'A questão da saúde mental na organização marxista' (Vinicius Nogueira)

Assim, a saúde mental e exaustão da classe trabalhadora, atrelada a fatores de renda, raciais e de gênero, é um fator que impacta na sua decisão em se organizar em um partido revolucionário.

'A questão da saúde mental na organização marxista' (Vinicius Nogueira)
"Assim, pensar saúde mental em nossa organização teria um efeito direto em reduzir o número de afastamentos e promoção de uma melhora de nossa vida interna. Porém, também é importante ressaltar que mesmo dentro de uma organização marxista a saúde mental também pode se encontrar fortemente ligada a fatores de raça, classe, gênero e sexualidade."

Por Vinicius Nogueira para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, escrevo aqui minhas contribuições para um debate que ainda não vejo sendo feito com frequência em nossas fileiras, apesar de sua extrema importância. Não falo aqui de sáude mental em abstrato, muito menos de somente uma tentativa de garantir suporte profissional a militantes que acabem por vir a apresentar sofrimento psíquico grave durante a sua militância: muito pelo contrário, quero utilizar esse espaço para destacar três pontos que acho fundamentais serem discutidos em nosso processo de reconstrução revolucionária: qual a importância de medidas de promoção de saúde mental na militância, como podemos construir um ambiente interno o menos desgastante possível e que evite a exaustão e consequente afastamento de militantes, e por fim como podemos pensar em estruturar uma rede de apoio a militantes que acabem apresentando quadros de adoecimento psíquico em nossas fileiras. Também quero ressaltar que é impossível pensar a saúde mental como algo isolado, dissociado da realidade de nossa organização. Assim, terei que abordar aspectos organizativos e de vida interna também, pois questões como quebra de quadros e exaustão de militantes, seja por sobrecarga ou outros motivos, são questões que envolvem, não somente, a questão da saúde mental.

Inicialmente, é importante explicitar como a questão da saúde mental impacta e pode vir a impactar nossa militância. Além das atividades ligadas ao partido, todos nossos militantes contam com outras demandas em sua vida: demandas acadêmicas, de trabalho, pessoais e familiares. Assim, em tempos de superexploração da classe trabalhadora, se torna cada vez mais comum um sentimento de se estar constantemente exausto devido às diversas demandas apresentadas. Não somente isso, mas pessoas que moram longe de seu local de trabalho/estudo, em sua grande maioria pessoas da periferia, já tem o processo exaustivo de diariamente enfrentar mais de duas ou três horas de deslocamento para chegar em seu local de atuação, sem contar como questões de classe, raça, gênero deficiência e neurodivergência impactam na saúde mental de um indivíduo: trabalhadoras do gênero feminino costumam apresentar dupla e até tripla jornada de trabalho, tornando elas bem mais suscetíveis a questões como o burnout, por exemplo. Trabalhadores que moram em regiões violentas também apresentam maiores índices de adoecimento psíquico, estando o fator racial também envolvido nessa questão. Pessoas com deficiência e/ou neurodivergentes também podem vir a ter mais demandas atreladas à saúde mental devido a constantes violências que sofremos no dia a dia(faltando, inclusive, acúmulo sobre como garantir materialmente a entrada de pessoas com deficiência e neurodivergentes em nossa militância e como garantir sua permanência).

E onde quero chegar com isso? Quando um indivíduo opta por construir uma organização revolucionária como a nossa, no momento de sua decisão em aderir ou não diversos fatores são levados em conta, e um dos principais é se, enquanto trabalhador em um sistema que constantemente o precariza, está minimamente saudável física e psiquicamente para aderir a mais uma demanda em sua vida. Não que fatores de saúde mental sejam um impeditivo para se organizar(muito pelo contrário, eu mesmo aderi a militância comunista em um período da minha vida complicado em termos de saúde mental, e creio que outros militantes já tenham passado pelo mesmo), mas vamos aos fatos: é muito mais provável um estudante em contexto universitário, com renda suficiente para garantir um suporte psicológico para si venha buscar nossa organização do que uma mãe solteira com dupla ou tripla jornada de trabalho e que seu único suporte psicológico é o atendimento extremamente precarizado do CAPS(obviamente, nesse debate entram diversas outras questões que não tenho acúmulo teórico para abordar aqui, mas nesse texto quero me focar em como um suporte psicológico pode ser um dos fatores que faça o indivíduo se sentir mais “apto” a ingressar na militância, não sendo isso dissociado da questão da renda e de outras questões sociais). Logicamente, diversos outros fatores fora a saúde mental entram para explicar tal situação (o estudante universitário em geral terá mais contato com ideias de esquerda e um ambiente político mais ativo, por exemplo), mas vamos supor aqui que ambos esses indivíduos tenham atingido um nível de consciência de classe para optar por se organizar: de certo a mãe solteira irá ter mais receio em aderir a uma organização, tendo em vista suas demandas próprias de saúde mental que são precariamente atendidas (além de outras demandas de sua vida pessoal que se somam a essa).

Assim, a saúde mental e exaustão da classe trabalhadora, atrelada a fatores de renda, raciais e de gênero, é um fator que impacta na sua decisão em se organizar em um partido revolucionário. Como um trabalhador irá se organizar se ele próprio não se encontra bem psicologicamente, em um país com precário acesso a redes de apoio em saúde mental?

Além disso, todos sabemos que a militância muitas vezes pode ser um processo exaustivo. Quantos de nós já tiveram que se afastar por um período prolongado em decorrência de demandas de saúde mental? Infelizmente não temos uma base de dados concreta para afirmar isso (algo que, inclusive, creio que deva ser feito. Mapear nacionalmente os motivos de pedidos de afastamento pode ser benéfico para uma série de questões, inclusive para pensar a questão de saúde mental abordada aqui no texto). Porém, é comum termos diversos camaradas que se afastam, temporariamente ou permanentemente, devido a sua saúde mental, com o agravamento dessa situação muitas vezes atrelado à questão da sobrecarga(isso foi extremamente comum em meu núcleo no velho PCB). Assim, pensar saúde mental em nossa organização teria um efeito direto em reduzir o número de afastamentos e promoção de uma melhora de nossa vida interna. Porém, também é importante ressaltar que mesmo dentro de uma organização marxista a saúde mental também pode se encontrar fortemente ligada a fatores de raça, classe, gênero e sexualidade.

Militantes que se encontram em grupos socialmente marginalizados sofrem diariamente violências com as quais camaradas que não são desses grupos não tem que se preocupar, tornando já relevante termos mais atenção para a questão de sobrecarga e exaustão desses camaradas em nossa organização. Além disso, o partido marxista não está isolado das contradições da sociedade capitalista, e vez ou outra casos de racismo, capacitismo ou machismo podem surgir dentro de nossa própria organização. Não tenho estudo suficiente para definir como diminuir a ocorrência de casos assim, porém é importante ressaltar algumas medidas que devem ser tomadas para garantir o bem estar de camaradas dentro do complexo partidário quando algo assim ocorrer. Afastamento e punições cabíveis a pessoa que cometer esses atos, com transparência no processo disciplinar, irá servir para evitar que casos assim ocorram novamente e que sejam feitas medidas de suporte às vítimas, medidas de suporte essas que devem ser bem executadas e pensada caso a caso, mas é importante também que se produzam materiais sobre como acolher militantes que sofrerem esse tipo de violência, visando profissionalizar nosso suporte dado para tais pessoas. Se visamos formar quadros periféricos, negres, mulheres e LGBTs precisamos dar a tais pessoas o suporte adequado para que esta se mantenha na organização, e isso vai desde suporte material quando necessário, passando também pelas medidas explicitadas acima. Por fim, vale destacar que seria importante a produção de acúmulos teóricos e práticos acerca de quais fatores afetam principalmente a militância que se encontra em grupos sociais marginalizados, visando não lhe dar suporte somente quando ocorrer um problema grave, mas sim em qualquer momento de sua militância que for necessário, evitando justamente situações de agravamento de problemas relacionados a saúde mental. Aqui cabe o ditado popular: “é melhor prevenir que remediar”.

Além disso, outro tópico que desejo abordar, mesmo que de forma introdutória aqui, é a questão de militantes com deficiência ou neurodivergentes. Infelizmente, não contamos com acúmulos sobre tais pessoas e quais suas dificuldades em ingressar e permanecer militando em uma organização marxista-leninista. Precisamos pensar em medidas de suporte para tais pessoas, como acessibilidade de nossos textos e de nossos posts nacionalmente em redes sociais, além de outras medidas que planejo desenvolver mais detalhadamente em texto futuro. Enquanto pessoa neurodivergente, creio que precisamos discutir ainda diversos aspectos organizativos acerca de como garantir uma melhor inserção nossa em algumas tarefas da militância, sem generalizar, pois nenhuma deficiência ou neurodivergência é igual, mas sim formando um acúmulo geral para permitir-nos atuar com menos desgaste.

Agora, partindo para aspectos gerais, gostaria de abordar alguns aspectos organizativos que impactam, direta ou indiretamente, a saúde mental da militância como um todo. Existem três questões organizativas que, ao meu ver, impactam enormemente a saúde mental e a exaustão de camaradas, ao gerar problemas desnecessários no cotidiano da militância, que são: o burocratismo, a falta de transparência e o voluntarismo. Abaixo, vou abordar os três, mostrando como eles estavam presentes no cotidiano partidário do antigo PCB e como eles impactaram nossos militantes. Note, o objetivo desse texto não é dar contribuições sobre como resolver tais questões, mas sim explicitar seus impactos em questões de exaustão, saúde mental e afastamentos na militância.

Iniciando pelo burocratismo, é inegável que é muito mais exaustivo, trabalhoso e demorado realizar uma tarefa que você tenha que se comunicar com diversas instâncias que comumente não se comunicam, e passar por elas é algo que causa extremo desgaste a longo prazo e pode ser evitado. Uso aqui como exemplo uma legenda alternativa (questão de acessibilidade para pessoas cegas e com baixa visão) que fiz para um post de minha célula de base no antigo PCB. Ao enviar a legenda pronta para a secretaria de agitprop, foi me repassado que isso precisaria passar por outra instância, e após passar cerca de duas semanas tentando conseguir por essa legenda alternativa em nosso post, pedi afastamento por questões de saúde mental, que estavam ligadas com situações como essa, de ineficiência do complexo partidário em dar suporte a nossa militância para tarefas básicas, algo que constantemente ocorria. Lógico que qualquer afastamento, inclusive o meu, ocorre por diversas questões que culminam em um desgaste físico e psicológico de um camarada. Mas é inegável que a dificuldade em realizar tarefas simples, por terem que passar por diversas instâncias que muitas vezes não funcionam de forma adequada, era algo extremamente impactante para diversos militantes do antigo PCB. Em resumo, o burocratismo gera um desgaste evitável na militância, além de proporcionar uma demora maior a realização até mesmo de tarefas simples, e a longo prazo isso é uma enorme fonte de desgaste que pode culminar em afastamentos.

Além disso, a falta de transparência interna é outro fator que contribui para o desgaste de militantes e quebra de quadros. Afinal, quem não se sente desgastado após ver um quadro de seu partido ignorando as resoluções e não dando uma explicação cabível a isso, vide a participação de um membro do CC do antigo PCB no PMAI sem passar pelas instâncias adequadas? Isso é algo que gera um desgaste e estresse em nossa militância, e deve ser evitado a todo custo. Ambos os fatores apresentados nesses dois parágrafos geram desgastes e exaustão aos camaradas, fatores que podem culminar em afastamentos por eles próprios, por contribuir ao agravamento de questões de saúde mental de militantes que podem ou não já se encontram fragilizados, e também por fazer o militante da base perder a confiança nas direções do partido, e consequentemente desistir da militância. Encerrando esse tópico, vejo que uma das principais questões que gera a quebra de quadros é o voluntarismo. Ao não profissionalizar as tarefas da militância, não tendo um diálogo entre militantes do próprio núcleo sobre suas prioridades e ações a serem tomadas, é comum um ou alguns poucos camaradas tomarem para si as tarefas que julgam mais urgentes para o momento, sem necessariamente obedecer um planejamento estratégico. Geralmente esses camaradas são os militantes orgânicos dos núcleos, e isso se agrava em núcleos com poucos militantes orgânicos, fazendo com que alguns quadros peguem tarefas em excesso e acabam por se exaustar, sendo possível problemas como burnout que surgem agravados pela questão da militância. Logo, o voluntarismo é uma prática a ser combatida por meio da profissionalização dos núcleos e uma divisão revolucionária do trabalho neles, visando evitar a quebra de quadros com alto potencial revolucionário.

Até agora, mencionei no texto formas de evitar questões como exaustão e quebra de militantes, que podem ser encaradas como questões atreladas à saúde mental de nossos quadros. Agora, planejo abordar o que fazer em casos de adoecimento psíquico dentro de nossa organização. Lembrando que as medidas expostas anteriormente devem ser priorizadas, pois em saúde mental, prevenir o adoecimento é obviamente melhor do que tentar tratá-lo quando a situação já se agravou a um nível alarmante.

Mas então, o que fazer para proporcionar a nossos militantes nacionalmente uma assistência psicológica caso necessário? Isso não saberei informar. Porém, creio que existam algumas ações que podemos começar a fazer para pensar nisso, como incentivar camaradas que trabalhem ou estudem na área de saúde mental como eu a produzir mais acúmulos sobre o tema. Além disso, creio que seja interessante estudarmos como o SAMECA (Saúde Mental Camarada), do coletivo Soberana, atua. Esse serviço ajuda diversas pessoas a encontrarem assistência psicológica a um preço acessível ou até mesmo de graça, e creio que nos aproximarmos dele, para entendermos melhor seu funcionamento e tirarmos acúmulos para fomentar algo parecido em nosso partido, seja uma tarefa importante a ser feita, sendo esse estudo feito de forma organizada e por diversos militantes que tenham contato com a área da saúde mental. Note que essa tarefa não exclui as críticas que camaradas, como eu, têm acerca da atuação da Soberana enquanto coletivo.

Por fim, irei listar aqui algumas propostas no âmbito da saúde mental em nossa organização, que já foram ditas no texto mas serão sintetizadas aqui, a saber:

  1. Formações com toda militância sobre questões como o que gera a quebra de um quadro ou um desligamento do partido, qual a relação disso com saúde mental, com aspectos organizativos e de raça, classe e gênero e como podemos evitar que isso ocorra
  2. Mapear em todos as instâncias os motivos de afastamentos e desligamentos, sejam eles temporários (nesse caso, mapear também sua duração) ou permanentes e centralizar isso em uma instância nacional que avalie quais estão sendo os principais motivos de afastamentos em nossa organização (isso permitirá, inclusive, fora um melhor mapeamento das questões de saúde mental, um aprofundamento do entendimento de outras questões da militância que podem levar a um afastamento. Ao saber o principal fator que gera afastamentos em nossa militância, podemos pensar em estratégias de forma profissionalizada para reduzir o número de afastamentos)
  3. Pensar em formas de acolhimento para militantes de grupos marginalizados socialmente em casos de violência, além de discutir questões de raça e gênero na militância, combatendo com firmeza e transparência casos de machismo, homofobia, transfobia ou capacitismo que possam vir a surgir em nossas fileiras.
  4. Produzir acúmulos sobre quais os principais problemas que essas pessoas enfrentam para permanecer e atuar na militância e como auxiliar tais pessoas no seu cotidiano na militância, buscando garantir um ambiente propício para a formação de quadros negres, LGBTs, periféricos ou mulheres.
  5. Começar a produzir acúmulos sobre a deficiência e a neurodivergência em organizações marxistas, como podemos integrar tais membros da classe trabalhadora (que já encontram imensas dificuldades e violências no cotidiano capitalista) em nossa organização e garantir um ambiente propício para formação desses quadros.
  6. Continuar combatendo o burocratismo e o voluntarismo, heranças do velho PCB, e continuar com a transparência interna dos dirigentes do partido com seus militantes de base.
  7. Buscar estudantes e profissionais da área da saúde mental no complexo partidário para construírem coletivamente um acúmulo teórico-científico e com implicações organizativas práticas sobre o SAMECA, buscando compreender como podemos pensar em um serviço de suporte à saúde mental dentro de nossa organização.

Creio que essas medidas, se aplicadas em conjunto, podem promover melhorias em nossa vida interna, evitando afastamentos desnecessários e dando em geral maior disposição e disponibilidade para nossa militância cumprir suas tarefas revolucionárias. Também quero ressaltar a importância de produzirmos mais textos como esse e aprofundar o debate sobre saúde mental, quebra de quadros e vida interna em nossas fileiras. Dessa forma, poderemos não somente reduzir o número de afastamentos como também propiciar a formação de novos quadros, além de gerar menos desgastes para nossa militância como um todo.

Vinicius Nogueira, Militante do PCBRR-CE