'A ingenuidade dos comunistas com a computação (Parte 1): O aplicativo do partido' (Camarada Pedro)

Subestimam muito a capacidade de influência de massas do jornal impresso e superestimam as redes sociais. O erro dos ingênuos também se estende para o processo de convencimento político, como se apenas a divulgação massiva de argumentos lógicos e coerentes fosse o suficiente para o convencimento.

'A ingenuidade dos comunistas com a computação (Parte 1): O aplicativo do partido' (Camarada Pedro)
"Os camaradas não consideram que o convencimento político é um processo tanto do âmbito da lógica quanto das emoções, sendo necessário que o militante crie um vínculo emotivo com sua base no ambiente de trabalho, estudo, moradia ou qualquer outro ambiente de luta. Esse processo de convencimento político significa necessariamente um processo duplo de conquista da base."

Por Camarada Pedro para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A maioria dos militantes da nossa organização tem muito pouco, senão nenhum conhecimento técnico na área de computação. Isso faz surgir ilusões perigosas no nosso movimento e que podem ser decisivas na nossa luta revolucionária. De fato, a maioria dos nossos militantes ou não possuem ensino superior e técnico ou possuem na área de humanidades, o que faz a computação parecer esse lugar nebuloso, um meio por onde  fazer agitação e propaganda e nos comunicar sem conhecer nada dos processos que acontecem atrás das telas. Porém, como o próprio Marx nos explica no volume um do Capital, os avanços tecnológicos estão sujeitos às condições históricas concretas em que ela é aplicada, de forma que no modo de produção capitalista, a maquinaria sempre serve, em última instância, à reprodução do capitalismo. O desconhecimento da técnica e a apropriação dela pelo capitalismo já seriam motivos suficientes para ter-se muita cautela quando discute-se esse assunto. Desse modo, trago meus apontamentos do que acredito que sejam grandes erros de compreensão que nossos militantes possuem sobre o papel da computação na Revolução e, num momento futuro, quais as suas possibilidades de uso revolucionário.

O aplicativo do partido 

Um debate que encontra-se à moda é aquele sobre a ética referente aos avanços da inteligência artificial. Faz parte do senso-comum a ideia de estarmos sendo vigiados pelas grandes empresas, da sua capacidade de captar nossos dados e utilizá-los com a intenção de nos manipular. Assim, grandes empresas capitalistas da área de computação, como Google, Apple e Meta, utilizam de inteligência artificial para, por exemplo, encontrar qual é a melhor forma de te convencer politicamente. Acredito que não poucos camaradas já se depararam com vídeos de conteúdo político reacionário sendo recomendados nas suas timelines. Para quem se depara com essa problemática pela primeira vez pode chegar a uma conclusão muito simples: vamos fazer nosso próprio aplicativo! Um exemplo desse tipo de pensamento está presente na tribuna “Uma plataforma de comunicação revolucionária mais independente” do camarada Mateus C.:

“Nos tempos atuais, o partido enfrenta novos desafios e obstáculos para difundir as suas ideias e mobilizar as massas. Um desses desafios é a dominação dos meios de comunicação pelos grandes monopólios capitalistas, que controlam as redes sociais e os algoritmos que determinam o que as pessoas veem e ouvem. Esses monopólios usam o seu poder para manipular a opinião pública, silenciar as vozes dissidentes e censurar os conteúdos que contrariam os seus interesses burgueses.

[...]

Por isso, o partido precisa criar o seu próprio canal de comunicação, que seja independente, democrático e popular. Um canal que permita ao partido divulgar as suas propostas, denunciar as injustiças, debater os problemas da atualidade e convocar as ações de luta. Que possa alcançar milhares de pessoas, especialmente os jovens, os estudantes, os trabalhadores e os movimentos sociais direta ou indiretamente.

Esse canal deverá ser um aplicativo, distribuído à toda militância. O aplicativo do partido será uma ferramenta poderosa para a educação política, a organização partidária e a agitação revolucionária, e, mais importante, de forma mais independente dos monopólios de comunicação burguesa. O aplicativo permitirá aos usuários acessar os conteúdos do partido, como o seu programa, a sua revista ou jornal, os seus boletins, artes e os seus vídeos, como em qualquer rede social. Além disso, o aplicativo permitirá aos usuários compartilhar esses conteúdos nas redes sociais convencionais, ampliando assim o seu alcance e a sua repercussão. Isso diminuiria a relevância da existência centralizada de contas do partido nas mídias sociais.”

Para entendermos melhor os perigos de criarmos nosso próprio aplicativo, precisamos conversar um pouco sobre como um computador funciona. Primeiramente, a máquina em si, o sistema físico capaz de realizar contas, é o hardware do computador, ele é literalmente a parte física do celular, a tela, a câmera, o microfone, a memória, o processador etc. Porém, o hardware sozinho é inútil, uma vez que o computador sozinho não consegue realizar nada de diferente de um conjunto de instruções, que chamamos de assembly. O conjunto de comandos funciona parecido com uma calculadora, ele apenas realiza somas, subtrações, altera os dados na memória etc. Para o computador funcionar da forma que desejamos, é necessário programar ele, escrever esse conjunto de comandos exatamente na ordem certa de forma que o computador execute o que esperamos. O conjunto de instruções que o computador precisa realizar para ele conseguir, por exemplo, tirar foto, tocar música, mandar mensagens, fazer ligações etc. é o que chamamos de software. Existem várias formas diferentes de escrever os comandos que o computador executa, chamamos cada uma dessas formas de linguagem de programação, sendo a implementação do software em uma linguagem de programação específica o que chamamos de código-fonte

O conjunto de instruções já prontos, o software, é uma mercadoria, seu valor de uso é a capacidade de fazer o computador realizar algo útil e seu valor é o trabalho necessário para fazer o software. De fato, quando pensamos nas famosas BigTechs, as grandes empresas de tecnologia que dominam o setor, todas elas trabalham com a produção de softwares, inclusive algumas empresas têm nesse ramo produtivo sua principal atividade laboral, como a Google e a Meta, diferente de outras empresas como a Apple e a Samsung, que trabalham tanto com software quanto com hardware.

Mas um tipo específico de software nos é especialmente importante: o sistema operacional. O hardware não passa de um sistema eletroeletrônico, ele é composto puramente de fios e componentes que obedecem a leis físicas muito bem conhecidas pela ciência. A capacidade de transformar esse hardware em algo útil é através de programas, mas conseguir escrever um programa desde o sistema físico e seu funcionamento binário até o WhatsApp e outros programas complexos envolveria muito trabalho desnecessário porque muitos comandos são repetidos por programas diferentes; seria como, por exemplo, fazer 1 Kg de massa de pão para assar apenas 100 gramas. Com a intenção de facilitar a escrita de softwares surge esse software especial, o sistema operacional. Ele constitui-se de todos os programas comuns que são usados frequentemente de forma a criar um ambiente mais fácil de produzir outros softwares, como a capacidade de escrever palavras na tela. Existem diferentes sistemas operacionais, como Windows da Microsoft e o Android do Google. O sistema operacional usado nos nossos celulares é sempre ou o Android ou o IOS da Apple, esses softwares são proprietários e não existem substitutos entre os softwares livres. Isso significa que nós não conhecemos o funcionamento interno desses programas, diferente dos livres que possuem seu código-fonte aberto para todos que desejam o inspecionar. 

Para aqueles que conseguiram sobreviver pelo “computês” até agora vão entender melhor a razão de não fazermos um aplicativo nosso. No processo de produção desse software que seria o nosso aplicativo de agitação e propaganda em massa, o nosso próprio aplicativo dependeria de sistemas operacionais desenvolvidos e sob controle do nosso inimigo de classe sem nossa capacidade de inspeção. A capacidade dos nossos militantes de escreverem nosso próprio sistema operacional em computadores-celulares é inexistente porque partes-chave do próprio hardware são escondidas pelos fabricantes como propriedade intelectual. Além disso, existe a possibilidade de instalação de softwares no celular sem a permissão dessas grandes corporações, sendo apenas necessário habilitar a instalação de apps desconhecidos nas configurações do dispositivo. Contudo, a própria existência da possibilidade de habilitar instalações desconhecidas já nos mostra que dentro do sistema operacional roda uma série de protocolos de segurança com capacidade de barrar qualquer instalação sem certificação. Então, novamente nos encontramos no mesmo problema de antes, isto é, na boa vontade de grandes monopólios capitalistas de não decidir tirar a funcionalidade de desabilitação dessa parte da segurança e destruir a capacidade de instalação do nosso aplicativo. Sem falar da dificuldade, absurda e desnecessária, de ensinar às massas proletárias brasileiras, sem nenhum letramento digital, a desabilitar algo tão específico nas configurações (quem já ajudou um idoso com o ZapZap sabe do que eu estou falando) e convencê-las a fazer isso desabilitando parte da segurança do seu celular, algo que é oposto ao senso-comum.

Isso implica que qualquer aplicativo nosso precisaria, por exemplo, ser distribuído pelas lojas de software pertencentes a essas grandes corporações, como a Play Store da Google, o que nos deixa sujeitos à boa vontade do inimigo não tirar nosso aplicativo do ar, algo tão fácil quanto foi pro Instagram tirar do ar a conta do camarada Gaiofato. Alguns camaradas podem até argumentar que, assim como fazemos com nossas contas partidárias nas grandes redes sociais, podemos utilizar desses espaços taticamente enquanto formos pequenos e sem perigo à ordem burguesa. Agora imaginem o cenário em que implementamos a proposta sob esse argumento: começamos com um trabalho humano grande, que poderia ser utilizado em outras tarefas, para fazer nosso aplicativo e faremos outro para convencer a maioria da população a usar ele; esse aplicativo, distribuído pela própria Apple Store ou Play Store, será nosso principal meio de agitação e propaganda até crescer o suficiente e ele cair do ar; ficaremos sem nosso principal meio de agitação e propaganda até nossos camaradas fazerem os ajustes necessários para a instalação por fora das lojas de software, o que abriria um novo período de crescimento nosso, já mais dificultado, até nosso inimigo decidir por proibir a instalação de software sem certificação. Todo o dinheiro e trabalho humano que colocamos na criação do nosso aplicativo são jogados no lixo e não haveria nada que poderíamos fazer.

É claro que sempre existe a possibilidade de quebrar a segurança de um sistema operacional e isso ocorre com certa frequência, apesar de cada vez mais difícil à medida que a área de segurança computacional cresce, e precisa ser refeito toda vez que o nosso inimigo descobre a sua vulnerabilidade e a corrige. Depois disso, é necessário recomeçar todo o trabalho do início. A conclusão é que não existe a possibilidade prática dos nossos militantes conseguirem quebrar a segurança dos sistemas operacionais. O que falta de possibilidade é ficar na esperança de alguém, em algum lugar do mundo num futuro que nós não sabemos, quebrar a segurança e nós podermos colocar nosso aplicativo no ar para ser instalado de novo. É claro, nessa situação, todas as dificuldades de acessibilidade pelo processo chato e difícil de quebra da segurança já deixaria nosso aplicativo fora do escopo da maioria dos brasileiros.

Todas essas dificuldades de segurança que temos com a construção do nosso próprio aplicativo reside, no final das contas, no fato de nós não sermos donos de toda a infraestrutura necessária para fazer o aplicativo ir ao ar, pelo contrário, eles estão nas mãos dos nossos inimigos de classe. Para fazer uma analogia que talvez deixe mais claro as coisas, seria como nós criarmos um jornal mas depender de uma empresa capitalista para o imprimir e o distribuir pelo Brasil. Nessa situação, obviamente existe um grave risco e uma grande vulnerabilidade tanto da nossa organização quanto da nossa capacidade de fazer agitação e propaganda. 

A capacidade das redes sociais de disseminar informação pode fazer parecer para alguns comunistas que o melhor meio de agitação e propaganda no século XXI seja esse, mas esses camaradas desconsideram o contexto histórico em que essa tecnologia se insere e a que classe ela está subordinada. Camaradas como o João Carvalho, que apesar de ser de outra organização é acompanhado por muito camaradas, dizem de forma ingênua que Lênin seria tiktoker devido ao alcance dessa rede social, mas eles nunca param para pensar que quando o Lênin falava do jornal ele já partia do pressuposto que nós somos donos da capacidade de impressão e distribuição do jornal. Acho difícil que Lênin deixaria passar despercebido tamanha brecha de segurança dentro da nossa organização. É claro que isso não significa que não devemos ter nenhuma presença nas redes sociais, mas é necessário ter claro que elas são um meio auxiliar de agitação e propaganda e que o jornal impresso precisa ser o meio principal.

Os camaradas subestimam muito a capacidade de influência de massas do jornal impresso e superestimam as redes sociais. O erro de análise dos ingênuos também se estende para o processo de convencimento político, como se apenas a divulgação massiva de argumentos lógicos e coerentes fosse o suficiente para o convencimento. Os camaradas não consideram que o convencimento político é um processo tanto do âmbito da lógica quanto das emoções, sendo necessário que o militante crie um vínculo emotivo com sua base no ambiente de trabalho, estudo, moradia ou qualquer outro ambiente de luta. Esse processo de convencimento político significa necessariamente um processo duplo de conquista da base. Por exemplo, a capacidade do trabalhador de ver no seu sindicato uma organização que ele pode confiar é parte essencial do convencimento político desse trabalhador tanto quanto uma linha política coerente. Justamente a capacidade de divulgação massiva de informações através da internet leva também à impessoalidade das informações que chegam, diferente do jornal, que implica a venda com o olho-no-olho, a presença física do militante junto da sua base. A conclusão é que, mesmo que conseguíssemos superar todos os obstáculos técnicos para implementar nosso próprio aplicativo de forma segura, a agitação e propaganda online nunca vai conseguir mobilizar corações e mentes o suficiente para a revolução brasileira.