'A Reconstrução Revolucionária e o XVI Congresso do PCB' (Gabriel Landi Fazzio)
A Reconstrução Revolucionária, por outro lado, se expressa na luta interna pela retomada de uma orientação revolucionária em partidos degradados pelo oportunismo – bem como em todo trabalho posterior de reinserção desta organização em meio ao movimento proletário e popular.
Por Gabriel Landi Fazzio para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Devido às tarefas das últimas semanas, infelizmente não tive tempo, ainda, de contribuir devidamente para essas nossas tribunas congressuais – o que pretendo fazer de modo permanente em logo de todo esse processo, como creio ser direito de toda/o camarada e, especialmente, dever de toda pessoa que ocupe posições de direção e, portanto, tenha o dever perante a militância de manifestar suas opiniões de modo aberto e transparente (a bem da verdade: esse dever da direção não era uma unanimidade no PCB Unificado, e isso também é uma das questões que está na raiz das divergências que nos trouxeram até a atual cisão…)
Contudo, embora eu não consiga no momento me devotar a isso, considero que posso dar alguns aportes preliminares aos debates desta Tribuna por meio da publicização de outras contribuições mais antigas, que remeti à Tribuna de Debates do XVI Congresso do PCB, durante suas respectivas Tribunas. Algumas dessas contribuições já foram, em versões adaptadas para publicação (ou seja, retirando algumas poucas referências internas que continham), como o artigo em que levantei a proposição de que o partido adotasse a palavra de ordem da redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais, escritos sobre questões teóricas ou sobre comunicação (links abaixo). O escrito, contudo, nunca havia sido publicizado.
Além do seu valor histórico, permitindo à militância compreender algumas das polêmicas à época e sua repercussão em nossa crise atual; acredito que, no essencial, as posições aqui contidas mantém toda a sua atualidade. É verdade: quando escrevia essa tribuna, em outubro de 2019, eu subestimava a profunda desunião ideológica existe no interior do PCB, e superestimava as condições de uma unidade duradoura entre os revolucionários e os centristas que coabitavam o partido. Nesse, e em muitos sentidos, o escrito caducou, embora as indicações acerca das diversas vias existentes para a reconstrução de organizações revolucionárias do proletariado sigam pertinentes. Nas semanas seguintes, pretendo publicizar outros escritos daquelas Tribunas, que versam sobre questões do perfil do proletariado brasileiro bem como sobre questões organizativas.
Que avancem os debates!
https://lavrapalavra.com/2022/03/16/30-horas-semanais/
https://lavrapalavra.com/2021/02/17/desafios-da-comunicacao-revolucionaria-a-agitacao-e-a-propaganda-na-era-da-internet/
https://lavrapalavra.com/2019/12/02/o-poder-popular-gramsci-e-a-dualidade-de-poderes-no-ocidente/
https://lavrapalavra.com/2023/01/16/o-desenvolvimento-leninista-do-marxismo/
O fim da Reconstrução Revolucionária: um balanço da autocrítica acerca da estratégia etapista
Nosso Partido passou, nos anos recentes, por um período de intenso crescimento e de revigorada projeção no interior do movimento de massas. Não é exagero dizer que caminhamos para nosso centenário, em 2022, em condições de figurarmos como uma das mais influentes organizações do proletariado revolucionário no Brasil
A esta altura de nossa reorganização, torna-se não só possível, mas bastante oportuno, um balanço do significado histórico de nossa experiência recente, e quais lições de devem extrair desta experiência a fim de contribuir para a superação da crise que ainda marca o Movimento Comunista Internacional.
- O sucesso da via da Reconstrução Revolucionária
Desde a crise que cindiu o movimento operário em uma ala revolucionária e uma ala reformista (resultando na fundação da III Internacional), o Movimento Comunista Internacional passou por algumas crises significativas. Entre as mais expressivas figuram:
- A cisão trotskista, resultando na fundação da IV Internacional (que, por sua vez, experimentou inúmeras cisões internas).
- A vitória da tendência krushevista no PCUS, fazendo proliferar entre os PCs tendências revisionistas (pacifistas e legalistas) e criando as bases para o florescimento da tendência eurocomunista.
- A cisão maoista (e, posteriormente, hoxhaista), resultando na constituição da tendência autodenominada ML (Marxista-Leninista).
- A proliferação do liquidacionismo entre os PCs de direção revisionista, resultado da restauração capitalista no Leste Europeu (um desdobramento, em patamar superior, da vitória do krushevismo).
O resultado é que hoje, mais de um século e meio após a publicação do Manifesto de Marx e Engels, o movimento revolucionário dos trabalhadores nunca esteve tão dividido, em dezenas de tendências em cada país.
Diversas respostas distintas foram experimentadas, frente a essa crise do movimento revolucionário socialista. Hoje, acredito, podemos realizar alguns balanços destas respostas:
- A via trotskista: segundo os defensores dessa via, a alternativa para a reconstituição de um forte e unificado movimento revolucionário passaria, antes de mais nada, pela constituição de um Partido Internacional, rompendo com os Partidos Comunistas (julgados degenerados em burocratismo). Três quartos de século depois, o que essa alternativa logrou produzir? Nenhuma revolução; vacilações à direita de todos tipos, especialmente exemplificadas no apoio a movimentos de extrema-direita (como na Ucrânia, na Síria e, hoje, na China); cisões intermináveis dentro do próprio movimento trotskista. Ainda que em muitos países o trotskismo, em conjunto, seja amplo; há apenas um ou dois países em que uma tendência trotskista, individualmente, atingiu influência de massas (é o caso da LER-QI Argentina, por exemplo). Em vez de unificar a vanguarda revolucionária, essa via apenas ampliou a fragmentação.
- A via ML: segundo os defensores dessa via, a solução para a crise do movimento comunista seria a cisão com os PCs revisionistas, criando PC-MLs. Meio século depois, essa via produziu apenas (ao menos no Ocidente) seitas cuja influência consegue ser ainda menor que a dos trotskistas. No mais dos casos, essas tendências aplicam justamente as mais “orientais” táticas do maoismo (abstencionismo eleitoral, fetiche pela guerra de movimento e pelo campesinato, etc), o que explica seu insucesso crônico nos países de capitalismo desenvolvido. (A exceção a esta regra são as organizações oriundas de cisões, mas alheias ao campo ML, como exemplificarei adiante).
- A via da Reconstrução Revolucionária: segundo os defensores desta via, a melhor alternativa para a reorganização de um vigoroso partido revolucionário se expressa na luta, no interior dos próprios PCs, pela prevalência da ala revolucionária sobre as alas direitistas. Em nosso caso, essa via passou por dois períodos discerníveis: um primeiro de luta interna contra o CC revisionista, no qual ampliou-se o prestígio e a influência da ala revolucionária do Partido; e um segundo de efetiva reorganização partidária, após a cisão com os liquidacionistas (cisão por parte deles próprios).
Essa via da Reconstrução Revolucionária é, até hoje, a que tem melhor respondido à crise do movimento comunista internacional. Ainda que esta denominação seja própria do PCB, encontramos correspondências entre ela e alternativas adotadas por partidos irmãos.
Tomemos o caso do KKE[1]. O Partido viveu uma série de momentos de emergência do oportunismo nas suas fileiras. Após a expulsão das forças militares nazistas do território grego, guiado por uma tática de Frente Popular, o Partido chegou a participar do governo burguês de George Papandreou, ocupando diversos ministérios. Esse mesmo governo, mais tarde, deflagraria uma feroz perseguição aos comunistas. Apenas em 1968, depois de uma dura batalha na 12ª Sessão Plenária do Comitê Central, o grupo oportunista de direita que vicejava no Partido foi derrotado, sendo levado à cisão.
Além desse grave equívoco, o Partido chegou às beiras da dissolução, nos anos 89-91, no interior da Coalizão da Esquerda e dos Progressistas (Synaspismo). Foi apenas em seu XIII Congresso que o Partido resolveu retirar-se da coalizão, reafirmando o marxismo-leninismo; e apenas no XV Congresso o Partido empreendeu uma vigorosa autocrítica de sua trajetória, firmando os pés na convicção do caráter socialista da revolução vindoura. Hoje, mediante a PAME (Frente Militante de Todos Trabalhadores), o Partido é um dos mais influentes no movimento operário do país, além de forte presença no movimento camponês.
Esse grosseiro esboço das vacilações e da “Reconstrução Revolucionária” do KKE confirma a validade geral de nossa experiência brasileira. Na contramão do que afirmam trotskistas e maoistas, é absolutamente possível derrotar uma direção oportunista e, sob a base da luta interna disciplinada e da autocrítica consequente, recobrar o caráter revolucionário de uma organização comunista em estado avançado de degeneração.
Em menor medida, o mesmo é visível em outras organizações irmãs, como o PCV (Venezuela), que hoje tem uma forte presença no movimento camponês do país e amplia sua influência no movimento sindical e de bairros. Ou, no caso do PC italiano, vemos um árduo esforço de Reconstrução, desde o zero, mas como continuidade do legado radical do PCI autoliquidado por sua direção eurocomunista. Ou, no caso do TKP, uma longa luta pelo legado dos comunistas turcos, em defesa da revolução socialista no país e pela construção do movimento comunista internacional (que se expressa no papel organizador da imprensa comunista internacional cumprido pelo Partido)[2]. Recentemente, um Manifesto divulgado pela ala esquerda da militância comunista portuguesa (PCP) também aponta para o mesmo caminho, da luta pela base contra a direção vacilante desta organização, em favor de uma orientação socialista revolucionária. A via da Reconstrução Revolucionária é, portanto, uma via perfeitamente apta à reorientação de uma organização comunista que se desencaminhou pelas vias do legalismo, do parlamentarismo e do etapismo.
A bem da verdade, em alguns aspectos, nossa organização é a que marchou mais longe em sua Reconstrução Revolucionária. Considero que o KKE seja um inspirador exemplo, dada sua ampla inserção entre as massas proletárias e populares. Mas, do ponto de vista teórico e ideológico, esta organização ainda mantém conservados uma série de desvios relacionados ao monolitismo teórico. O exemplo prático mais gritante que decorre disso é o trato dispensado à questão LGBT e à questão das drogas, considerados como meros aspectos da degeneração moral da sociedade burguesa.
Da parte do PCB, ao contrário, avançamos muito mais nas elaborações teórica e prática destes e de inúmeros outros problemas ligados ao desenvolvimento de uma política proletária às lutas espontâneas contra diversas formas de opressão (definidas como “identitárias” pelo liberalismo pequeno-burguês, mas baseadas na própria história da divisão do trabalho). Por outro lado, o nível de engajamento da militância do Partido Comunista da Grécia na construção do movimento operário é hoje muito superior à nossa – de modo que podemos aprender bastante com a experiência de reorganização dos camaradas.
Podemos afirmar, então, que esta é a única via possível para a superação da crise do movimento comunista? De modo algum. Fora dos campos maoista e trotskista, há diversas organizações leninistas consequentes que apostaram na via da cisão e da reconstrução desde o grau zero. É o caso do PCM (México), do PCTE (Espanha), do Polo de Renascimento Comunista em França, entre outras.
Resta afirmar, sobre este tema, que a Reconstrução Revolucionária também se expressa no plano internacional. Neste tocante, o KKE desempenhou um papel da vanguarda, articulando, desde os anos 90, os Encontros Internacionais de Partidos Comunistas e Operários. Nesses Encontros, com o passar dos anos, se evidencia cada vez mais a gritante distinção entre uma ala oportunista (PCdoB, PCCh[ile], PCE, PCP, etc) e uma ala revolucionária (KKE, TKP, PCV, etc). Da parte do PCB, no auge de sua Reconstrução Revolucionária, as afinidades com esta segunda ala são naturais e necessárias. Entre ambas, há uma série de partidos que ainda defendem concepções nacional-populares do caráter da revolução em seus respectivos países e alianças táticas com as burguesias nacionais; mas que têm sido empurrados pela crise sistêmica do capitalismo para posições mais avançadas (um avanço que guarda relação, inclusive, com a colaboração internacional, com as experiências de tensionamento com a ala oportunista do MCI e de trabalho fraterno e revolucionário com nossa ala).
No próximo período, sem dúvida, se intensificarão as tensões entre ambas as alas – especialmente em torno da ocupação de posições em entidades internacionais de nosso campo (FMJD, FSM, FDIM); mas também em torno das táticas regionais (como no caso das diferentes táticas do KKE e do PCP na disputa do parlamento europeu, por exemplo). Devemos, sem hesitar, estar em alerta para o agravamento destas contradições, dispostos a uma radical reorganização do Movimento Comunista Internacional sob a direção de sua ala revolucionária. Eis o significado da Reconstrução Revolucionária, à escala mundial.
2) Da Reconstrução à Construção Revolucionária
Apenas para que não reste dúvida, destaco um aspecto do problema da Reconstrução Revolucionária: a distinção entre a Construção e a Reconstrução Revolucionária.
Todo partido proletário revolucionário digno do nome (ou seja, que não seja uma mera seita de propaganda autoproclamada revolucionária) sempre soube e deve saber que o processo de sua Construção Revolucionária caminha em paralelo com a própria luta pela hegemonia e pela revolução proletária. Quando se pode dizer que a construção de um partido revolucionário está concluída? Apenas quando este partido logre a derrubada da burguesia, sua expropriação e a elevação do proletariado à posição de classe dominante.
A Reconstrução Revolucionária, por outro lado, se expressa na luta interna pela retomada de uma orientação revolucionária em partidos degradados pelo oportunismo – bem como em todo trabalho posterior de reinserção desta organização em meio ao movimento proletário e popular, e de continuada formulação das mediações táticas que devam assegurar nossa estratégia, diante das inflexões das lutas de classes.
A questão que se ergue, então, é: quando termina a Reconstrução e se inicia a Construção Revolucionária do partido, propriamente dita? Buscar uma cifra exata, um indicador estatístico, seria uma tolice. Mas, decerto, um dos critérios que devem nos orientar nessa apreciação é o quantitativo, combinado a algumas qualidades: enquanto o partido revolucionário não seja sequer predominante entre o conjunto das forças revolucionárias; e enquanto seja tão pouco inserido nos setores estratégicos do proletariado que não pode, efetivamente, disputar as palavras de ordens e a direção prática em quase todas as lutas de massas contra a política da maioria reformista do movimento operário; então, em um tal quadro, dificilmente poderíamos afirmar que está superada a etapa de Reconstrução Revolucionária.
3) As Pré-Teses ao XVI Congresso
A fim de que essa discussão se relacione diretamente às discussões de nosso Congresso, parecem oportunos alguns comentários às Pré-Teses no que concerne a este tema da Reconstrução Revolucionária, constantes na Resolução sobre nossa Organização.
1. O atual momento do PCB caracteriza-se pela ultrapassagem da etapa de reconstrução revolucionária, depois de termos superado o momento inicial de defesa da manutenção de nossa organização e de reinserção do Partido no cenário político e social brasileiro (1992-2005). A efetivação desta etapa se deu através da clara da estratégia da revolução socialista no Brasil e de uma autocrítica profunda do período em que predominou, desde a cúpula partidária, uma linha política reformista e de priorização à legalidade burguesa, momento em que perdemos a grande influência historicamente construída no interior do movimento operário e sindical.
Creio que esta Tese apresenta duas debilidades principais. A primeira consiste em sua ambiguidade: o começo do parágrafo não elucida se consideramos a Reconstrução Revolucionária como efetivamente ultrapassada e encerrada; ou se nos encontramos nos seus estágios finais, ainda nos marcos dela (essa segunda alternativa me parece a mais correta).
Em segundo lugar, a Tese oferece uma concepção bastante restrita de nossa autocrítica. Mas a autocrítica do PCB não diz apenas respeito ao período de predomínio do legalismo reformista e do liquidacionismo (anos 80): diz respeito também a diversos aspectos de toda nossa história pretérita, em que predominou entre nós uma concepção etapista da revolução brasileira. Mas todo o desenvolvimento histórico nosso demonstrou a insuficiência desta concepção: a revolução brasileira será socialista, ou não será nada.
Muitas vezes, essa afirmação pode ser confundida com a teoria arquiesquerdista da Revolução Permanente “para países semicoloniais”. Um debate aprofundado desta questão não é uma pretensão deste artigo. Mas, para que não se deixe a questão pairando no ar, alguns comentários precisam ser feitos.
Em primeiro lugar: fora dos países imperialistas, a teoria da revolução permanente sempre guardou profundas semelhanças com o etapismo. Mesmo postulando uma “ofensiva ininterrupta ao socialismo”, o trotskismo acreditava que países como o Brasil tinham um caráter semicolonial. Definiam o Brasil como “país atrasado”, à mesma moda do dualismo que predominava na teoria social brasileira pequeno-burguesa. Acreditavam, portanto, que a revolução social poderia ser iniciada através de lutas predominantemente democrático-nacionais. No Brasil, no entanto, essa revolução nacional-democrática sequer veio a existir.
Há algumas explicações alternativas, muito mais úteis, portanto. Por exemplo, aquela do camarada Mariátegui:
“Até que ponto a situação das repúblicas latino-americanas pode ser assimilada à dos países semicoloniais? Sem dúvida, a condição econômica destas repúblicas é semicolonial, e, à medida que crescer seu capitalismo e, consequentemente, a penetração imperialista, este caráter de sua economia tende a se acentuar. Mas as burguesias nacionais, que veem na cooperação com o imperialismo a melhor fonte de lucro, sentem-se suficientemente donas do poder político para não se preocuparem seriamente com a soberania nacional. […]
Nem a burguesia, nem a pequena burguesia no poder podem realizar uma política anti-imperialista. […] A revolução socialista encontraria seu mais encarniçado e perigoso inimigo – perigoso por sua confusão, sua demagogia – na pequena burguesia assentada no poder, conquistado mediante suas vozes de ordem.
Sem prescindir da utilização de nenhum elemento de agitação anti-imperialista, nem de nenhum meio de mobilização dos setores sociais que eventualmente podem auxiliar esta luta, nossa missão é explicar e demonstrar às massas que só a revolução socialista contraporá um obstáculo definitivo e verdadeiro ao avanço do imperialismo”[3].
Não bastasse essa percepção bastante original do camarada peruano, teríamos nas formulações do leninista Ruy Mauro Marini um outro exemplo teórico robusto de balanço da impossibilidade da revolução democrático-burguesa – especialmente quando, após os anos 60, o amadurecimento do capitalismo brasileiro atingiu o patamar de um desenvolvimento monopolista, integrado de maneira dependente aos capitais internacionais[4].
Mesmo que, hipoteticamente, pudéssemos afirmar que a revolução brasileira teve, em algum momento de nossa história moderna, um caráter democrático-burguês; ainda assim, seria inadmissível que um Partido baseado no leninismo pudesse tão grosseiramente confundir o caráter da revolução e a necessidade da aliança com a burguesia nacional. Para perceber os equívocos desta hipótese, bastaria analisar as posições de Lenin ao longo da Revolução Democrática de 1905, na Rússia, no que dizia respeito à independência do movimento social-democrático em relação à burguesia russa:
A análise correta da situação e dos interesses das diferentes classes deve servir para definir o valor preciso dessa verdade quando esta se refere a este ou aquele problema. O modo inverso de raciocínio, que não raro encontramos entre os social-democratas da ala direita liderado por Plekhanov, - isto é, a tendência que procura respostas para os problemas concretos no puro desenvolvimento lógico da verdade geral sobre o caráter fundamental da nossa revolução – é uma vulgarização do marxismo e uma completa zombaria do materialismo dialético. A essas pessoas que, da verdade geral atinente ao caráter da nossa revolução, deduzem, por exemplo, o papel dirigente da “burguesia” na revolução ou a necessidade de os socialistas apoiarem os liberais, Marx certamente aplicaria as palavras de Heine por eles citadas: “Semeei dragões e colhi pulgas”[5].
Por isso tudo, a autocrítica de nosso etapismo deve ir muito além do que dão a entender as Pré-Teses.
Só assim podemos compreender em termos materialistas as origens da degeneração de nosso CC nos anos 80: como resultado último de uma estratégia reboquista, que desde muitas décadas antes colocava o Partido como caudatário da suposta revolução burguesa no Brasil. De outro modo, apresentamos uma leitura subjetivista das origens de nossos desvios: ia tudo perfeitamente bem, até que um punhado de sujeitos de mentalidade eurocomunista nos fez degenerar. Mas, dessa forma, não se explica como essa direção oportunista logrou se estabelecer, sobre as bases de uma série de confusões democrático-nacionais que já atuavam fortemente entre nós.
Assim, proponho a reelaboração completa do parágrafo, nos seguintes termos:
1. Em sua Reconstrução Revolucionária, o PCB atravessou diversas etapas: 1) a luta pela manutenção organizativa e legal do Partido, contra os liquidacionistas, e sua reinserção no cenário político nacional (1992-1995); 2) a luta interna pela definição da estratégia socialista da revolução brasileira, acompanhada da profunda autocrítica do etapismo nacional-popular que predominou na trajetória do Partido, infiltrando em nossas fileiras ilusões quanto ao caráter histórico da burguesia brasileira e as tarefas históricas do proletariado - e que teve como sua expressão mais dramática o predomínio de uma linha política reformista e de priorização à legalidade burguesa, nos anos 80 (1995-2005); 3) e, por fim, a etapa do enraizamento e crescimento do Partido em meio à classe trabalhadora, à juventude e todos setores oprimidos do povo, cuja consolidação demanda hoje nossos esforços.
A Tese 2, por sua vez, dá continuidade a essa limitação de nossa autocrítica:
2. A reconstrução revolucionária, aprofundada a partir do XIII Congresso (2005), foi marcada pelo estabelecimento de uma sólida linha política estratégica e das principais mediações táticas, uma atuação significativa no meio intelectual de esquerda, a existência de uma juventude expressiva e núcleos dirigentes nas principais regiões do país e a consolidação de um Comitê Central coeso, experiente e legitimado pela base. O Partido reteve as características essenciais da sua história pretérita, resgatando seu caráter leninista e a preocupação com a luta anticapitalista e anti-imperialista, dando ênfase ao combate às posturas reformistas e eleitoreiras, mas também se renovou profundamente, incorporando vários novos elementos a partir do aprendizado com suas experiências, o contato com novas formulações políticas e o ingresso de militantes oriundos de outras organizações e movimentos, que trouxeram para nosso meio diferentes e renovadas culturas políticas.
Mas o que significa, ao mesmo tempo, “reter as características essenciais de sua história pretérita”, e incorporar em “nosso meio diferentes e renovadas culturas políticas”? Significa algo que nosso Partido já afirmou anteriormente, na Conferência Nacional de Organização de 2008, e repetiu na Tese 5 do XV Congresso do Partido:
“Sua base teórica para a ação é o Marxismo-Leninismo, em toda a sua atualidade, riqueza e diversidade. A visão de mundo do PCB e sua forma de organização têm por base as referências teóricas de Marx, Engels, Lênin e outros pensadores revolucionários. Essas referências, no entanto, não são dogmas nem manuais [...]”
O que a nova formulação pretende, de modo insatisfatório, é abordar essa nossa concepção do centralismo democrático leninista, nos marcos da Reconstrução Revolucionária: uma concepção que superou o monolitismo teórico[6] e que faz uso inventivo do materialismo histórico dialético. Não significa que, sobre os problemas fundamentais que envolvem nossa unidade de ação, essa nossa “diversidade” teórica impeça definições unitárias práticas. Se é preciso modificar a formulação dada pela Conferência de 2008, então talvez a questão devesse ser apresentada em outros termos:
2.1 A Reconstrução Revolucionária esteve marcada pelo estabelecimento de uma estratégia revolucionária socialista (XIII Congresso), fundada na análise científica do desenvolvimento das relações capitalistas de produção no Brasil, e a formulação das principais mediações táticas desta estratégia. O Partido cresceu em meio à intelectualidade socialista; alcançou uma inserção expressiva em meio à juventude militante e consolidou organismos militantes e dirigentes nas principais regiões do país - além de consolidar um Comitê Central coeso, experiente e legitimado pela base.
2.2.O Partido afirmou seu caráter leninista e colocou na ordem do dia a preocupação com a luta anticapitalista e anti-imperialista, dando ênfase ao combate às posturas reformistas e eleitoreiras da esquerda liberal. Em profunda autocrítica, superando concepções estreitas do centralismo democrático, pôde superar o monolitismo teórico e, com isso, encontrar em distintas tradições leninistas, estranhas à história do Partido, contribuições para uma melhor e mais científica compreensão das tarefas históricas do partido independente do proletariado.
Por sua vez, a Tese 3 deveria ser melhor conectada a este problema do atual estágio final da Reconstrução Revolucionária:
3. No presente, o PCB tem células organizadas em praticamente todas as regiões do país e atua em universidades, institutos de ensino técnico, movimentos sociais e em várias categorias de trabalhadores, como profissionais da educação, bancários, petroleiros, metalúrgicos, aeroviários, trabalhadores dos correios e da construção civil. A etapa de reconstrução partidária foi realizada, é importante sublinhar, principalmente por militantes que atuam na área da Educação, no serviço público e na juventude. Entretanto, o Partido não conseguiu o necessário enraizamento na classe operária e nas camadas proletárias, em que pesem os avanços conquistados junto aos movimentos de massa.
Neste sentido, proponho a redação:
3. Entretanto, o Partido não conseguiu atingir, ainda, o necessário enraizamento em meio ao proletariado, em que pese nossa crescente inserção nos movimentos de massa. No presente, o PCB tem células organizadas em praticamente todas as regiões do país. Atua especialmente em bairros populares, universidades, institutos de ensino técnico, movimentos sociais, e aprofunda seu trabalho de massas em algumas categorias de trabalhadores, como profissionais da educação, bancários, petroleiros, metalúrgicos, aeroviários, trabalhadores dos correios e da construção civil. A etapa de Reconstrução Revolucionária foi realizada, é importante sublinhar, principalmente por militantes oriundos da área da educação, do serviço público e da juventude. Superar nossas debilidades nessa inserção junto ao proletariado consiste em nossa principal tarefa, nesta etapa final da reconstrução revolucionária.
Finalmente, proponho a inclusão da seguinte Tese (sua melhor colocação seria, provavelmente, logo após essa Tese 8), em que se expõe uma de nossas principais debilidades, neste estágio final da Reconstrução Revolucionária: o ainda insuficiente grau de planejamento de nossas ações e recrutamentos, e a ausência de um trabalho sistemático, por parte do conjunto da organização, entre as categorias de trabalhadores que julgamos estratégicas:
4) Atualmente, nosso crescimento ainda depende em demasia da procura espontânea dos militantes de vanguarda que batem às nossas portas. Elaborando planos para nossa inserção nos setores estratégicos do proletariado, precisamos desde já promover uma intensa agitação e propaganda voltadas especialmente para essas camadas. Não podemos postergar nosso trabalho revolucionário entre esses setores até que tenhamos militantes já em seu interior: é preciso que o conjunto dos organismos de base do Partido, sob planejamento e direção de seus respectivos CRs, seja engajado no trabalho de massas dirigido especialmente a melhor conhecer e organizar esses setores em uma perspectiva anticapitalista e anti-imperialista.
4) Conclusão
Esta contribuição à Tribuna de Debates de nosso Partido pretendia, antes de mais nada, sintetizar algumas das lições que o processo de nossa Reconstrução Revolucionária tem a oferecer para o conjunto do Movimento Comunista Internacional – e vice-versa. Mas esse balanço não poderia passar ao largo da avaliação do teor e das implicações da autocrítica teórica envolvida em nossa Reconstrução, ou do estágio em que nos encontramos neste processo. Neste último sentido, compreendo que nossa Reconstrução atravessou três períodos distintos, e que ainda temos um longo caminho a percorrer para o encerramento deste terceiro período. Um caminho que se expressa na tarefa de enraizamento de nosso trabalho de massas no interior do proletariado.
Ao mesmo tempo, essa nossa compreensão do significado histórico da Reconstrução Revolucionário deve extrair todas suas consequências no que diz respeito à Reconstrução Revolucionária, no plano internacional, de um Movimento Comunista unificado, a partir da ala revolucionária que se conforma com mais nitidez dia após dia.
Por fim, acredito que nossa autocrítica deve demarcar com nitidez toda sua profundidade. Longe de limitar-se à crítica da direção liquidacionista do PCB de 1980, deve ser uma crítica sistemática de todo etapismo que predominou no movimento revolucionário brasileiro ao longo de sua história, desde antes da greve geral operária de 1917. Esta autocrítica deve, consequentemente com seu conteúdo estratégico, extrair suas conclusões organizativas – algo que já se expressa em nossas Teses sobre a diversidade teórica no interior do PCB, balizada por nossa unidade programática e de princípios.
Saudando o XVI Congresso do Partido Comunista Brasileiro; convencido da capacidade de nossa militância de levar a cabo as colossais tarefas, teóricas e práticas, que se põe em nosso caminho rumo à revolução proletária brasileira; concluo relembrando os dizeres do camarada Gramsci:
O elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente organizada e há muito tempo preparada, que se pode fazer avançar quando se julga que uma situação é favorável (e só é favorável na medida em que esta força exista e seja dotada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em dedicar-se de modo sistemático e paciente a formar esta força, desenvolvê-la, torná-la cada vez mais homogênea, compacta e consciente de si[7].
[1] Para um balanço mais amplo, pelo KKE, do MCI, veja-se:
https://pcb.org.br/portal2/22720/kke-100-anos-da-internacional-comunista/
Para o balanço histórico do KKE por dois de seus principais dirigentes:
[3]https://www.marxists.org/portugues/mariategui/1929/06/antiimperalista.htm
[5] Lênin, “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, p. 10. Trad. ZPN.
[6] Uma Resolução nossa com especial vigor, neste sentido, e que poderia até mesmo ser inserida em nossas teses Congressuais, se encontra nas Resoluções da Conferência Nacional Política e de Organização de 2016 (§29 e 30): “(...) o Partido precisa ser percebido como um operador político e não como uma instância legitimadora da “verdade”. Não pode ser, sob pena de involuir para antes do Iluminismo, um tribunal filosófico e científico para seus militantes, impondo uma única interpretação do marxismo-leninismo. O PCB, mesmo retendo os princípios essenciais do marxismo-leninismo, não impõe uma única interpretação desses legados aos seus militantes. A unidade do Partido se refere ao seu programa e seus princípios de organização e atuação na luta de classes".
[7] Cadernos do Cárcere, 3, p. 46.