A luta de classes no Brasil e a legalização do aborto

Há hoje uma correlação de forças favorável ao arquivamento do PL 1904/24. Dediquemos nossos esforços a isolar ainda mais as forças reacionárias, permitindo que a derrota desse PL seja o ponto de partida para um novo estágio das lutas sociais em nosso país!

A luta de classes no Brasil e a legalização do aborto

Nota política da Comissão Política Nacional do PCBR

Nas últimas semanas, espalharam-se por todo o país uma onda de protestos contra o Projeto de Lei 1904/24. O movimento feminista, a esquerda socialista e demais setores militantes do movimento popular reagiram com rapidez à aprovação, pela Câmara dos Deputados, da tramitação do PL em regime de urgência. Designando o projeto como PL do Estupro, o movimento feminista deu centralidade em sua agitação ao impacto do projeto para as crianças vítimas de violações sexuais, que são parcela expressiva entre as pessoas que recorrem ao aborto legal após a 22ª de gestação. Essa denúncia, em especial, ao lado das elevadas penas propostas, mobilizou amplamente a opinião pública de forma contrária ao PL.

O episódio é bastante exemplificativo do papel desempenhado pelo social-liberalismo petista diante da retomada da ofensiva conservadora no parlamento. No primeiro momento, os governistas chegaram a indicar voto a favor da urgência do PL, apostando em uma tática de tornar o projeto “menos pior” posteriormente por meio de emendas - tática “conciliatória” que demonstrou a sua falha após a urgência ser aceita pelo plenário em apenas 23 segundos, por meio da condução a toque de caixa do Presidente da Câmara, Arthur Lira. A reação de indignação e revolta da opinião pública encontrou eco na disposição espontânea de amplos setores à luta e à denúncia dessa tentativa de aprofundar a criminalização do aborto em nosso país. Diante da repercussão e da ampla mobilização nas ruas de todo o país, Arthur Lira anunciou o adiamento para o próximo semestre da votação do tema pelo Plenário da Câmara dos Deputados, e até mesmo o governo petista passou a proferir críticas hesitantes ao PL. No entanto, apesar do adiamento do debate parlamentar sobre o tema, o fato de o PL não ter sido arquivado continua mobilizando atos públicos e debates nas redes sociais. 

Temos à nossa frente, portanto, uma situação política particularmente preocupante. Com o adiamento do debate parlamentar e conforme se aproximam as eleições municipais, a principal tendência é o arrefecimento dos protestos de rua, com o risco de o tema tornar a ser pautado em condições de menor mobilização e pressão social. Com isso, perde-se também a possibilidade de uma contraofensiva do movimento de massas, em uma rara oportunidade de isolamento e vacilação das forças parlamentares reacionárias. Nas próximas semanas, apesar dessa tendência ao refluxo, devemos trabalhar pela construção de atos massivos e ações diversas de agitação, em uma jornada de lutas que aponte a importância de barrar esse ataque aos direitos sexuais e reprodutivos e passar à contraofensiva. Ao mesmo tempo, nossa propaganda precisa lançar luz sobre os fundamentos dessa ofensiva das forças reacionárias, não apenas do ponto de vista da defesa da autonomia dos corpos, mas principalmente no que diz respeito ao significado de classe da criminalização do aborto em nosso país - uma formação social de capitalismo dependente, erguida sobre as bases de um modo de produção escravista colonial, onde os padrões da acumulação capitalista exigem a manutenção de um elevadíssimo exército industrial de reserva, uma massa de trabalhadores desempregados e subempregados que contribua para pressionar os salários ao nível mínimo possível. Nesse sentido, a luta pela legalização do aborto em nosso país é parte indissociável da luta pela emancipação humana em relação ao jugo do capital.

Por isso mesmo, apesar da importância em aproveitar esse momento para agitar e denunciar o absurdo número de crianças estupradas no país, as violências sexuais que atingem a ampla massa das mulheres trabalhadoras e as barreiras encontradas no acesso ao aborto legal, nossas palavras de ordem não podem se restringir a essa agitação, e devem apontar para uma luta pela descriminalização e legalização do aborto, garantindo o direito ao acolhimento, ao procedimento seguro e ao acompanhamento adequado de forma gratuita, pelo Estado, para todas pessoas que gestam.

Nesse momento, devemos evitar a tendência errônea a considerar os fenômenos da luta de classes de maneira fragmentária, compreendendo unilateralmente o significado geral dos movimentos espontâneos e organizados apenas a partir de seu conteúdo, de suas bandeiras etc. Não podemos considerar a luta iniciada contra o PL 1904, na atual conjuntura política, como uma luta parcial do movimento de mulheres por interesses particulares das mulheres. Esse ponto de vista seria errôneo de várias maneiras. Em primeiro lugar, porque a luta pelo direito ao aborto não é do interesse imediato apenas das mulheres, mas das pessoas que gestam em geral. Em segundo lugar, porque significaria renunciar à solidariedade de classe ativa, mobilizando também os homens trabalhadores para a luta. Por fim, significaria renunciar a compreender o que há de geral por trás de cada demanda parcial de cada grupo oprimido em particular, de que modo cada opressão particular desfigura e atinge também aqueles que não são diretamente oprimidos. No caso atual, seria também especialmente errôneo, pois significaria deixar de compreender o significado político geral desse movimento em nossa conjuntura: uma luta independente das massas, apesar das vacilações da esquerda liberal, contra os ataques orquestrados pelos representantes políticos da burguesia no parlamento.

Com sua luta contra o PL 1904, o movimento de mulheres colocou-se nesse momento como ponta-de-lança da luta de toda a classe trabalhadora e de todas as camadas oprimidas do povo contra os ataques das forças reacionárias. Depois de meses de fraseologia conciliadora da “frente ampla antifascista”, que perdeu a oportunidade de desbaratar o golpismo após o 8 de janeiro e permitiu à direita se reorganizar e recobrar a ofensiva; depois de meses de anistia, na prática, aos genocidas e golpistas burgueses e militares; a luta iniciada pelo movimento de mulheres foi a primeira ação enérgica por parte do movimento de massas que confrontou nas ruas, e não apenas nas palavras, a ofensiva dos fascistas-fundamentalistas parlamentares. Foi um passo significativo, rompendo a letargia que (excetuadas algumas greves de categorias do serviço público) marcou o período desde a posse de Lula e Alckmin.

Com isso, não desejamos minimizar as contradições e limites que ainda marcam o movimento de mulheres, em sua atual configuração. A despeito do impulso dado em cada localidade à luta, o movimento à escala nacional defrontou-se com dificuldades expressivas para buscar uma tática unificada, desde questões de calendário até mesmo divergências sobre métodos e palavras de ordem. Apesar de ter-se movido prontamente contra a criminalização do aborto, os laços políticos que ligam a maioria das direções do movimento à política governista impedem um combate consequente a partir de uma posição de independência política, que confronte as vacilações do governo. Sabemos o quanto essas vacilações podem colocar em risco nosso movimento, uma vez que no segundo semestre, ao mesmo tempo em que a Câmara retomará o debate sobre o PL, se aproximarão as eleições municipais. A própria direita parlamentar conta a seu favor com o oportunismo disseminado entre as candidaturas ditas “de esquerda”, que evitarão a todo custo comprometer-se publicamente com a defesa do direito ao aborto seguro e gratuito. Sem um combate independente, o movimento de massas se apoiará em aliados instáveis e pouco confiáveis, dispostos a sacrificar os interesses das mulheres trabalhadoras e de todas pessoas que gestam em troca de uns tantos votos.

Por todo o exposto, é bastante compreensível que outras palavras de ordem políticas busquem se combinar à palavra de ordem pelo direito ao aborto seguro e gratuito. Sob influência da memória dos atos feministas contra o presidente golpista da Câmara, Eduardo Cunha, (o “Fora Cunha”), muitos setores do movimento de mulheres erguem agora a palavra de ordem pelo “Fora Lira”. Essa memória, vale destacar, muitas vezes exagera o sucesso imediato daquele movimento e as condições da derrubada de Cunha. A agitação pelo “Fora Lira” pode parecer, à primeira vista, demarcar uma fronteira que a política governista é incapaz de atravessar de modo consequente, por todos os laços que unem os interesses burgueses manifestos tanto na política do governo quanto na política da Câmara, por todos compromissos entre Lula e Lira. No entanto, essa primeira impressão se desfaz quando levamos em conta, por um lado, de que modo essa palavra de ordem busca sintetizar o ponto de vista do social-liberalismo, que ao mesmo tempo em que põe em movimento a política econômica da burguesia, busca responsabilizar exclusivamente a “correlação de forças no Congresso” pelas suas capitulações e pelos ataques contra a classe trabalhadora. Por outro lado, assim como o “Fora Múcio” e tantas outras reivindicações das bases governistas, o “Fora Lira” não passa de um pio desejo, que nem o governo levará a sério, nem mesmo tais bases esperam que se realize. Trata-se, muito mais, de buscar constranger Lira a abandonar a defesa do PL 1904, permitindo que este saia de pauta sob pena de Lira se desgastar politicamente.

Consideramos profundamente equivocado, no entanto, tratar de tal modo as palavras de ordem, menosprezando o impacto que a derrota dessa agitação, sua não realização, pode ter sobre o estado de ânimo do movimento. Além disso, essa palavra de ordem também apresenta o risco de capturar e secundarizar a agitação pela legalização do aborto, fazendo com que o movimento deixe de acumular forças, ao longo de próximo período, para confrontar o PL 1904, dissipando nosso foco e nossas atenções. No fim das contas, mesmo a eventual derrubada de Arthur Lira não faria avançar um centímetro a luta pela legalização do aborto, nem poria freio à ofensiva parlamentar fascista ou à política burguesa do governo Lula-Alckimin.

Assim, nos próximos meses, nossa agitação e nossa propaganda deverão redobrar os esforços na massificação da luta contra a criminalização e pela legalização do aborto. Nesse contexto, é importante evidenciarmos também o número irrisório de serviços públicos de referência para o aborto legal existentes no país e sua correlação com os baixos investimentos públicos na saúde, com a manutenção do Teto dos Gastos de Haddad e com a ameaça aos pisos constitucionais da saúde. Hoje, apenas 200, dos mais de 5.500 municípios do Brasil, ofertam o serviço de referência no SUS - ou seja, apenas 3,6% das cidades têm hospitais que realizam o aborto legal, sendo que os mesmos estão concentrados majoritariamente na região Sudeste e nas capitais, dificultando ainda mais o acesso ao direito ao aborto. Isso, inclusive, contribuir para que um terço (⅓) dos procedimentos sejam realizados após 22 semanas de gestação - precisamente as situações que o PL visa criminalizar ainda mais duramente.

Há hoje uma correlação de forças favorável ao arquivamento desse Projeto de Lei. Dediquemos nossos esforços a isolar ainda mais as forças reacionárias, permitindo que a derrota desse PL seja o ponto de partida para um novo estágio das lutas sociais em nosso país! Teremos tanto mais sucesso nessa luta quanto mais demonstrarmos que apenas a luta de massas organizada conquistará as forças para a derrota desse PL, forçando os governistas e os liberais a suspenderem momentaneamente sua unidade com os reacionários - ou demonstrando nitidamente sua disposição à unidade com a extrema-direita contra a legalização do aborto.

  • Pelo arquivamento do PL 1904/2024!
  • Pela ampliação dos serviços de referência para o aborto legal!
  • Pelo direito ao aborto seguro e gratuito!

Comissão Política Nacional
Comitê Central
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR)