'A luta anticapacistista é uma luta anticapitalista' (D.V.)

Pessoas com deficiência ainda são capazes de adentrar nossas fileiras, no entanto, o seu percurso interno é tão tortuoso quanto sua entrada, sendo tarefa de seu núcleo incluí-la com pouca ou nenhuma instrução sobre, o que leva a micro agressões que poderiam ser evitadas

'A luta anticapacistista é uma luta anticapitalista' (D.V.)
NADIA_BORMOTOVA/GETTY IMAGES

Por D.V. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Ao adentrar nas fileiras da UJC senti diversas falhas na inclusão de camaradas que não estejam no perfil de homem cishet, classe média e branco, etc. Desde a realização de tarefas que requeriam uma alta demanda de tempo, a expectativa de conhecimento prévio sobre como tocar diversas tarefas, além de locais pouco, quando muito, adaptados a diferentes necessidades. A partir dessa visão interna me surgiu a questão de “Para quem é o partido?”.

Nessa tribuna focarei na inclusão de camaradas com deficiência, mas tocarei em outras minorias existentes, reconhecendo que há sempre a interseccionalidade nas nossas dores e necessidades. Espero que ela incentive o debate sobre quem consegue entrar e se manter no nosso espaço partidário, com perguntas iniciais sobre e também abarcando um pouco sobre as possibilidades de políticas e estratégias internas e externas sobre a temática.

Quem é a pessoa com deficiência no Brasil?

A população com deficiência (PCD) representa 25% da população brasileira, em sua maioria pessoas idosas, tendo o triplo da taxa de analfabetismo em relação a população geral, e dos quais 30% não conseguiram entrar no mercado de trabalho, apesar de que muitas pessoas se tornam PCDs como consequência de condições de trabalho insalubres, que podem levar até mesmo uma relação geracional de deficiência como ocorre na exposição a exposição a agrotóxicos e outros itens que afetem a gravidez.

No entanto, isso é apenas um resumo de dados, corroborando com  uma visão biomédica, focada na lesão e que ignora os fatores psicológicos e sociais que compõe o construto da deficiência. Essa visão tem como consequência a individualização da condição, isto é, não é culpa do ambiente de trabalho, mas sim do trabalhador que foi descuidado, não é obrigação da empresa cuidar dessas consequência, afinal, é algo crônico, etc. Apesar da legislação ser embasada no modelo biopsicossocial que vê a deficiência em relação ao seu todo, a realidade e sua aplicação é muito mais focada no aspecto biológico, como forma de justificativa de sua impossibilidade de mudança e avanço, além de criar limiares de maior controle quando necessário, um exemplo são as políticas o Canadá, que permitem que qualquer pessoa com uma condição crônica, leia-se PCD, pode realizar o pedido de eutanásia, apesar de tal extremo não ocorrer no Brasil, nossas políticas atuais não se diferenciam tanto de uma morte em vida.

Isso se deve pelo fato que a deficiência é um construto social, possuindo um recorte de interesse do capital, afinal, não há lucro em ter um trabalhador que requeira adaptações que aumentam o seu “gasto”, ao mesmo tempo que ele não produzirá na intensidade necessária para o lucro, e aqueles que possuem essas dificuldades mas produzem mais do que gastam, são vistos como vitimistas e que devem “superar sozinhos” suas dificuldades. Assim, cria-se uma dicotomia até mesmo no processo de inclusão e acessibilidade, onde há um grupo onde nenhuma ajuda resolverá, restando-lhes a morte, e aquele que não necessita de nenhuma adaptação, afinal, não é uma condição tão grave. Isso leva a completa absolvição da mudança social visando a inclusão, individualizando as necessidades e culpando aqueles que não são “esforçados o suficiente”, reverberando não apenas na população PCD mas em qualquer indivíduo fora do padrão para a exploração do trabalho em seu molde atual.

As políticas públicas são privilégios?

Ao tentarmos batalhar contra tais ideias através de políticas públicas a nossa primeira barreira é o capacitismo, o qual é um produto do social e definido como o ato de discriminação com base nas (in)capacidade de outros indivíduos, o que impacta principalmente PCDs, mas reverbera em mulheres quando lhe são negados trabalho por “não terem a mesma capacidade de homens”, em pessoas negras ao negarem a anestesia plena por “não sentirem tanta dor”, entre outras preconcepções dos corpos e suas capacidades.

O capacitismo também vem associado com a ideia de que políticas públicas são privilégios de PCDs, desde a redução do horário de trabalho, as cotas e adaptações de ambientes, os colocando como inimigos da classe trabalhadora. Isso é uma forte consequência da direita ter o monopólio das políticas e os debates que a circundam, tanto a nível nacional quanto internacional, incluindo a presença de movimentos eugenistas, comumente voltados à “cura” das condições de deficiência, debates sobre a eutanásia e outras questões que apenas reverberam um desejo de extermínio da população com deficiência. Devido a esse cenário, os movimentos de esquerda independentes de PCDs, pois há pouca ou nenhuma organização de esquerda partidária no debate, tornam-se apenas uma linha de defesa, por vezes trazendo pontos de inclusão mas dificilmente abarcam a relação com o capital e a criação de uma política revolucionária e inclusiva, e quando ocorre, os impedimentos das condições dos indivíduos torna o processo uma constante vivência de traumas, e as limitações das próprias condições tornam os movimentos insustentáveis a longo prazo.

O partido deve organizar a luta

O partido mantém muito dessa dissociação de lutas identitárias, as estratégias voltadas para pautas minoritárias ficam restritas aos militantes que fazem parte da minoria, revivenciando suas violências diariamente em suas lutas e muitas vezes tendo que realizar tarefas em outros espaços do complexo, demonstrando uma hierarquia silenciosa presente nas nossas linhas. Tal formação leva a uma alienação das temáticas e da humanização como um todo, onde lutamos apenas pelo proletário “padrão”, que não inclui as mães, mulheres, pessoas negras e muito menos o público que nem mesmo tem a possibilidade de entrar no mercado de trabalho, como ocorre com a população com deficiência.

Tais visões permeiam todos os espaços do nosso complexo partidário, tanto no nível interno quanto externo. Iniciando pela nível interno, considero que um dos maiores sintomas é não termos um levantamento de tal público e suas necessidades, como faremos um congresso para todes quando não sabemos se teremos militantes que requererão alguma adaptação dos espaços? Será que isso é algo que está sendo debatido na seleção do local? Será que o caminho entre a estadia e o local do congresso será acessível para todes? Será que teremos um espaço para os camaradas que levaram seus filhos, aos camaradas que necessitarão de um espaço para regulação sensorial, será que a camaradagem estará presente para notar quando outro camarada não está se sentindo bem e poderá não apenas pedir ajuda, mas também ser a pessoa que ajuda ativamente nesse momento?

Todas essas questões são nada mais que um sintoma de uma política que não leva em consideração as pessoas fora do padrão, não de forma consciente mas pela dificuldade de compreender e considerá-las como pessoas que estão em nossas fileiras, até mesmo havendo a dificuldade de ser convidativa as mesmas. O nosso processo de aproximação não possui materiais adaptados, desenvolvido de forma a esperar que a pessoa que está entrando em contato com as nossas fileiras seja plenamente capaz de levantar o debate sobre as suas próprias violências, o que não apenas coloca o peso nela de trazer suas dificuldades, traumas e barreiras como minoria, correndo o risco de sofrer uma violência exatamente por não ser uma política fomentada internamente, mas também realizando um recorte daqueles que estão se iniciando no meio político revolucionário e sentem-se apenas perdidos frente a textos que não são escritos para tais grupos.

Apesar dessas barreiras, pessoas com deficiência ainda são capazes de adentrar nossas fileiras, no entanto, o seu percurso interno é tão tortuoso quanto sua entrada, sendo tarefa de seu núcleo incluí-la com pouca ou nenhuma instrução sobre, o que leva a micro agressões que poderiam ser evitadas, além de muitas vezes esperarem de tais militantes o mesmo nível de produção de pessoas sem deficiência, ou pior, as diminuindo e infantilizando devido a sua condição. Assim restando poucas opções para a PCD, ou ela continua no partido a revelia das microagressões, as vezes tomando para si o espaço de formar camaradas sobre sua condição na expectativa de ser minimamente respeitada e incluída, ou sai da nossa organização com uma profunda desesperança sobre a própria existência dentro ou fora do sistema capitalista.

Essas práticas levam ao cenário atual de nossas linhas que é em sua maioria homens brancos cis, sem deficiência, que não necessitam cuidar da casa ou de terceiros, provavelmente com algum background em marxismo-leninismo. Este mesmo recorte que criticamos inicialmente, e agora questiono, será que faremos algo nesse momento de reconstrução para evitar a continuidade dessa prática? Ou será que criaremos ferramentas que leve a uma formação contínua de toda a nossa militância e que essas pautas não estejam restritas aos poucos militantes que se enquadram nelas?

Política externa sobre deficiência

O segundo ponto são as nossas políticas e estratégias externas visando a população com deficiência e outras minorias. Nas últimas resoluções do PCB não são mencionadas pessoas com deficiência, nas resoluções da UJC são mencionadas cerca de 27 vezes, iniciando-se ao assumir uma dificuldade em relação a essa temática e outras que abarcam minorias, finalizando com um “caso exista”. Isso já demonstra um profundo descaso com essa pautas, na qual nem conseguimos reconhecer a existência de movimentos ou iniciar o debate político nessa área, em conjunto com a de movimento indígena e meio ambiente, presentes no mesmo paragrafo.

Das outras 26 menções, a sua maioria diz sobre a criação e apoio a políticas públicas, em sua maioria para cotas em trabalho e universidades. É isso que é ser revolucionário? Não deveríamos estar pautando como o modelo no geral é biomédico, restrito a pessoas com capital para realizá-lo? Que para o acesso as cotas você precisa ser avaliado para saber se é “deficiente” ou “Negro” o suficiente? Essa percepção não é uma exata oposição do ensino popular? Ou agora é aceitável que haja um filtro populacional? Isso não é uma defesa pelo fim das cotas ou o nosso não apoio as mesmas, pois as considero essenciais na nossa realidade atual, mas levanto a reflexão do quão rebaixado estão nossas resoluções ao ponto de serem indiferenciáveis em relação a um programa social-democrata, boa parte dos pontos ali postos já são leis ou projeto de leis existentes, não é algo novo muito menos revolucionário.

E onde encontra-se essa revolução? Gostaria de pontuar algumas questões que percebo a partir de minhas próprias vivências e estudos na área. Inicialmente, como movimento comunista, necessitamos repensar o formato do trabalho para essa população. Atualmente, a existência de cotas em empresas tendem a vir atreladas a desconto de impostos nas mesmas, assim, elas contratam PCDs, os retiram dos espaços presenciais como forma de adaptação, leia-se não querem gastar com reforma do local de trabalho, e muitas vezes não os colocam em funções específicas, levando a criação de funcionários fantasmas. Esse formato de prática é comum nos mais diversos espaços, levando ao benefício das empresas em não serem processadas por não seguirem as leis de cotas, ao mesmo tempo que isolam ainda mais essa população.

Em relação a espaços públicos e governamentais, tais pautas são esquecidas ou quando lembradas não há acúmulos suficiente para implementá-las na prática ou é visto como um gasto a mais para abarcar uma população tão “pequena”. O cultural pesa fortemente nesses espaços, onde espera-se que pessoas com deficiência não habitem cidades, escolas, hospitais, ou caso estejam lá serão pouquíssimas, assim requerendo apenas um ajudante para guiá-las nesses espaços. É necessário que demonstraremos que essa população merece direitos plenos, que a sua independência não é apenas para trabalhar mas também para viver a cidade, e que as políticas não podem estar restritas a existência ou não dessas pessoas, mas sim o direito básico de ocupação dos espaços.

A ocupação da cidade vem fortemente atrelada a teoria do design universal, que busca demonstrar que toda e qualquer política de inclusão não beneficia apenas a população-alvo, consideremos que a nossa militância como um todo saiba falar libras, isso não apenas torna a nossa militância mais inclusiva mas pode ser uma ferramenta de comunicação em atos e outros locais onde a comunicação verbal não é o formato mais efetivo de comunicação. E essa atuação não beneficia apenas o público com baixa audição, mas também abarcará pessoas não-verbais, com impedimentos de fala, entre outras condições. Nota-se que a ocupação da cidade não é apenas formada por escolhas arquitetônicas mas engloba questões sociais, conversas diretas, criação de redes de apoio, entre outras que facilitam a vida de pessoas autistas, TDAH, mães, pessoas LGBT.

Não devemos apenas teorizar e criticar sobre o modelo a nível nacional ou de políticas públicas, mas inserir como cultura de nossa organização, percebendo a militância como um espaço de experimentação de uma sociedade comunista. Isso permitirá a possibilidade dos mais diversos avanços, de compreensão da relação interseccional sobre esse ponto, onde poderemos debater questões praticamente inexistentes como a vivência de PCDs negres, mulheres, LGBT, etc.

Considero que a partir dessas pontuações iniciaremos o processo de refletir sobre o modelo atual de sobrevivência dessa população e desenvolvermos um pensamento revolucionário no campo, retomando a nossa posição de um partido de vanguarda e que trabalha pela emancipação de toda a população proletária.

“A diversidade, portanto, não se contrapõe à luta de classes, mas a enriquece.” Ana Souza Pereira em “A vanguarda marxista nos estudos sobre a deficiência”