'A nossa falta de compreensão do infoproletariado' (Leonardo Damasceno)

Assim, tal qual aconteceu comigo e com tantas pessoas que compunham outra parcela do infoproletariado, da mesma forma que eu não era meu próprio patrão por apenas dispor de um carro, digo aos camaradas que vocês também não o são, apenas por disporem de estrutura de gravação e de seu conhecimento.

'A nossa falta de compreensão do infoproletariado' (Leonardo Damasceno)
"A polêmica iniciada no antigo PCB sobre a discrepância entre o alcance individual e o alcance do jornal partidário é uma polêmica infantil, falsa e uma perda de tempo, pois tudo isso se vai no primeiro boicote, cancelamento, shadowban e afins realizados pela plataforma de mídias."

Por Leonardo Damasceno para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Um dos argumentos do CC que mais me incomodavam na cisão era que nossos propagandistas, especialmente o Jones Manoel, faziam a disputa por fora para cooptação das bases e aproveitavam seu alcance. Era um argumento baseado na desigualdade de alcance, como se fosse uma injustiça, tais militantes terem um alcance maior que as mídias oficiais do PCB (ignorando completamente o descumprimento de resoluções que explicitavam a centralização de nosso AgitProp sob um Órgão Central).

Mas para minha surpresa e à luz de polêmicas recentes, eu vejo que esse argumento ou pensamentos parecidos não morreram, mesmo no PCB-RR. Na verdade, o que vejo ainda é um sintoma da nossa debilidade em não compreender o infoproletariado e a descaracterização do trabalho de pessoas subordinadas a algoritmos. Como também significa que, naturalmente, ainda não avançamos na centralização de militantes propagandistas.

Não irei me debruçar sobre a definição de infoproletariado, mas irei compartilhar parte de meu acúmulo como trabalhador por aplicativos por mais de 4 anos, onde vivenciei todas as contradições desse laboratório neoliberal que são as plataformas, resultando em minha organização como única saída possível para uma perspectiva de mudança. Meu objetivo também é mostrar de forma rápida que erramos em não considerar nossos propagandistas como parte do infoproletariado, logo não direcionamos esforços para essa luta corretamente, produzindo parágrafos abstratos nas seções Programa e Estratégia e Tática de nosso Caderno de Teses ao XVII Congresso.

Sobre a Aliança Nacional dos Entregadores

Recentemente, foi publicada a tribuna ‘As revoluções tecnológicas 4.0/5.0, a fragilidade do movimento sindical, a organização, e mobilização dos trabalhadores’ do camarada Sérgio Moebus. Peço que o camarada autor não leve para o coração minha crítica fraterna, mas seu escrito, apesar de bastante informativo, cai no abstracionismo e recebe de mim a frequente crítica que recebi várias vezes de colegas motoristas e entregadores: “esse conteúdo foi escrito por quem nunca rodou” ou “está de difícil compreensão”. Claro, entendo que o público alvo foi nossa militância, mas não pude não lembrar dessas palavras ao ler o seguinte:

“Existem duas organizações de representações pouco conhecidas desses do setor de entregadores, uma no Rio de Janeiro, o Sindicato Por Meio de App's do Rio de Janeiro, e outra em São Paulo, a Aliança de Entregadores de Aplicativos, organizada pela CTB - PCdoB. Estas organizações têm participado de alguma forma na construção de greves na luta por seus direitos, mas não se conhece suas representatividades.”

Corrijo o camarada na questão da Aliança ser organizada pelo PCdoB, pois tais lideranças se inscreveram nessa Central apenas para terem direito de voz na mesa de negociação aberta pela patronal (AMOBITEC). Uso essas palavras conscientemente, pois o processo de regulamentação só foi iniciado apressadamente devido a intenso lobby feito por iFood, Uber e 99 à época do governo de transição, pós-eleições de 2022. Sendo uma pessoa que acompanhou todo esse processo em seu nascimento, afirmo que a chamada de greve pela Aliança no início de 2023 não teve intuito nenhum de representar a luta sindical classista, pelo contrário, os elementos que a compõem são multiplurais, indo da extrema-direita ao PT e PDT, e não tinham como objetivo organizar a categoria de entregadores muito menos integrá-la ao ramo do infoproletariado. O resultado não poderia ser diferente, após a intentona golpista do 08 de janeiro de 2023, tais lideranças cancelaram a greve, pois “era hora de proteger a democracia” e segundo o que uma das lideranças falou no grupo do qual eu fazia parte, “está tudo bem, pois não somos contra as plataformas e não queremos uma guerra com as mesmas”.

Então, respondendo ao camarada Sérgio, essas associações não têm representatividade. No entanto, o camarada acertadamente diz que em ‘um país que tem nove centrais sindicais, não têm central sindical nenhuma’, porque para a surpresa de ninguém, o lobby ao Haddad foi feito por representantes de duas centrais, a mando das plataformas. Novamente, é um processo de regulamentação natimorto. Mas, o mesmo camarada Sérgio mostra o caminho das pedras:

“O início da organização dos trabalhadores entregadores de aplicativos, é uma iniciativa que pode ser estendida aos trabalhadores informais de outros setores. Tudo indica que os trabalhadores submetidos a relações de trabalho tão diferenciadas, vão organizar-se inicialmente numa construção individualizada como categorias, até que seja possível centralizar essas organizações.”

E é sobre o fio comum das várias categorias do infoproletariado que falarei a seguir.

A descaracterização da relação empregatícia

Eu deveria começar citando o livro referência para esse debate, Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0 organizado pelo professor Ricardo Antunes, mas por celeridade, irei transcrever a fala do mesmo no episódio do Revolushow sobre o breque dos entregadores[1]. Nesse podcast, o professor destaca dez pontos que ele considera essenciais para caracterizar a relação empregatícia e desmistificar a falácia do empreendedorismo, mas destaco alguns com minhas alterações em negrito:

  • As plataformas determinam quem pode trabalhar.
  • Elas delimitam o que será feito (viagem, entrega, reparo, conteúdo digital, etc.).
  • Determinam prazo para realização do serviço.
  • Estabelecem unilateralmente o valor do serviço.
  • Determinam a forma de comunicação de quem executa o serviço com as gerências.
  • Pressionam a massa trabalhadora a ser assídua e a não negarem serviços (através de Taxas de Cancelamento e Taxas de Aceitação).
  • Pressionam, via incentivos manipulados, a ficarem mais tempo à disposição de uma chamada (através das promoções inalcançáveis do fim de semana e por sistema de pontos, como a Rappi costumava fazer).
  • Utilizam bloqueio e boicote (informalmente chamado pelo termo racista de banimento branco) como forma de ameaça. “Se você não quer passar fome, que fique mais de 12 horas na rua, todos os dias”.

Tais plataformas também se valem da ideologia chamada Economia do Compartilhamento, a qual foi fortemente propagada pelas startups do Vale do Silício (não somente lá) após a crise do capital de 2008 e defendia que a individualização era o caminho para combater até a crise climática, afinal “se você tem um carro sobrando em casa, por que não fazer uma graninha extra?”

Mesmo fugindo do escopo da Economia do Compartilhamento, empresas como Google, Meta/Facebook e Open AI compartilham algumas características com Uber, Amazon, 99, iFood e afins, ao valerem-se da descaracterização das relações empregatícias e exercer o controle por meio de algoritmos (em alguns casos são utilizados agora o próximo passo da revolução industrial, as inteligências artificiais).

E como exemplo que plataformas de vários segmentos utilizam os mesmos meios, deixo um exemplo trazido por Jamie Woodcock, em seu livro A Luta Contra o Capitalismo de Plataforma[2], publicado pela LavraPalavra em 2022. No trecho, Jamie fala da plataforma de serviços freelancers de transcrição e tradução, a Rev, cujos empregados e empregadas são chamados de Revvers. A empresa, em um belo dia de 2019, anunciou unilateralmente mudanças em sua estrutura de pagamento, daquele dia em diante, a plataforma adotou uma taxação variável de serviço, sob a justificativa de “compensar de modo mais justo os Revvers pelo esforço gasto nos arquivos”. Na prática, de 1 dólar pago por um cliente, um pouco menos da metade desse dinheiro foi para os Revvers e para diminuir o percentual retido pela plataforma, os Revvers deveriam realizar uma frequência absurda de transcrições e traduções.

Algo semelhante (senão idêntico) aconteceu comigo em 2021, quando em minha cidade, as plataformas de transporte mudaram a forma de pagamento da chamada Tarifa Dinâmica, que anteriormente era composta de um valor multiplicativo e após esse dia, de um valor somatório, quase irrisório. Na prática, os valores cobrados de clientes dispararam ainda mais no afrouxamento da pandemia e o pagamento para os chamados empreendedores caiu cada vez mais, provocando deteriorações nas condições materiais de várias pessoas.

Eu trouxe esses dois exemplos para mostrar como as estratégias das empresas que utilizam algoritmos são bem parecidas e o fio comum é justamente essa descaracterização da relação de trabalho mediada por uma Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), podendo ser um algorítimo ou inteligência artificial. O surgimento das plataformas em diversos países foi desigual, mas segundo Jamie, segue alguns padrões, como o grau de políticas neoliberais executadas em um país e o consequente afrouxamento das leis trabalhistas, o grau de resistência e de luta sindical. Não à toa, tais empresas encontraram um campo propício aqui no Brasil após a Contra Reforma Trabalhista de Temer.

Outro ponto comum foi a estratégia utilizada para desorganizar ainda mais o infoproletariado, por exemplo, em uma mesma empresa há dois tipos de relações de trabalho, como os entregadores nuvem e Operadores Logísticos (OL) no iFood, motoristas e motociclistas na Uber e na 99 e uma diferenciação entre quem produz conteúdo digital para TikTok, Instagram, Youtube e Twitch/Amazon.

Coloquei a última categoria propositalmente, pois tais plataformas de mídia compartilham várias semelhanças com as anteriormente citadas e a pulverização do infoproletariado deve ser considerada para sabermos como abordar o problema. Nesse sentido, considero uma decisão acertada das Resoluções da Unidade Classista em determinar que uma tática válida para atacar a pulverização do campo sindical era concentrar esforços por ramos de produção. Assim, podemos traçar a linha comum da exploração provocada pelo capital em sua forma digital e também até considerar parte do infoproletariado como integrante do ramo de transportes, a fim de paralisar esse setor por inteiro e não de forma tímida e descompassada (primeiro metroviários, depois rodoviários, então portuários e assim por diante) e tratar as plataformas como empresas de transporte e não de tecnologia.

Enfim, chego no ponto desejado, a consideração de pessoas que criam conteúdo digital como parcela do infoproletariado. Especificamente, refiro-me a comunistas que criam conteúdos para a internet e irei me ater aos dois maiores propagandistas de nossa organização, Gustavo Gaiofato e Jones Manoel.

Primeiramente, devemos tratá-los como parte integrante do infoproletariado e fugir da idealização burguesa. Nesse sentido, eles também devem se reconhecer como tal. Afirmo isso não no sentido de eles se verem como celebridade, mas que fique claro aos dois que no momento eles exercem a função de criadores de conteúdo digital e não de professores. Não pretendo soar invasivo nem autoritário, mas a dúvida “se sou empregado ou não” de uma plataforma é algo comum por todo o infoproletariado e no meu caso, só pude perceber que sim, eu era um empregado de uma plataforma, após muito estudo e após me inserir em meu sindicato.

Segundo, que fique claro que nenhum propagandista comunista hoje é dono de seu próprio conteúdo/trabalho, pois a TIC, sendo o algorítimo ou uma AI, é protegida pela justiça burguesa, tornando quase impossível a regularmos a fim de obter ganhos econômicos, o máximo que podemos conquistar nesses casos são direitos trabalhistas básicos. Também não afirmo que nenhum criador de conteúdo espere ganhar uma alta remuneração da Google, Meta e Amazon. Na verdade, boa parte da renda de um criador hoje é advinda de anúncios pagos, vendas e doações. E para quem acredita que essa categoria está em declínio, não é o que diz a mídia hegemônica, que continua romantizando a situação ao afirmar que cresce o número de pessoas que vivem só da criação de conteúdo (algo muito semelhante ao que fizeram durante a fidelização de motoristas por aplicativos, quando eram noticiados com gosto casos de pessoas idosas que ainda tinham disposição para trabalhar). Assim, tal qual aconteceu comigo e com tantas pessoas que compunham outra parcela do infoproletariado, da mesma forma que eu não era meu próprio patrão por apenas dispor de um carro, digo aos camaradas que vocês também não o são, apenas por disporem de estrutura de gravação e de seu conhecimento. Novamente, não pretendo soar autoritário nem ríspido, mas preciso que esse fique claro e essa assimilação demora anos para ocorrer (como foi meu caso), caso você sejam bloqueados por suas plataformas empregadoras, o baque em suas fontes de renda será severo, tal qual ocorre com qualquer pessoa que compõe o infoproletariado, desde entregadores, motoristas, prestadores de serviços, freelancers, hospedeiros, etc.

E antes que alguém me acuse de comparar os camaradas com o famigerado rapaz cujo nome lembra uma marca de bicicletas, o questionamento que trago é o seguinte: sabendo que nossos camaradas propagandistas têm a consciência de classe elevada e se reconhecem como empregados e não possuidores do meio de produção em questão (um algorítimo), o que lhes falta para travarem a luta sindical junto com a parcela da juventude brasileira que é cada vez mais precarizada, induzida ao sonho de produzir conteúdo e ser a vanguarda desse movimento? Porque se a justificativa for que estamos impossibilitados de travar uma guerra justa com as multinacionais enquanto não tivermos uma plataforma estatal de mídia na mão da classe trabalhadora, digo-lhes que isso não impediu o infoproletariado dos transportes de se sindicalizar (eu incluso) e lutar hoje contra as plataformas, mesmo sendo uma luta com baixíssima chance de retorno e longe do horizonte desejado (luta que ficará mais difícil ainda com a extinção do imposto sindical). Fica ainda mais grave que, para minha decepção, a figura que pretende tomar a frente de um movimento sindical para criadores de conteúdo é o Felipe Neto[3], anulando todas as chances de um movimento classista, que unifique o infoproletariado e que ainda abre chances para a criação de sindicatos patronais.

Conclusão

Apesar disso, meu objetivo não é criticar fraternalmente os camaradas propagandistas, mas defendê-los e garantir que mais militantes surjam e se tornem também referências, pessoas das mais variadas raças, gênero, identidade, neurodivergência e de diversas regiões do Brasil. Carrego um incômodo enorme com o fato de termos o Jones Manoel com todo o seu potencial propagandístico e alcance, justamente porque temos apenas ele e isso é insuficiente. Esse deveria ser o incômodo central na questão de nossos propagandistas, o que infelizmente não é verdade em nossa organização. Para minha decepção, ainda é presente o pensamento do PCB CC dentro do RR de que há uma espécie de desvantagem, injustiça ou problema com o alcance de Jones Manoel. Como se o problema central fosse a desigualdade de alcance e como se o alcance do canal de Jones fosse apenas mérito do próprio. Vejam, não desmereço em nenhum instante o mérito do camarada, mas não considerar que os canais comunistas só tem o alcance que têm porque as plataformas assim o querem é de uma ingenuidade tremenda e denota a total falta de compreensão do infoproletariado no geral. Nenhuma relação de trabalho (por mais descaracterizada que seja) intermediada por plataformas permite qualquer autonomia aos subordinados.

Assim, aos que de certa forma ainda criticam o alcance (obtido com muito esforço) de nossos propagandistas e não pensam em ações para solidificar o que já temos, catapultar e fomentar outras pessoas, não entenderam a gravidade do problema e francamente, estão o analisando pelas avessas. Pois, quem achar que com a publicação de um vídeo temos capacidade de influir no debate público desconsidera que fora a plataformização, há o anti-comunismo e o boicote da esquerda por sermos oposição ao neoliberalismo de Lula, impedindo qualquer alcance real de nossa AgitProp. A polêmica iniciada no antigo PCB sobre a discrepância entre o alcance individual e o alcance do jornal partidário é uma polêmica infantil, falsa e uma perda de tempo, pois tudo isso se vai no primeiro boicote, cancelamento, shadowban e afins realizados pela plataforma de mídias. Quando tal ação ocorrer, ficará claro que apesar da organicidade do público atingido, as doações, vendas e outras fontes de captação de renda não serão capazes de manter o padrão de renda obtido por meio das plataformas, é uma realidade que todo plataformizado passa um dia: o seu trabalho não é seu e todo o conteúdo produzido por anos, apesar de existirem backups, não terá o alcance outrora obtido.

Finalizando, entendo que nosso Caderno de Teses foi redigido com o intuito de fomentar a liberdade de discussão, irei defender nas plenárias congressuais a modificação do parágrafo C7 do Programa para abranger o infoproletariado na totalidade. E a inclusão de parágrafos na Estratégia e Tática que chame atenção que, apesar de não estratégico, o infoproletariado merece atenção, ao perpassar ramos como transportes e mídia, além de que sua compreensão se torna essencial para entendermos e fazermos AgitProp nas Revoluções Industriais 4.0 e 5.0.


Referências

[1] 80 – Breque dos Entregadores de Aplicativo. Revolushow, 2020. Disponível em: https://revolushow.com/80-breque-dos-entregadores-de-aplicativo/

[2] Woodcock. J. A luta contra o capitalismo de plataforma: uma investigação das lutas globais da economia gig. LavraPalavra, 2022. Disponível em: https://lavrapalavra.com/produto/capitalismo_de_plataforma/

[3] Felipe Neto defende criação de sindicato para youtubers. Uol, 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/10/16/felipe-neto-defende-criacao-de-sindicato-para-youtubers-nao-e-comunismo.htm