'A necessidade de um aprofundamento no estudo da filosofia marxista' (nahr al-urdun)
Se podem existir diferentes concepções de mundo, não apenas diferentes entre a filosofia marxista e outros sistemas filosóficos, mas se existem até mesmo diferentes marxismos, como podemos saber então, qual destes sistemas filosóficos é o correto?
Por nahr al-urdun para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Não tenho a intenção de me prolongar muito, venho hoje apenas com a simples intenção de colocar em destaque a necessidade de um aprofundamento no estudo da filosofia entre nós camaradas marxistas. Pretendo fazer isso da forma mais breve possível, porém, espero que seja o suficiente para jogar luz a importância deste tópico.
Acho que devo começar então com uma breve discussão sobre o que é filosofia. Essa é uma questão bem colocada na Introdução do Princípios Fundamentais da filosofia, de Georges Politzer e disponibilizado gratuitamente pelo jornal A Verdade. Eu recomendo a leitura completa para os interessados.
Mas de forma breve filosofia é a “concepção geral do mundo da qual se pode deduzir certa forma de conduta”. Chamo aqui a atenção para característica da filosofia de ser algo no qual podemos deduzir certa forma de conduta, isto é, como Politzer coloca, a filosofia é algo no qual pode-se deduzir certas regras que determinam uma certa atitude diante da vida. Segundo o mesmo, na Grécia antiga, “sábio era o homem que agia em todas as circunstâncias de conformidade com tais regras”. Essa é uma definição que também nos remete a discussão que Descartes faz na sua carta ao tradutor francês para ser utilizada como prefácio do Princípios de Filosofia. Neste texto, Descartes nos diz:
“Assim, a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências que se reduzem a três principais: a Medicina, a Mecânica e a Moral, entendendo apor Moral a mais elevada e mais perfeita, porque pressupõe um conhecimento integral das outras ciências, e é o último grau da sabedoria.”
Sendo assim, a visão de mundo se relaciona de forma explícita sobre como nos relacionamos como o mundo, o que torna evidente então, que a filosofia “não é uma questão sem interesse, uma vez que duas concepções opostas levam a conclusões e práticas, também opostas”, como também foi bem colocado por Politzer. Podemos concluir, de forma sucinta, para não nos estendermos além do necessário, que a filosofia também tem caráter de classe.
Acredito que uma vez que temos esse entendimento sobre o que é a filosofia (e aproveito o espaço para reconhecer que não há uma definição unânime sobre o que é filosofia, mas escolhemos aqui trabalhar com uma no qual nos é apropriada), fica evidente da importância de não apenas aprendermos a filosofia, mas também incentivarmos a prática do filosofar entre todos.
Quero trazer dois exemplos no qual o movimento comunista deve se beneficiar de uma solidez filosófica mais firme. A primeira diz respeito à capacidade de reflexão do movimento comunista sobre si mesmo. Tomando a liberdade de citar Engels, quando o mesmo discute a concepção materialista da filosofia marxista, ele diz:
“A concepção materialista do mundo, significa, simplesmente, a concepção da natureza, tal como ela é, sem adicionamentos estranhos.”
Assim, Politzer nos diz que enquanto cada ciência estuda um aspecto da natureza “tal como ela é”, a filosofia marxista trata da concepção geral da natureza “tal como ela é”. Essa compreensão da filosofia como uma concepção mais geral da natureza do que qualquer disciplina isolada, também pode ser percebida na discussão feita por Descartes, onde na sua descrição da filosofia, ele atribui a mesma a um componente mais fundamental (metafísica) que qualquer ciência em particular.
Essa concepção da realidade encontrada na filosofia, mais geral e fundamental do que quando comparada com qualquer ciência em particular, permite que a filosofia assuma o compromisso de refletir criticamente sobre cada ciência em particular ou até sobre todas elas de uma vez só, procurando por exemplo, identificar os limites que separam uma ciência da outra. Trazendo a discussão para o movimento comunista, e como podemos nos beneficiar desse caráter da filosofia, é frequente nos deparamos com o estudo isolado de algumas disciplinas, como por exemplo, aquilo no qual chamamos de economia marxista. Porém não são raras as vezes que nos deparamos com um debate se tal formulação da economia que se declara marxista, é de fato marxista. Porém para responder esta pergunta, a ciência econômica por si só não é o suficiente, é necessário que recorremos a uma concepção mais fundamental sobre o que é marxismo, precisamos recorrer então, a filosofia marxista.
Somente com uma filosofia marxista sólida adquirimos a capacidade de refletir sobre o que é marxismo e o que não é. Um segundo exemplo mais prático que trago, é uma recorrente discussão sobre os conflitos que existem ou deixam de existir entre religião e marxismo. Talvez alguns de nós nunca paramos para pensar sobre, ou talvez apenas respondemos respostas automáticas como ‘materialismo’, mas acredito que muitos de nós ainda não refletimos sobre a verdadeira natureza desse atrito.
Descartes diz que a raiz da filosofia é a metafísica. No seu sistema filosófico, ela é considerada como a parte que contém “os princípios do conhecimento , entre os quais se encontra a explicação dos principais atributos de Deus”. De maneira mais geral, Lowe na sua obra A natureza da metafísica nos diz que a concepção tradicional e mais generalizada de metafísica é a na qual sua preocupação central é com “a estrutura fundamental da realidade no seu todo.”
Acredito que a esta altura já temos uma ideia sobre onde está concentrado o atrito entre marxismo e religião. Para ficar mais claro, podemos acompanhar o pensamento de Al-Fayyadl sobre o Islã e o Marxismo. Al-Fayyadl é um pensador indonésio que em poucas palavras insere o marxismo como uma ciência para analisar a sociedade capitalista no Islã, tal qual a medicina é utilizada para analisar o corpo humano. Demonstrando assim a incompatibilidade entre esta mesma religião e o capitalismo.
Segundo French, Fayyadl analisa três facetas do marxismo para analisar sua compatibilidade com o islã. Duas delas há compatibilidade, são elas: (1) a luta pelo fim da desigualdade e da injustiça, (2) a compreensão do materialismo histórico como uma ferramenta eficaz para compreender as relações socioeconômicas. A incompatibilidade surgiria então no (3) materialismo ontológico do marxismo que contraria a visão de mundo religiosa islâmica.
Sem necessidade de nos aprofundarmos aqui, basta sabermos que ontologia é um subcampo de metafísica. Isto é, o atrito surge então entre metafísica da filosofia marxista e da filosofia islâmica, ou seja, temos um conflito que é essencialmente filosófico. Este é um exemplo de um único pensador e uma única religião, mas acredito que é fácil de perceber a generalização que podemos fazer do atrito existente entre o marxismo e qualquer outra religião em geral, uma vez que cada religião (ou mesmo cada vertente de uma mesma religião) terá sua própria concepção metafísica do mundo.
Uma questão imediata deve surgir agora na mente de quem está acompanhando esta tribuna: há solução para este atrito? Eu não tenho a resposta, e esta é uma das razões pela qual acredito que é necessário fomentar o estudo filosófico em nossas fileiras. Mais de 90% da população brasileira declara ter religião, é necessário refletirmos sobre marxismo e a religião de uma forma mais adulta e matura.
A curto prazo, Lenin nos disse:
“A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.”
Porém a longo prazo, eu creio ser necessário que nos debruçamos mais profundamente sobre estes tópicos a fim de resolvermos e/ou esclarecermos qualquer atrito filosófico que possa existir de forma clara, e então consigamos construir uma experiência socialista sólida dada nossa própria realidade.
Para concluir, esta discussão nos leva a um último tópico. Fayyadl analisa as três facetas do marxismo que lhe foi apresentado e identifica o conflito filosófico dito anteriormente. Porém esta é a única filosofia marxista possível? Há alguma outra no qual não existe este atrito? Ou melhor, como podemos saber dentre diferentes concepções filosóficas do mundo qual é a correta? As conhecidas leis da dialética não aparecem em Marx, e aparecem em forma e quantidade diferentes em Engels, Stálin e Mao. Ingo Elb em um conhecido texto no meio marxista, faz uma distinção entre o que chama de marxismo, descrito como a “a interpretação até então predominante de Marx, principalmente aquela partidária-oficial” e o que chama de marxismos como “formas críticas e dissidentes de recepção de Marx”.
Se podem existir diferentes concepções de mundo, não apenas diferentes entre a filosofia marxista e outros sistemas filosóficos, mas se existem até mesmo diferentes marxismos, como podemos saber então, qual destes sistemas filosóficos é o correto? Como podemos resolver um conflito filosófico? Konder em sua obra, O que é dialética, nos responde:
“Como é que eu posso ter a certeza de que estou trabalhando com a totalidade correta, de que estou fazendo a totalização adequada à situação em que me encontro? A única resposta possível a esta pergunta se arrisca a ser decepcionante: não há, no plano puramente teórico, solução para o problema. A teoria é necessária e nos ajuda muito, mas por si só não fornece os critérios suficientes para estarmos seguros de agir com acerto. Nenhuma teoria pode ser tão boa a ponto de nos evitar erros. A gente depende, em última análise, da prática - especialmente da prática social - para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as totalizações).”
Resposta análoga pode ser encontrada no próprio Lowe em sua obra A possibilidade da Metafísica:
“A minha perspectiva é que é efetivamente possível: ou seja, defendo que é possível obter respostas razoáveis a questões respeitantes à estrutura fundamental da realidade – questões mais fundamentais do que quaisquer das que se pode abordar competentemente através da ciência empírica. Mas não afirmo que a metafísica por si só pode, em geral, dizer-nos o que há. Ao invés – como abordagem preliminar – defendo que a metafísica, por si, apenas nos diz o que pode haver. Mas depois de a metafísica nos dizer isto, a experiência pode dizer-nos qual entre as diversas possibilidades metafísicas alternativas é plausivelmente verdadeira na realidade efetiva.”
Ou seja, é a filosofia que nos fornece diferentes possibilidades de concepções de mundo, mas é a prática que vai nos dizer qual dentre estas possibilidades é a mais plausível. Outra forma de colocar é, citando Mao “O critério da verdade não pode ser outro senão a prática social.”
Dessa forma então, é tanto necessário que nos aprofundamos em filosofia marxista para que exista o movimento revolucionário, quanto o movimento é necessário para que possamos desenvolver a filosofia marxista. Não conseguiremos avançar adequadamente sem que nos empenhamos em ambas as áreas. Termino, com mais uma citação, agora de Lênin:
“Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário.”
Referências citadas:
- Princípios Fundamentais da Filosofia - Introdução (Politzer)
- Princípios de Filosofia - Prefácio (Descartes)
- A natureza da metafísica ( E. J. Lowe )
- A Place for Marxism in Traditionalist Fiqh: Engaging the Indonesian Thinker Muhammad Al-Fayyadl (Sawyer Martin French)
- O Socialismo e a Religião (V. I. Lénine)
- Entre Marx, marxismo e marxismos: leituras da teoria de Marx (Ingo Elbe)
- O que é dialética (Leandro Konder)
- A possibilidade da metafísica ( E. J. Lowe )
- Sobre a Prática (Mao Zedong)