'A pedra do estoicismo político na vida interna do partido-Uma breve reflexão' (Camarada Tt)

Não existe camaradagem quando o ambiente é alarmante toda vez em que surge um novo conflito, ou quando o respeito só existe na inexistência de discordâncias.

'A pedra do estoicismo político na vida interna do partido-Uma breve reflexão' (Camarada Tt)

Por Camarada Tt para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Ao explorar o termo “estoicismo emocional” enquanto uma resposta social baseada na repressão e rejeição aos sentimentos e desejos estimulada na sociedade capitalista patriarcal vigente, Bell Hooks, embora estivesse falando do amor e mais interessada em desvelar o desamor que o patriarcalismo ensina os homens a praticarem, pode nos fazer esclarecer muito do que impede nossa vida interna de avançar no que tange o leninismo.

Apesar do estoicismo emocional ser identificado como pretensão masculina majoritariamente, ele é reproduzido por todos os grupos sociais, ultrapassando os poros até mesmo dos espaços que julgam lutar contra sua fonte sistemática: o capitalismo/patriarcalismo. Digo, Nossa desumanização efetivada pelo capitalismo se encontra independente das relações (inclusive nas de militância) e de diversas formas, uma delas, a qual irei abordar, trata-se da negação de nós mesmos e dos outros (militantes ou não) como seres sensíveis e pensantes, que na vida orgânica e política do partido pode ser entendido como uma espécie de estoicismo político. Tal qual no campo afetivo-amoroso se nega os sentimentos, desejos e vulnerabilidades em prol da evitação de conflitos, no campo político pelo mesmo motivo, as críticas, ponderações e debates políticos são negados e abandonados.

Comecemos por um princípio básico nosso: a camaradagem. Sabemos que não se trata somente de um aglomerado de pessoas que supostamente marcham no mesmo rumo político. Se quisermos fazer valer fielmente o centralismo democrático, onde o debate e pluralidade política desemboquem em unidade de ação, é preciso que cada militante, cada plenária, cada reunião, sejam espaços seguros para que os posicionamentos políticos, balanços e críticas possam ser ouvidos, acolhidos e debatidos de forma respeitosa e honesta. 

Não existe camaradagem quando o ambiente é alarmante toda vez em que surge um novo conflito, ou quando o respeito só existe na inexistência de discordâncias, não é camaradagem quando só há o acolhimento de uma versão passiva da gente, muito menos quando há o distanciamento quando dizemos o que outros não querem ouvir. 

Não deve ser novidade que o debate político e liberdade de crítica vão resultar em oposições e conflitos, que certamente, quando abordados de maneira aberta e respeitosa e a camaradagem está solidificada no seio da vida interna, são saudáveis para uma organização política. Uma vez que os conflitos jamais deixarão de existir conforme os debates sejam travados, a unidade de ação do partido será determinada pelo manusear deles, ou seja, pela forma em que a militância lidará com eles, desta maneira, um partido sem camaradagem é fadado ao fracasso.

Ora, se não há camaradagem, não há debate político nem unidade de ação. Se não há debate político nem unidade de ação, não há centralismo democrático. Se não há centralismo democrático, não há leninismo. Talvez seja hora de reconstruir o cerne da vida interna.

Se é reconstrução, que seja radical.

O abafamento e negação do debate político e das pluralidades em nome de uma unidade de ação vazia, a história já nos mostrou mais de uma vez os resultados, mas essa não é a única forma de impedir que os conflitos existam. Mesmo quando há espaço e abertura para eles, o medo de se debruçar na vulnerabilidade, na confiança, na honestidade (resumidamente, na camaradagem) e nos vícios e traumas pessoais cria dinâmicas de silêncio, sintoma da pretensão social de que sentir significa fraqueza e desvalorização pessoal, bem como “perder o conflito” de uma abertura honesta, configurando assim, o estoicismo político. Aprendemos que conflitos tem vencedores e perdedores, e ninguém quer desempossar de prestígio social e reconhecimento, essa lógica burguesa mascara o real objetivo dos conflitos: solucioná-lo.

Os militantes, no menor sinal de desacordo, evitam adentrar no conflito e possuem reações imprevisíveis quando são abordados, ainda que abordados com camaradagem, A personalização do conflito acontece quase que de forma automática, e então saem de busca de camaradas ou outras organizações “perfeitas” porque simplesmente julgam não haver resoluções para os conflitos, comportamentos absolutamente indutores de ansiedade para a militância. E para o partido as consequências são as mesmas: mandonismo, unidade vazia, falta de debate, amiguismo, pessoalidade, individualismo... O partido somos nós e é necessário curar seus males, entretanto não é possível resolver problemas não nomeados e ignorados, assim vamos condená-lo ao entorpecimento de um hábito político de desconhecimento de si próprio.

Nesse sentido, o hábito de não evocar o debate político e a liberdade crítica se reforça na medida em que as tentativas de se realizar não são bem recebidas, muitas vezes lidas como afronta, desnecessárias ou inconvenientes, que serão internalizadas com ódio e respondidas com indiferença. Não à toa é comum que o modus operandi nas células sejam semelhante às empresas: as tarefas tocadas de forma isolada por militantes isolados, cada um em busca de mais reconhecimento, até como se tivesse crachá de “camarada do mês” perdendo completamente o senso de coletivo, de que não só pode, como também é dever, que aconteçam debates, que a militância se engaje, que haja contribuições e críticas.

Sabemos que esse hábito de amedrontar o debate, a crítica e o posicionamento não costuma poupar nenhum militante da incorporação do estoicismo político. Se por um lado os corpos mais associados à normatividade tendem a reproduzir formas de dominação e usar seus privilégios para agregar poder a seus discursos e torná-los uma verdade incontestável impedindo a abertura para os conflitos e discordâncias honestas e construtivas, por outro, os corpos estruturalmente inferiorizados, que são socializados em todos os espaços como insuficientes, são os mais propícios a evitar os conflitos através do silêncio. Somos silenciados e nossos posicionamentos invalidados nossa vida toda, portanto é comum que, na mínima manifestação de não abertura a nossas considerações, nos calemos porque internalizamos o ensinamento social de nossa suposta mediocridade.

Não é coincidência que nas tarefas envolvendo fala, nas ponderações nos congressos, na escrita das tribunas e no secretariado majoritariamente a participação é masculina, cis, branca, hétero. Logo, os maiores alvos do estoicismo político são, dialeticamente, os corpos menos e mais dissidentes, os primeiros porque se aproveitam do silenciamento para firmar suas posições e driblar a vulnerabilidade e contestação, os segundos porque se calam, tem suas inseguranças reforçadas e não conseguem passar seus acúmulos no processo de avanço da organização. 

Quer dizer, ambos se alimentam, à proporção que uns não se abrem para o conflito e impedem a construção de espaços seguros para o debate, outros não vão se sentir seguros para levantar suas ponderações e ir de encontro ao conflito. Nesse processo ainda ocorre o isolamento de militantes que quebram com esse padrão de comportamento, se alastrando um medo do isolamento de modo que, na prática, se constitui como mecanismo que previne que militantes se tornem sujeitos ativos no partido, com posicionamento político próprio (ou até mesmo sem consciência dele). Em suma, os militantes acabam por praticarem atos de automutilação política, matando todas a consciência política de si mesmos.

Sem dúvidas, não é fácil nos livrarmos das contradições impostas pela sociedade burguesa até mesmo em nosso interior e essa espécie de estoicismo político é resultado de um modo de viver individualista, burguês e egocêntrico, funcional à fragmentação e falta de unidade da nossa classe que reproduzimos em nossas fileiras, mas enquanto comunistas é nosso dever ceifar esse desvio burguês e reivindicar que se pratique cada vez mais o modo de agir e se relacionar revolucionário da camaradagem, capaz de possibilitar a verdadeira unidade, organização e revolução, abrindo portas para o debate aberto, crítico e honesto no lugar da falta de liberdade de crítica, do silêncio e da falta de comunicação.

É preciso entender que navegar pelos conflitos e resolvê-los são atos de camaradagem, não de guerra. E que fugir deles, independentemente da via, impede o partido de avançar. Camaradas discordam, possuem conflitos, sentem e resolvem, sem nenhum tipo de intriga ou desrespeito. O partido só vai se salvar quando seus militantes aprenderem a arte da camaradagem e se livrarem da pedra do estoicismo político que o afoga nas relações burguesas responsáveis por nos desarmar da possibilidade da revolução. Quando aprenderem que não se constrói o poder popular com pedras, pois elas são estáticas, não possibilitam nada novo, não permitem a construção coletiva e avanço político. E que se demanda uma argila, em que todos os militantes serão responsáveis pelo desenvolvimento e construção das políticas partidárias, sejam internas ou externas.