A Radicalidade foi capturada: o dilema das eleições municipais em São Paulo
O compromisso, com a classe dominante, de não alterar profundamente a política econômica do país, foi cumprido. Em São Paulo, vemos a situação se repetir. Em nome da democracia, Boulos busca apoio de setores para derrotar Nunes (apoiado por Bolsonaro) e Marçal (apoiado por eleitores de Bolsonaro).
Artigo de opinião por Gabriel Tavares (militante da UJC e do PCBR)
A um mês das eleições municipais, São Paulo se encontra em uma situação política delicada. Essa eleição, na cidade com maior população e de grande importância econômica, reverbera diretamente na política nacional, indicando a posição do eleitorado na metade do mandato do governo Lula-Alckmin.
Desde o início da campanha, os dois candidatos favoritos eram Ricardo Nunes, atual prefeito pelo MDB, e Guilherme Boulos, deputado federal pelo PSOL. Nunes, como seus antecessores, segue o modelo burguês de gestão municipal, avançando na terceirização de serviços públicos, apoiando a privatização da SABESP e precarizando a carreira dos servidores. Eleito como vice de Bruno Covas, em 2020, é desconhecido de muitos. Sua gestão discreta, sem grandes obras ou projetos visíveis, contribuiu para isso. No entanto, nos meses que antecederam a eleição, o prefeito acelerou a execução de obras sob regime de urgência, sem licitação, com uso de recursos volumosos. Ao longo de sua gestão, surgiram denúncias de superfaturamento, como a compra de garrafas de 500 ml por mais de R$5 cada.
Guilherme Boulos, que conquistou mais de um milhão de votos para se eleger deputado federal, está, segundo as últimas pesquisas eleitorais, matematicamente empatado com os outros principais concorrentes, com uma pequena margem de vantagem, mas estagnado. Embora tenha ganhado notoriedade como líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), o tema da habitação não assume centralidade em sua campanha, apesar de ser um dos problemas mais graves da cidade, que conta com mais de 62 mil pessoas em situação de rua. Na verdade, Boulos focou em se apresentar como um candidato "tecnicamente preparado", visitando grandes metrópoles como Paris e Xangai para conhecer "modelos inovadores de gestão". Suas críticas a gestão de Ricardo Nunes se concentravam em apontar as denúncias de corrupção e a falta de iniciativas da prefeitura. Embora críticas pertinentes, poderiam ser feitas por qualquer candidato, independentemente de sua posição política.
Outras mudanças foram adotadas, buscando contribuir na construção da imagem de um gestor técnico e competente, através de uma profunda suavização dos discursos e pasteurização da imagem. Predomina, em sua campanha, uma leitura “profissional”, que se sobrepõe à política. Com base em métricas e pesquisas de opinião, a campanha de Boulos visa atender as demandas do eleitorado médio da cidade, caminhando em direção aos padrões da política tradicional e ao centro.
A política propriamente dita da campanha está na busca por tentar transformar o pleito em uma disputa entre “civilização e barbárie”, seguindo o padrão da frente ampla, utilizada na última eleição presidencial. Para atrair setores distintos, Boulos aposta na associação de Nunes a Jair Bolsonaro, tentando emular a disputa polarizada que marcou as eleições de 2022 e posicionar o atual prefeito como um “mal maior a ser evitado”. As propostas e o programa político perdem a importância, uma vez que o central torna-se apenas “não ser Bolsonaro” e “ser Lula”.
O abandono de algumas posições e a abertura para setores mais distantes de seu eleitorado tradicional ficam evidentes com a escolha de Marta Suplicy, apoiadora do golpe de 2016, para o lugar de vice, e o convite para um ex-chefe da ROTA — um destacamento de extermínio da Polícia Militar — tornar-se assessor de segurança pública na campanha. Ou mesmo nos lamentáveis pronunciamentos sobre questões como aborto e drogas. Em vez de se posicionar firmemente pela legalização, Boulos se mostrou contrário, tentando ampliar seu eleitorado, mesmo que a proibição de tais práticas seja responsável por uma dura violência contra a classe trabalhadora.
Um de seus panfletos de campanha, com 4 milhões de exemplares em distribuição, elenca três propostas, todas elas selecionadas cuidadosamente por sua equipe, seguindo a lógica “profissional” adotada, visando a menor rejeição possível. Poderiam ser encontradas no material de Ricardo Nunes ou Tabata Amaral. Em uma delas, propõe dobrar o efetivo da GCM, uma medida que ganharia apoio dos vereadores da bancada da bala formada na próxima legislatura. A privatização da eletricidade e do saneamento básico, por outro lado, vem sendo pouco discutida. Em vez disso, desde o começo do ano, Boulos usou sua visibilidade e alcance nas redes sociais para falar sobre sua relação com a família, sua paixão por futebol e sua trajetória nos estudos, numa tentativa de "quebrar rótulos", mas abrindo mão de temas centrais para as eleições municipais deste ano.
Até o presente momento, a estratégia eleitoral de Boulos parece ser a de "administrar vantagem". Busca se mostrar um gestor competente, distante do “radicalismo”, e que calcula seus discursos para não comprometer sua imagem perante uma parcela do eleitorado. O caminho para o segundo turno, diante de um candidato sem grande projeção e carisma, com um passado comprometido por violência doméstica, parecia promissor. O desafio maior estaria no enfrentamento à máquina eleitoral e o apoio da imprensa burguesa, que poderiam ser enfrentados com a militância e a base de apoio.
Nesse caminho, contrariando as expectativas de toda a esquerda, que o considerava uma figura considerada patética e irrelevante, surgiu Pablo Marçal, um coach charlatão e milionário, condenado por fraudes bancárias e investigado por outros crimes, incluindo eleitorais. Marçal, representante da extrema-direita, conseguiu atrair eleitores com seu discurso agressivo e acusações mentirosas, mesmo sem o apoio inicial de Bolsonaro. Entre as mentiras, está a “acusação” de Boulos ser usuário de cocaína. A base é uma sentença para outro Guilherme Boulos, homônimo. A estigmatização de usuários de drogas não foi pautada pelo psolista, que celebra conseguir provar que não pertence ao grupo. Marçal também é “inovador” em suas propostas descoladas da realidade, como a construção de um prédio de 1 km de altura. Como todo representante da extrema-direita, também destila o antipetismo, o anticomunismo e o ódio aos movimentos sociais. Sua atuação e um eficiente uso das redes sociais alçaram Marçal a um empate técnico nas pesquisas eleitorais com os outros dois principais candidatos, o que acendeu um alerta para todos os setores que compreendem o perigo que representa a extrema-direita. Em um mês, Marçal saiu de 10% das intenções de voto, na pesquisa Quaest de 25 de junho e, atingiu 19%. Boulos, na mesma pesquisa, teve uma oscilação de 21% para 22%. Nunes, de 22% para 21%. Resta saber quando o crescimento de Marçal atingirá seu teto.
A crise atual do capitalismo abriu espaço para movimentos de contestação ao status quo. No mundo inteiro, movimentos de extrema-direita se posicionam “contra o sistema” e ganham adeptos. Por outro lado, grandes mobilizações de massa, contra a violência policial, a retirada de direitos e o genocídio do povo palestino também tomaram as ruas. A esquerda social-liberal, no entanto, vem apostando na conciliação e na defesa abstrata da democracia. Observando a atuação de Marçal e Boulos, encontramos a mesma movimentação nas eleições municipais de São Paulo. Enquanto o primeiro rejeita a velha política, adotando uma postura agressiva e sem filtros, o segundo tenta se adequar ao establishment, se construindo enquanto um político tradicional e confiável, distante dos radicalismos e da polarização. Boulos, oriundo dos movimentos sociais, poderia usar essa origem a seu favor para polarizar com Marçal, mas quem acabou ocupando esse espaço de maior enfrentamento foi Tabata Amaral, com uma boa peça publicitária onde desmascara Marçal. No entanto, evidentemente, Amaral, defensora de retrocessos como a contrarreforma da previdência, e da privatização dos Correios, não representa uma opção para a classe trabalhadora em São Paulo.
A mídia tradicional, ao convidar Pablo Marçal aos debates — sem nenhuma obrigação legal para tal — demonstra sua conivência com o discurso reacionário, uma vez que não teve a mesma “abertura democrática” com as candidaturas que poderiam representar um contraponto político mais contundente à direita, como Ricardo Senese (UP) e Altino Prazeres (PSTU).
A busca de Boulos por se apresentar como “viável” resultou na abdicação de bandeiras que antes defendia, enquanto um coach charlatão, como Marçal, vem pautando o debate e ganhando espaço na mídia. Independente do resultado da eleição, a burguesia pode se considerar vitoriosa, pois questões como a privatização da SABESP, o péssimo serviço da ENEL e a destruição causada pela especulação imobiliária não estão em discussão.
As pesquisas indicam que a estratégia de Boulos foi capaz, até aqui, de manter uma base eleitoral sólida e constante, que, apesar de não ter aumentado, também não diminuiu. Essa base, por enquanto, demonstrou pouca disposição em atuar efetivamente na campanha, justamente pelo desconforto gerado pelas vacilações. Combinada com o sucesso de Marçal, a falta de engajamento pode atrapalhar os planos de chegar ao segundo turno.
Mesmo com uma possível vitória de Boulos, seria difícil afirmar o sucesso político de sua estratégia. Ao não assumir compromissos claros com a classe trabalhadora, o espaço continua aberto para que os grupos que controlam a cidade mantenham seus privilégios, mesmo sob uma gestão progressista. A lógica da frente ampla e da conciliação de classes, como vemos no governo Lula-Alckmin, trouxe a vitória eleitoral, em um contexto que inclusive nós, comunistas, compreendemos que seria necessário votar e fazer campanha para Lula no segundo turno para evitar uma reeleição de Bolsonaro. O caráter amplo do governo manteve as bases político-econômicas dos governos anteriores que perpetuam o desemprego, os baixos salários, o desmonte dos serviços públicos, como as privatizações, a austeridade fiscal, a autonomia do Banco Central, a manutenção do Novo Ensino Médio, entre outros. O compromisso, com a classe dominante, de não alterar profundamente a política econômica do país, foi cumprido.
Agora, em São Paulo, vemos a situação se repetir. Em nome da democracia, Boulos busca apoio de setores para derrotar Nunes (apoiado por Bolsonaro) e Marçal (apoiado por eleitores de Bolsonaro). Para atraí-los, se encobre das ferramentas mais modernas da política institucional, ao mesmo tempo que abre mão de bandeiras históricas da classe trabalhadora, caminhando em direção ao “pólo democrático”, e propondo uma “gestão eficiente”, em nome do “amor”. Em uma crise que aprofunda as desigualdades e injustiças, o que predomina é o ódio. Nosso papel deve ser de dar conteúdo de classe a essa indignação e combater as raízes de sua existência.