A inação das Nações Unidas diante do genocídio palestino reforça seu papel de ferramenta institucional do imperialismo na comunidade internacional
Estados em defesa do apoio humanitário à Palestina trabalham para contornar as intrincadas normas que mantêm o domínio da organização por poucas potências enquanto o povo palestino é assassinado diariamente por 20 dias ininterruptos.
Por Lorena Gaspar
No alarmante contexto em que o mundo assiste a um genocídio em curso, é comum ouvir pergunta: onde está a ONU?
Na última quarta-feira (18), em reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), a proposta brasileira por uma “pausa humanitária em Gaza” foi vetada pelos Estados Unidos. Esse evento permite que analisemos o papel das organizações internacionais, em especial a ONU, na distribuição de poder no sistema internacional e sua relação com o povo palestino.
O genocídio promovido pelo Estado de Israel
Desde a ofensiva do Hamas, de 7 de outubro, o Estado israelense tem dado respostas incisivas. No dia seguinte ao ataque surpresa do grupo, Benjamin Netanyahu declarou guerra ao Hamas, e, imediatamente, recebeu apoio do governo estadunidense, explicitado na fala de Joe Biden: “estamos prontos para oferecer todos os meios apropriados de apoio ao governo e ao povo de Israel”.
Desde então, amparados não apenas retórica, mas também militarmente, pelos Estados Unidos, o Estado de Israel promove um verdadeiro massacre do povo palestino. No dia 9 de outubro, no dia seguinte à declaração de guerra, foi anunciado um cerco completo à Faixa de Gaza por parte do ministro da defesa israelense. Palestinos tiveram o acesso a água, comida, energia e qualquer tipo de combustível totalmente cessado. Como agravante desse cenário já desesperador, dia 11 de outubro, a única usina de energia de Gaza deixou de funcionar por falta de combustível e a região passa a depender de seus geradores, que funcionam por tempo limitado. Menos de 24 horas depois, Israel ordenou que a população localizada ao norte da Faixa de Gaza evacuasse o local, em direção ao sul, visto que seriam promovidos bombardeios ao norte da região que restou a essa população apatriada. Nesse contexto, para além de sem acesso a itens básicos de sobrevivência, a população palestina abandonou suas casas para que não fosse exterminada, migrando para cidades sem capacidades físicas e sem suprimentos suficientes para garantir a sobrevivência de sua própria população, que dirá dos 1,1 milhão de migrantes do norte. Foi desenhado um cenário de extermínio.
Essas medidas de cerco e deslocamento forçado não só são enquadradas como “violação grave” às leis internacionais pelo Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, como também possuem como principal alvo os civis palestinos. Por trás do argumento oficial de que a finalidade dos ataques era aniquilar as capacidades de atuação do grupo Hamas, estava claro o real objetivo de limpeza etnica e aniquilação do povo palestino, confinado em porções cada vez menores de seu território e sem acesso a recursos básicos para manutenção da dignidade humana. Para aqueles aos quais ainda restavam dúvidas, a política genocida de Israel se escancarou no dia 17 de outubro, quando o hospital Al Ahli, que abrigava centenas de feridos e desabrigados que fugiram de suas casas destruídas, foi bombardeado. A medida criminosa rompe com as leis humanitárias que versam sobre a proteção de feridos pela Convenção de Genebra de 1949.
Esse cenário de expropriação de terras e colonização não é de hoje. Em 1948, é criado o Estado de Israel pelo Conselho de Segurança da ONU, evento conhecido como "catástrofe" pelo povo árabe-palestino. Com a ocupação britânico pelo território, o movimento sionista é fortemente impulsionado, de modo que a disputa por terras demonstra os prelúdios do massacre que vemos hoje. Ao longo de décadas, o Estado israelense cria assentamentos judaicos, verdadeiros bairros de colonização, expulsa palestinos de seus territórios, tudo sob a dura repressão de um aparato militar robusto. Hoje, ver o povo palestino confinado a uma faixa de terra é resultado de meio século da política imperialista, e mais, da passividade internacional diante das seguidas expropriações.
Dado quadro, já antigo, de chacina a céu aberto e, falando em Direitos Humanos, onde estaria a organização que toma para si o título de guardiã desses direitos fundamentais no globo?
A Organização das Nações Unidas e a inserção israelense
Criada em 1945, à ONU foi atribuído o objetivo de restabelecer a ordem mundial a partir de valores pacíficos e de garantia de direitos fundamentais do homem, com destaque aos Direitos Humanos.
O discurso de igualdade, previsto no preâmbulo da Carta da organização, logo em sua criação, já se restringiu à esfera retórica: a formação do Conselho de Segurança da ONU criou um grupo seleto de potências capazes de ditar os rumos da principal organização internacional do pós 1945. O órgão é formado por 5 membros permanentes e 10 rotativos. Os cinco primeiros - Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia e China – eram as principais potências da época, com maiores capacidades militares, o que garantiu sua presença no rol de membros permanentes. Esses possuem uma prerrogativa que lhes garante muito mais poder que o resto dos Estados presentes no Conselho de Segurança: o poder de veto. Se todos os países do órgão aprovarem determinada medida, mas um dos 5 negá-la, a resolução não é implementada.
Dessa maneira, em termos práticos, fica claro como o Conselho de Segurança das Nações Unidas não passa de um instrumento das grandes potências e de seus aliados. Nesse sentido, por mais que não componha o G5, Israel é um importante aliado dos Estados Unidos, que representa seus interesses no órgão. Os números indicam a dimensão dessa aliança: desde o fim da Segunda Guerra Mundial, Israel é o país do mundo que mais recebeu, cumulativamente, recursos dos EUA. Entre 1946 e 2023 foram estimados US$260 bilhões (o equivalente a mais de R$1,3 trilhão), segundo um relatório do Congresso americano publicado em 2023. E, mais de 50% dessa quantia foi destinado a auxílio militar. Assim, os posicionamentos dos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU, no que tange à questão palestina, são posições em defesa de Israel, conforme é expresso pelo fato de que os EUA utilizaram o poder de veto mais de 80 vezes no Conselho de Segurança desde 1945, e, mais da metade desses vetos foi para proteger Israel de críticas internacionais.
Outro ponto relevante a ser levantado a fim de indicar o papel do Conselho de Segurança como dominado pelos interesses imperialistas é a breve consideração dos posicionamentos sobre a invasão russa à Ucrânia. O Estado russo fez uso do poder de veto para impedir qualquer ação da Organização das Nações Unidas contra suas investidas em território ucraniano. Nesse cenário, o Conselho de Segurança, mais uma vez, foi paralisado e utilizado como palco para a demonstração do imperialismo das potências que ocupam cargos permanentes no órgão.
A Proposta brasileira ao Conselho de Segurança
No dia 18 de outubro, em reunião do CSNU, o Brasil, enquanto membro presidente provisório desse órgão, apresentou um texto a ser votado, porém, que foi vetado pelos Estados Unidos. O conteúdo desse consistia em condenar as ações do grupo Hamas, categorizado como terrorista no texto, defender uma “pausa humanitária” em Gaza e a criação de corredores humanitários, para além da retirada da ordem de Israel para que Gaza fosse evacuada.
Conforme expresso por representantes do Brasil na organização internacional, houve um “esforço para acomodar as posições diferentes, às vezes opostas”. Dessa maneira, em nome de uma figura apartidária e diplomática, a atuação brasileira enfraquece a urgência e a gravidade da situação a que está submetida o povo palestino. Mesmo com a busca por neutralidade pela diplomacia brasileira, os Estados Unidos vetou o texto devido à falta de menção ao direito de autodefesa por parte de Israel.
Escancara-se a contradição estadunidense. O mesmo Estado que anuncia (pela figura do presidente "Estou confiante de que os inocentes em Gaza poderão ter acesso a medicamentos, alimentos e água" ativamente impede a resposta ao massacre em curso contra o povo palestino. A falsa roupagem em defesa dos Direitos Humanos é acompanhada pelo financiamento das armas israelenses que matam civis palestinos. Essa hipocrisia foi apontada pelo embaixador palestino na ONU: “Quem não quer o cessar-fogo perde credibilidade e compartilha a responsabilidade pela devastação”.
Dessa maneira, como consequência da inação da maior organização internacional do globo, o massacre em Gaza se amplia nesta semana, alcançando níveis de gravidade cada vez mais altos. Nesta terça-feira (24), o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) afirmou que os hospitais da Faixa de Gaza estão com lotação equivalente a 150% de sua capacidade, “à beira de um colapso”. O cenário é de interrupção dos serviços de esgoto e saneamento, de limpeza das cidades, e, da produção de itens básicos, como a farinha de trigo para a distribuição de pão para a população, já vivendo em condições de insegurança alimentar.
Conclusão
Representantes brasileiros, após o veto, buscam uma nova proposta capaz de gerar consenso entre os membros permanentes, uma delas tendo sido discutida na manhã da quinta-feira (26).
Porém, fica evidente que a celeridade que o cenário de genocídio demanda não é atendida pela Organização das Nações Unidas, à reboque da busca por consensos inexistentes e de estruturas desiguais que favorecem o imperialismo e o colonialismo no século XXI. Estados em defesa do apoio humanitário à Palestina trabalham para contornar as intrincadas normas que mantêm o domínio da organização por poucas potências enquanto o povo palestino é assassinado diariamente por 20 dias ininterruptos.