A revolta das barcas de 1959

Os trabalhadores que operavam a frota, cuidavam da estação e guiavam as filas, viviam com um salário de miséria, e não raro organizavam greves por melhores condições de trabalho e vida.

A revolta das barcas de 1959
Foto: Arquivo/ O Globo

Na manhã do dia 22 de maio de 1959, a população de Niterói (RJ) protagonizou um evento histórico e arrancou com suas próprias mãos uma grande conquista. Falamos aqui do episódio conhecido como Revolta das Barcas.

O contexto da época era significativamente diferente do atual: por um lado havia uma efervescência popular, nacionalista e, em muitos casos, classista em um nível bastante superior ao que vemos atualmente. Já no que diz respeito especificamente ao Leste Fluminense, em especial a quem fazia o movimento pendular Rio-Niterói, é importante relembrar que, na inexistência da ponte, a única opção viável para o dia a dia era o transporte hidroviário, o que trazia uma conjuntura desfavorável para trabalhadoras e trabalhadores que se deslocavam entre as cidades.

Assim, empresários desse ramo estavam em condições mais favoráveis para extorquir o governo e a população. A poderosa família Carreteiro, que controlava o transporte de barcas entre Rio e Niterói, constantemente pedia maiores repasses e aumentava os preços, alegando prejuízos e insustentabilidade do negócio, a despeito das fortunas e mansões que acumulava enquanto gestora deste modal de transporte. O serviço era de péssima qualidade, com problemas de infraestrutura, atrasos e enormes filas. Além disso, trabalhadores que operavam a frota, cuidavam da estação e guiavam as filas, viviam com um salário de miséria, e não raro organizavam greves por melhores condições de trabalho e vida.

Dessa forma, no dia 21 de maio, foi deflagrada uma nova greve, organizada pelo Sindicato dos Marítimos e Operários Navais. O Grupo Carreteiro, oportunamente, utilizava-se dessas mobilizações para chantagear a administração pública a aumentar os milionários repasses - assim como a tarifa do transporte. Como resposta, o governo pôs as Forças Armadas para gerir o serviço, utilizando embarcações próprias e pondo fuzileiros navais para controlar as filas. Na manhã seguinte, a administração militar do serviço de barcas demonstrava total incapacidade de suprir a demanda da população. Enormes filas eram formadas, milhares de trabalhadores atrasados para seus compromissos começavam a reclamar, e a resposta dos militares foi a mesma de sempre: truculência.

Com o começo das reclamações de trabalhadores, os militares passaram a tratar os passageiros com empurrões e coronhadas, a fim de contê-los pelo medo. A repressão não foi suficiente, e, quando a primeira pedra quebrou uma vidraça, a população se tomou em fúria. Mesmo as rajadas de tiros, as prisões e toda a truculência militar não foram suficientes para interromper a revolta popular. A estação das barcas foi invadida, destruída, as embarcações e a estrutura foram queimadas, e os Fuzileiros bateram em retirada frente à manifestação do povo.

Foto: Agência O Globo

Na sequência, os manifestantes foram atrás do seu inimigo de classe, dirigindo-se ao escritório do Grupo Carreteiro, onde queimaram e destruíram todos os documentos e objetos que encontraram. Em seguida, ainda conscientes do recado a ser passado para a burguesia local, foram até a residência dos Carreteiro, invadiram e destruíram suas 3 mansões, queimaram seus eletrodomésticos, aí incluídas dezenas de geladeiras e televisões, cofres e até um piano de cauda, tudo ao alcance dos olhos de quem passasse. 

A revolta popular vinha com uma carga tão grande de consciência política que nem mesmo os saques foram permitidos pelos manifestantes: todos os bens da família Carreteiro deveriam ser destruídos e incendiados, deixando claro o recado de que a extorsão praticada cotidianamente contra o povo não seria mais tolerada.

Ao final, ainda antes de se retirarem, os manifestantes escreveram nas paredes, em frente à fogueira: “Aqui jazem as fortunas do Grupo Carreteiro, acumuladas com o sacrifício do povo”, uma mensagem que, em poucas palavras, deixa explícito o nível de conscientização política e de conhecimento do povo niteroiense sobre quem era seu inimigo de classe.

No dia seguinte, o então governador Roberto Silveira (PTB) reestatizou o serviço de transporte hidroviário, pondo fim ao império da família Carreteiro. O serviço teve seu preço reduzido, e os horários de funcionamento ficaram mais frequentes e pontuais.

Desde então, o dia 22 de maio é celebrado como uma data em que nos lembramos do poder de intervenção do povo. Não raras na história do nosso país, as manifestações com a pauta da melhoria do transporte coletivo constantemente geram grandes revoltas. Mas, naquele dia, a intensidade e a politização do movimento garantiram uma vitória imediata à população nas suas condições de vida, trabalho e lazer, que deve ser rememorada e comemorada.