'A incapacidade de lutar pela libertação negra significa uma derrota de todos os trabalhadores' (Laura Leão)
Se apagamos a participação negra no movimento comunista e não planejamos inserção dela na mesma, criamos uma narrativa de oposição entre a luta negra e a luta socialista.
Por Laura Leão para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Por vezes, dentro do imaginário comunista eurocêntrico que foi e é perpetuado dentro de trabalhos intelectuais marxistas e até nos Partidos Comunistas, observamos, um apagamento dos camaradas negros no que tange o desenvolvimento e construção do socialismo internacionalmente.
A visão de que o comunismo é exclusivamente branco e europeu omite lutas históricas e atuais dentro de países não brancos como Vietnã, África do Sul, Índia, China, Coreia, Palestina, Argélia etc. Para contribuir com a reflexão, Eldridge Cleaver, membro militante do Partido dos Panteras Negras:
Com a fundação da República Popular Democrática da Coreia, em 1948, e da República Popular da China, em 1949, algo novo foi introduzido no marxismo-leninismo, e ele deixou de ser um fenômeno estreito, exclusivamente europeu. O camarada Kim Il Sung e o camarada Mao Tsé-Tung aplicaram os princípios clássicos do marxismo leninismo às condições de seus próprios países, e assim transformaram a ideologia em algo útil para o seu povo. Mas eles rejeitaram aquela parte da análise que não lhes era benéfica e que só tinha relação com o bem-estar da Europa.
Dada a história racista dos Estados Unidos, é muito difícil para pessoas pretas denominarem confortavelmente a si mesmas marxistas-leninistas, ou qualquer outra coisa que tire seu nome de pessoas brancas. É como rezar para Jesus, um homem branco. Devemos enfatizar o fato de que Marx e Lênin não inventaram o socialismo. Eles apenas adicionaram suas contribuições, enriqueceram a doutrina, assim como muitos outros fizeram antes e depois deles. E devemos lembrar que Marx e Lênin não organizaram o Partido Pantera Negra. Huey P. Newton e Bobby Seale o fizeram. [1]
Outra problemática é que muitos marxistas, de forma errônea, não refletem sobre a relação intrínseca entre as lutas de libertação nacional e seu conteúdo revolucionário. São fatos: não existe contradição entre lutas nacionais e lutas proletárias. A libertação dessas nações, a derrubada do imperialismo e a conquista do socialismo são interdependentes, ou seja, cada um desses elementos requer os demais. Briggs, um intelectual negro marxista estadunidense produziu uma síntese dentro de um de seus trabalhos entre a identidade africana e o internacionalismo leninista. Defendia a ideia de um estado socialista negro independente no interior de uma comunidade socialista universalista mais ampla. A aliança anti-imperialista com a classe trabalhadora, com trabalhadores negros liderando trabalhadores brancos avançados colocaria em prática a revolução. Nas palavras do militante:
“o camarada luta pela libertação negra, comprometido com a “consciência negra” e com uma política que prioriza a questão racial, que recorre a Lênin e à experiência soviética como subsídios para a luta negra por libertação”
Além disso, o apagamento histórico da luta negra e socialista está intrinsecamente ligado ao racismo e ao anticomunismo, como assim descreve a autora Jodi Dean:
“O racismo e o anticomunismo continuam trabalhando para expulsar esse corpus de conhecimento e evitar que ele seja registrado em toda a sua verdade e a sua complexidade. Cada um deles opera com caricaturas de raça e de comunismo, como se estes fossem unidades em vez de multiplicidades heterogêneas. Camaradas negros são descobertos e depois esquecidos, presentes mais nas gavetas disciplinares da academia que na estrutura viva de um partido.”[2]
Para além do apagamento, é evitado se pensar na luta anti racista e anti capitalista como se não houvesse um entrelaçamento dialético entre elas: a narrativa de oposição entre essa lutas só é possível diante do apagamento histórico da participação ativa da população negra na tradição radical comunista e da atuação do Partido Comunista junto a população negra. Como descreve Dean: como se estes fossem unidades em vez de multiplicidades heterogêneas. As lutas se veem separadas diante do apagamento mas também diante da ineficiência do Partido Comunista de se inserir em espaços de sujeitos não brancos e de não elevar a “questão negra” ao centro de sua atividade organizativa. Se apagamos a participação negra no movimento comunista e não planejamos inserção dela na mesma, criamos uma narrativa de oposição entre a luta negra e a luta socialista.
É importante a reflexão, para além da falta de prioridade da luta negra em nossas fileiras, refletir sobre a maneira que reconhecemos os camaradas negros internamente no Partido. Diversos camaradas negros já relataram não se sentirem incluídos e confortáveis nas tarefas de militância dentro da lógica branca e pequeno burguesa que é perpetuada em nosso Partido.
No contexto estadunidense a autora Jodi Dean desenvolve suspeitas sobre o que seria o imaginário branco e negro-excludente no que se refere ao sujeito “camarada”:
a primeira assume que os negros não são ou não podem ser camaradas uns dos outros; a segunda parte do pressuposto de que os negros não são ou não podem ser camaradas de pessoas brancas. A primeira suspeita pressupõe que a política daqueles atribuídos à mesma categoria racial é determinada pelas características compartilhadas da categoria. A suposição de parentesco racial – irmãos e irmãs – ocupa a totalidade do imaginário político, como se não houvesse divisões políticas entre aqueles que pertencem à mesma categoria racial. Obviamente, isso está errado. Houve e continua a haver diferenças políticas entre pessoas negras, assim como há entre pessoas de qualquer identidade baseada em etnia, sexualidade ou gênero. Questões de separatismo e assimilação, de aceitação ou rejeição do capitalismo e de estratégias e táticas de libertação mal arranham a superfície das questões políticas que dividem as pessoas a quem se atribui uma mesma identidade racial.[3]
Se o Partido comunista pretende alterar problemas que estão na estrutura do capitalismo e emancipar o homem, não podemos cometer o erro de subordinar a luta negra à luta de classes. E isso perpassa por uma formação e educação revolucionária que faça os trabalhadores brancos entenderem o seu papel revolucionário na luta pela libertação negra.
O Partido Comunista dos Estados Unidos foi um exemplo nesse sentido. Camaradas brancos entendiam que fazer da luta negra a sua luta era o mínimo: menos que isso seria uma traição à revolução.
O comprometimento foi visto em sentidos práticos dentro do Partido:
Em números quantitativos, podemos dizer que o CPUSA foi o grande responsável pelo crescimento do número de negros sindicalizados. Damasceno e Silva (2017) aponta que em 1935 temos a marca de 100 mil trabalhadores negros em sindicatos, e em 1939, esse número cresce para cerca de 500 mil. Ainda segundo os autores, em 1939 chegou-se a marca de 5.005 negros que ingressaram no partido. Importante frisar que neste ano o país era regido pelas Leis Jim Crow e o partido era uma das poucas organizações multirraciais nos Estados Unidos.[4]
Isso nos deixa a indagação: O PCB se mostrou comprometido em aglutinar os trabalhadores negros para dentro da organização? Acho que sabemos a resposta. De outro lado, por um tempo, o Partido Comunista dos Estados Unidos foi a principal organização inter-racial na luta contra a supremacia branca estadunidense. O que demonstra que nossa tarefa é urgente, possível e necessária. Ernest Rice McKinney, testemunha a influência do Partido Comunista entre os afro americanos durante a Depressão americana:
Estávamos andando pela rua, brancos e negros juntos, e havia alguns homens negros caminhando ao lado de mulheres brancas. Estávamos em um bairro bem de classe trabalhadora, e, quando cruzamos um grupo de jovens brancos, eles nos disseram: “Olá, camaradas”. O tom era sarcástico, mas não hostil. A impressão que os comunistas tinham causado praticando a igualdade social era tamanha que eles já assumiam que éramos comunistas.[5]
Para finalizar a tribuna e refletir sobre nossa realidade, o sociólogo Pan-africanista W. E. B. Du Bois foi um grande autor que refletiu sobre os limites da forma-partido em relação às urgências negras. Ele pode nos ajudar a refletir sobre a forma como estamos e estaremos levando a reconstrução revolucionária de nosso partido no que tange a realidade do negro e do racismo em nosso país:
“Os objetivos do socialismo podem ser alcançados enquanto o negro for negligenciado? Algum grande problema humano pode “esperar”? Se o socialismo vai resolver o problema americano do preconceito racial sem um ataque direto a essas posturas pelos socialistas, por que é necessário que os socialistas lutem nessa linha? Na verdade, há uma espécie de atitude fatalista por parte de certos socialistas transcendentais, que frequentemente supõem que toda a batalha do socialismo está ocorrendo por uma espécie de evolução na qual o esforço individual ativo de sua parte quase não é necessário”
Na verdade, os socialistas enfrentam a seguinte questão ao se confrontar com o problema do negro americano: pode uma minoria de qualquer grupo ou país ser deixada de fora do problema socialista? É claro que todos concordam que a maioria não pode ficar de fora. Os socialistas geralmente enfatizam o fato de que a classe trabalhadora constitui a maioria de todas as nações e, não obstante, é tratada injustamente na distribuição da riqueza. Suponhamos, entretanto, que essa distribuição injusta afetasse apenas uma minoria e que apenas um décimo da nação americana estivesse trabalhando em condições econômicas injustas: um programa socialista que consentisse com essa condição poderia ser implementado? Muitos socialistas estadunidenses parecem supor silenciosamente que isso seria possível. Para colocar a questão de forma concreta, no que diz respeito a essa massa, eles vão permanecer na indústria; vão se livrar do controle privado do capital e vão dividir a renda social entre esses 90 milhões de acordo com alguma regra da razão, e não da maneira atual, ao acaso. Mas, ao mesmo tempo, vão permitir a exploração contínua desses 10 milhões de trabalhadores. No que diz respeito a eles, não vai haver nenhum esforço ativo para garantir-lhes uma voz na social-democracia, ou uma parcela adequada da renda social. A ideia é que, no final das contas, quando os 90 milhões receberem a sua parte, eles irão voluntariamente compartilhá-la com os 10 milhões de servos.[6]
Notas:
[1] CLEAVER, Eldridge. Sobre a Ideologia do Partido dos Panteras Negras. In: RAÇA, Classe e Revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos. 1. ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. cap. 17, p. 178-191.
[2] DEAN, Jodi. Camarada: Um ensaio sobre pertencimento político. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2021. 206 p.66.
[3] DEAN, Jodi. Camarada: Um ensaio sobre pertencimento político. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2021. 206 p.67
[4] SHAWKI, Ahmed. Libertação negra e socialismo. São Paulo: Sundermann, 2017. P. 12.
[5] Mark Naison, “Historical Notes on Blacks and American Communism: e Harlem Experience”, Science & Society, v. 42, n. 3, 1970, p. 324
[6] DUBOIS, W.E.B. O socialismo e o problema do negro. Crítica Marxista, n.53, p. 97, 2021.
Referências Bibliográficas:
SHAWKI, Ahmed. Libertação negra e socialismo. São Paulo: Sundermann, 2017. P. 12.
DUBOIS, W.E.B. O socialismo e o problema do negro. Crítica Marxista, n.53, 2021.
D'AMato Paul. The Communist Party and Black Liberation in the 1930s. International Socialist Review,1997.
DEAN, Jodi. Camarada: Um ensaio sobre pertencimento político. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2021.
SILVA, BRUNA GABRIELLA SANTIAGO. MARXISMO NEGRO: AS MULHERES NEGRAS NA VANGUARDA DA LUTA REVOLUCIONÁRIA. Mnemonise,, v. 12, ed. 2, 2021.