em: http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Harris,%20Marvin/Vacas,%20porcos,%20guerras%20e%20bruxas%20-%20Marvin%20Harris.pdf. Acesso em: 13 maio 2024.