A imprensa negra em São Paulo

A presente publicação feita pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, através de sua Assessoria para Assuntos Afro-Brasileiros, dirigida por Ari Cândido Fernandes, vem, de certa forma, resgatar uma dívida cultural com a comunidade negra de São Paulo.

A imprensa negra em São Paulo
Primeira edição do jornal “O Progresso - Orgam dos homens de côr”, 1899. Fonte: Reprodução/BNDigital.

Por Clóvis Moura

Publicado originalmente em 1984.
Transcrito a partir de marxists.org


A presente publicação feita pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, através de sua Assessoria para Assuntos Afro-Brasileiros, dirigida por Ari Cândido Fernandes, vem, de certa forma, resgatar uma dívida cultural com a comunidade negra de São Paulo. A imprensa negra, pouco conhecida e menos ainda divulgada, abarca um período que vai de 1915, quando surge O Menelick, até 1963. Este resgate vem colocar em evidência e discussão a sua importância e porque, em um país que se diz uma democracia racial, há necessidade de uma imprensa alternativa capaz de refletir os anseios e reivindicações, mas, acima de tudo, o ethos do universo dessa comunidade, não apenas oprimida economicamente, mas discriminada pela sua marca de cor, que os setores deliberantes da sociedade achavam ser estigma e elemento inferiorizador.

Pouco conhecida e não incluída nos programas das escolas de comunicação como um capítulo a ser estudado e interpretado, a imprensa negra ficou na penumbra, como se fosse pouco significativa. A sua importância foi desgastada por uma visão branca da imprensa, que marginalizou os jornais negros impressos na época. Assim como o negro foi marginalizado social, econômica e psicologicamente, também foi marginalizado culturalmente, sendo, por isso, toda a sua produção cultural considerada subproduto de uma etnia inferior ou inferiorizada.

Uma imprensa que tem circulação restrita e penetração limitada à comunidade a que se destina, irá exercer uma função social, política e catártica durante sua trajetória, mudando de conotação ideológica com a passagem do tempo, conforme veremos oportunamente.

Durante todo o tempo em que a imprensa negra circulou, através de jornais de pequena tiragem e duração precária, as atividades da comunidade negra de São Paulo ali se refletiam, dando-nos, por isso, esses jornais um painel ideológico do universo do negro. Nela se encontram estilos de comportamento, anseios, reivindicações e protestos dos negros paulistas. É uma trajetória longa, dolorosa muitas vezes, a desses jornais que praticamente não tinham recursos para se manter por muito tempo, mas sempre exprimindo, de uma forma ou de outra, o universo da comunidade. Lá estão as festas, aniversários, acontecimentos sociais; lá está o intelectual negro fazendo poesias; lá estão os protestos contra o preconceito de cor e a marginalização do negro. Nesta trajetória refletem-se as inquietações da comunidade e lá se encontram os conselhos para o negro ascender socialmente, procurando igualar-se ao branco.

A preocupação com a educação é uma constante. O negro deve educar-se para subir socialmente. Para isso, deve deixar os vícios como o alcoolismo e a boêmia, deve abster-se de praticar arruaças, deve ser um modelo de cidadão. Em todas as publicações é visível a preocupação com uma ética puritana capaz de retirar o negro de sua situação de marginalizado. Daí haver, em muitos deles, a condenação aos excessos nos bailes de negros que eram tidos pelos brancos como centros de corrupção. Os jornais servem, portanto, para indicar, através de regras morais, o comportamento que deveriam seguir os membros da comunidade negra.

Evidentemente que há variações de ideologia ou de posição em face da sociedade global. Levando-se em conta que o primeiro jornal, O Menelick é de 1915 e o último, Correio d’Ébano, é de 1963, não é de se surpreender que haja diferença de enfoque em detalhes. Mas o núcleo básico do pensamento é o mesmo: a posição do negro diante do mundo branco. Algumas vezes eles assumem um caráter reivindicativo, outras vezes, um conteúdo pedagógico, mas sempre procurando a integração do negro.

Roger Bastide que estudou a imprensa negra de São Paulo fez sua primeira periodização. Para ele, a fase inicial vai de 1915 com O Menelick, até 1930. A segunda começa em 30 e vai até 1937, ano-limite de sua pesquisa. Para ele, o segundo período caracteriza-se pela passagem “da reivindicação jornalística à reivindicação política”. No final do segundo período, de fato, o jornal A Voz da Raça assume posição política, pois representava o pensamento da Frente Negra que reivindica e consegue ser registrada como partido.

Da primeira fase, o jornal mais representativo foi O Clarim da Alvorada (1924), que desempenhou forte influência no meio negro. Fundado por José Correa Leite e Jayme Aguiar, ficou sendo o mais representativo jornal até o aparecimento de A Voz da Raça. Sobre sua fundação, assim se expressou Jayme Aguiar:

“Os negros tinham jornais das sociedades dançantes e esses jornais das sociedades dançantes só tratavam dos seus bailes, dos seus associados, o disse-que-disse, as críticas adequadas como faziam os jornais dos brancos existiam naquela época: jornal das costureiras, jornal das moças que trabalhavam nas fábricas etc. O negro ficava de lado porque ele não tinha meios de comunicação. Então esse meio de comunicação foi efetuado através dos jornais negros da época. São esses jornais que nós conhecemos e que tratavam do movimento associativo das sociedades dançantes. O Xauter, O Bandeirante, O Menelick, O Alfinete, O Tamoio e outros mais. O Menelick foi um dos primeiros jornais associativos que surgiram em São Paulo, criado pelo poeta negro Deocleciano Nascimento, falecido, mais ou menos há oitenta anos atrás [1]. Esse O Menelick, por causa da época de guerra da Abissínia com a Itália, teve repercussão muito grande dentro de São Paulo. Todo negro fazia questão de ler O Menelick. E tinha, também, O Alfinete. Pelo título do jornal os senhores já estão vendo: cutucava os negrinhos e as negrinhas… Depois, então, é que surgiram os negros que queriam dar alguma coisa de mais elevação, de cultura, de instrução e compreensão para o negro. Então surgiram os primeiros jornais dos negros dentro de um espírito de atividade profunda. Modéstia à parte, eu e o Correa Leite, a 6 de janeiro de 1924, fundamos O Clarim.

O Clarim, em primeiro lugar, chamava-se simplesmente O Clarim. Mas, existia, como existe ainda hoje em Matão, O Clarim, o grande jornal espírita. A redação de O Clarim era na minha casa, na rua Ruy Barbosa. Nós publicamos o jornal com o pseudônimo: Jin de Araguary e Leite. Foi uma espécie de hieróglifo que formamos, para não aparecermos como jornalistas. Depois esse jornal foi tomando projeção. Eu devo – abrindo um parêntese – de minha parte uma grande influência na fundação do jornal a um amigo já falecido, e que na época era estudante de Direito: José de Molina Quartin Filho, que tinha o pseudônimo de Joaquim Três. Ele trabalhava em O Correio Paulistano e fazia crônica carnavalesca na época, juntamente com Menotti del Pichia que, na época, fazia crônicas com o pseudônimo de Helius.

Eu e o Quartin trabalhávamos juntos numa mesma repartição, então ele me disse: –Jayme, os negros precisam ter outro meio de viver. Eu disse: –Compreendo. E por que você não faz um jornal? E foi assim que eu procurei o meu amigo José Correa Leite e nós começamos a fazer O Clarim da Alvorada. (...) Havia, também, A Princesa do Norte. A Princesa do Norte era um jornal feito com muito carinho, com muitas dificuldades, por um preto que era cozinheiro do antigo Instituto Disciplinar, onde hoje é o Pró-Menor. E esse cozinheiro chamava-se Antônio dos Santos e tinha um pseudônimo que os senhores vão rir: Tio Urutu. Era um preto gordo, cabelos grandes, um boné ao lado, morava na mesma rua em que eu morava, Rua Ruy Barbosa, uns dois quarteirões após a minha casa. Todas as manhãs ele passava com a sua cesta, fazia as compras que ia levar para o Instituto Disciplinar. Um dia ele me disse: O senhor já leu o jornal? E me mostrou o A Princesa do Norte. Eu gostei do jornalzinho. Vi aquelas críticas e vi uns versos. E como todos nós brasileiros, não há quem não goste de música, não há quem não goste de poesia, começamos a publicar alguma coisa no jornal de Tio Urutu. Depois, com o aparecimento do nosso jornal, Tio Urutu continuou com o seu A Princesa do Norte e depois acabou o seu bairro e acabou o seu jornal; surgiu O Clarim da Alvorada que, no início, era um jornal de cultura, instrutivo etc. e apareceram os primeiros literatos negros dentro do nosso meio.”

Como vemos por este longo depoimento de Jayme Aguiar, O Clarim da Alvorada surgiu da necessidade imperiosa de os negros possuírem um órgão mais abrangente e que substituísse aqueles microjornais que refletiam os interesses e as opiniões dos pequenos grupos sociais negros que se aglutinavam em associações recreativas ou esportivas.

Ainda segundo a periodização de Roger Bastide, na segunda fase o jornal que se destaca é A Voz da Raça. A Voz da Raça já representa uma tomada de posição ideológica do negro a nível de uma opção política, pois era o órgão da Frente Negra Brasileira, fundada em 16 de setembro de 1931. A Frente possuía já uma estrutura organizacional bastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais que a precederam e possibilitaram o seu aparecimento. Era dirigida por um grande conselho, constituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o Secretário. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado pelos cabos distritais da Capital. Apesar de A Voz da Raça já reivindicar politicamente uma posição para o negro, ainda perduram, dentro do contexto do protesto, aqueles postulados anteriores de um código ético para o negro, via instrução e consciência de que ele deveria igualar-se, pela educação, ao branco.

Numa periodização mais abrangente, Miriam Nicolau Ferrara estabelece novos níveis de evolução da imprensa negra em São Paulo. Ela avança até o ano de 1963. Diz: “Os jornais da imprensa negra, considerados a partir de uma amostra, são descritos em 3 períodos: – No primeiro período (1915/1923), há a tentativa de integração do negro na sociedade brasileira e a formação de uma consciência que mais tarde irá ganhar força.

– Com a fundação do jornal O Clarim da Alvorada, em 1924, o segundo período atinge seu ápice em 1931 com a organização da Frente Negra Brasileira, e em 1933 com o jornal A Voz da Raça. Este período termina com o Estado Novo.

O momento das grandes reivindicações políticas marca o terceiro período (1945/1963), com elementos do grupo negro se filiando a partidos políticos da época ou se candidatando a cargos eletivos”.

Embora basicamente o núcleo desta periodização esteja embutido na de Bastide, a autora desdobra até 1963 o universo estudado.

Miriam Nicolau faz uma revisão na periodização de Bastide porque, segundo ela, “o material de que dispomos é mais amplo”, apresentando um quadro minucioso da publicação desses jornais. Para a autora citada poderemos apresentar um painel das publicações desses jornais da seguinte forma: 1915: O Menelick; 1916: A Rua, O Xauter; 1918: O Alfinete e O Bandeirante; 1919: A Liberdade; 1920: A Sentinela; 1922: O Kosmos; 1923: Getulino; 1924: O Clarim da Alvorada e Elite; 1928: Auriverde, O Patrocínio e Progresso; 1932: Chibata; 1933: A Evolução e A Voz da Raça; 1935: O Clarim, O Estímulo, A Raça e Tribuna Negra; 1936: A Alvorada; 1946: Senzala; 1950: Mundo Novo; 1954: O Novo Horizonte; 1957: Notícias de Ébano; 1958: O Mutirão; 1960: Hífen e Niger; 1961: Nosso Jornal; e 1963: Correio d’Ébano.

Miriam Nicolau inclui, ainda, na sua lista os jornais União, de Curitiba, Quilombo, Redenção, do Rio de Janeiro, A Alvorada, de Pelotas e A Voz da Negritude, de Niterói. Evidentemente esta inclusão de jornais negros de outros Estados não será considerada na análise subsequente que faremos do conteúdo e da funcionalidade dos seus textos, pois escapam do universo a ser apresentado e interpretado. Acresce notar que no esquema de Bastide há a inclusão do Princesa do Oeste referido por Jayme Aguiar no seu depoimento gravado pouco antes da sua morte, informação que Miriam Nicolau omite.

Partindo desta listagem, Miriam Nicolau propõe o seguinte: “1º período de 1915 a 1923; 2º período de 1924 a 1937; 3º período de 1945 a 1963”.

Para a análise subsequente do material que iremos apresentar neste volume, esta periodização servirá como um apoio metodológico, acrescentando-se, em seguida, que, se atentarmos mais detalhada e analiticamente à mesma, veremos que ela reproduz certas etapas da sociedade brasileira na sua dinâmica abrangente. A primeira fase termina em 1923, quando a ebulição da pequena burguesia radical e militar desemboca na Coluna Prestes. A segunda abrange um período que passa pela revolução de 1930 até a implantação do Estado Novo, e, finalmente, a última vai da redemocratização do País às vésperas do golpe militar de 1964.

No entanto, há uma particularidade na imprensa negra: ela não reproduz nas suas páginas esta dinâmica da sociedade abrangente. Muito raramente há referências a esses fatos. Ela é fundamentalmente uma imprensa setorizada, ou, como a caracteriza Bastide, apoiado nos norte-americanos, uma imprensa adicional. Queremos dizer com isto que os leitores dos jornais dos negros, para se informarem dos acontecimentos nacionais e/ou internacionais que não se referem ao problema do negro, tinham de recorrer à imprensa branca, ou seja, à denominada grande imprensa. É um fenômeno singular, especialmente em São Paulo. Sabemos, por exemplo, que no movimento de 1932 o povo paulista, ou pelo menos sua classe média, empolgou-se com o programa de reconstitucionalização do país. Os negros organizaram, inclusive, uma Legião Negra, chefiada por Joaquim Guaraná, segundo informação de Francisco Lucrécio. Ele procurou aliciar negros no interior, objetivando levá-los a lutar pelo movimento de 1932. Há informações, porém não de todo confiáveis, de que os componentes dessa legião foram praticamente dizimados, pois eram destacados para os locais mais perigosos dos combates. Essa participação dos negros no movimento de 1932 propiciou uma cisão na Frente Negra Brasileira, pois a entidade colocou-se em posição de estrita neutralidade em relação ao fato.

No entanto, a imprensa negra da época não reproduz o fato, não o enfatiza, não o apóia. É como se o acontecimento não tivesse existido. Esta posição do pequeno universo é uma constante nesses jornais. A sua tônica é a integração do negro brasileiro (mais negro brasileiro do que afro-brasileiro) na nossa sociedade como cidadãos. E isso deveria acontecer através da cultura e da educação, das boas maneiras, do bom comportamento do negro.

No número 2 de O Alfinete, de 3 de setembro de 1918, lê-se:

“Quem são os culpados dessa negra mancha que macula eternamente a nossa fronte? Nós, unicamente nós que vivemos na mais vergonhosa ignorância, no mais profundo absecamento (sic) moral, que não compreendemos finalmente a angustiosa situação em que vivemos. Cultivemos, extirpar o nosso analfabetismo e veremos se podemos ou não imitar os norte-americanos.”

Em toda a trajetória dessa imprensa há uma constante, conforme já assinalamos: a ascensão do negro deverá realizar-se através do seu aprimoramento cultural e do seu bom comportamento social. Para que isto aconteça há, sempre, a recomendação de que a família deve educar os filhos dentro de padrões éticos puritanos, especialmente as moças, para que assim consigam o reconhecimento social dos brancos. Por outro lado, a educação é uma questão privada e somente uma vez, ao que apuramos, há uma referência explícita ao recurso do ensino público como veículo capaz de solucionar o problema dos negros. É num artigo de Evaristo de Morais. No mais, todas as referências ao problema educacional vinculam-no a uma obrigação familiar, ligando-o a um nível de moral puritano. Como vemos, o problema da mobilidade social depende da educação e esta, da família, dos pais, da sua autoridade perante os filhos. Os negros devem destacar-se pela cultura, e os exemplos de Luís Gama, José do Patrocínio e Cruz e Souza são sempre invocados como símbolos. Há uma reconstrução quase que mítica dessas biografias, como, aliás, Bastide salientou em seu trabalho. É por aí que o negro conseguirá a redenção da “raça”.

E aqui cabe uma consideração maior sobre este conceito de “raça” entre os negros.

A imprensa negra reflete como os negros articulam este conceito em relação a si mesmos. Oprimidos e discriminados, estigmatizados pela sua marca étnica, os negros concentram nesta marca o seu potencial da revalorização simbólica de sua personalidade. Daí porque sempre se referem à “raça”, à “nossa raça” em nível de exaltação, pois tudo aquilo que para a sociedade discriminadora é negativo passa a ser positivo para o negro, e este fenômeno se reflete na sua imprensa. Não é por acaso que o seu mais significativo jornal tem como título A Voz da Raça. A “raça” é, portanto, exaltada e quando o negro se refere a outro negro fala que ele “é da raça”. Isto está explícito nos textos dos jornais negros. Eles chegam a extremos de comparações analógicas como, por exemplo, a posição de Hitler que defende a raça ariana e os negros brasileiros: Hitler defendendo sua raça, e os negros brasileiros, por seu turno, defendendo, também, a sua. Daí chegarem a extremos de acreditar na necessidade do aparecimento de “um Moisés de Ébano”.

Esta atitude dos negros, que se relfete em sua imprensa, deve ser considerada mais detalhadamente. O conceito de raça e de pureza racial deveria ser aquele que os negros descartariam automaticamente, por ser fruto de uma antropologia que visava colocá-los como inferiores, a fim de que as nações colonizadoras justificassem a aventura colonial. Mas tal não acontece. É que o negro, no caso o negro brasileiro, dele se aproveita, para, numa reviravolta ideológica, auto-afirmar-se psicologicamente. E isto a imprensa negra de São Paulo consegue refletir em suas páginas. O conceito de “raça” é sempre usado como motivo de exaltação da negritude dos produtores dessa imprensa. Daí, também, não se interessarem pelos movimentos políticos da sociedade brasileira, não tomarem posições ideológicas, quer de direita quer de esquerda, nesses jornais. Sobre este assunto, José Correa Leite afirma em depoimento prestado em 1975: “A comunidade negra em São Paulo vivia – como minoria que era – com as suas entidades e seus clubes. Por isso, tinha necessidade de ter um veículo de informação dos acontecimentos sociais que tinham na comuniade, porque o negro tinha a sua comunidade: uma série de comunidades recreativas e sociedades culturais. Como é natural, a imprensa branca não ia cuidar de dar informações sobre as atividades que essa comunidade tinha. Daí surgiu a imprensa negra. Havia também nossos literatos, nossos poetas que queriam publicar os seus trabalhos, e essa imprensa cumpria tal função: de servir de meio de comunicação. São Paulo era pequena e as comunicações muito mais fáceis. Então, na nossa imprensa, fazíamos notícias de aniversários, de casamentos, de falecimentos. Tudo isso era feito pela nossa imprensa. As festas também eram feitas pela nossa imprensa. Ainda não tinha surgido um movimento ideológico, um movimento de luta de classes.”

O que desejamos destacar, neste trecho, é o apoliticismo da imprensa em relação àquilo que Correa Leite chama de luta de classes. De fato, nas suas páginas não há nenhuma referência à participação do negro nos sindicatos, nas lutas reivindicatórias ou de participação política radical. Pelo contrário. Há uma cautela, parece que deliberada, dos diretores desses jornais que os levavam a não abordar certos problemas críticos possivelmente considerados perigosos por eles.

Essa ideologia absenteísta vai ser substituída, para Miriam Nicolau Ferrara, por uma outra participante, a partir de 1945, com a volta do regime democrático. Para esta autora, “com a volta do regime democrático, em 1945, inicia-se o terceiro período da imprensa negra. O que diferencia este dos dois anteriores é a situação política geral que, de certa maneira, reflete-se nos jornais negros. Temos a propaganda política aberta e o apoio a candidaturas tanto de negros quanto de brancos. Isso seria reflexo ou decorrência da formação de outros partidos políticos da sociedade brasileira: o Partido Social Democrático (PSD), o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a União Democrática Nacional (UDN), o Partido Social Progressista (PSP), a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Socialista Brasileiro (PSB), o Partido Social Trabalhista (PST), o Partido de Representação Popular (PRP) e outros”.

Como se pode ver, há uma reviravolta na última fase da imprensa negra. O problema político aparece em primeiro plano ou, pelo menos, de forma relevante nesses jornais. O absenteísmo político das duas fases, quando o negro cria um mecanismo de defesa para não se pronunciar sobre o problema político, é substituído por uma visão mais abrangente do problema, e aquilo que Correa Leite chamou, com propriedade, de luta de classes, passa a ser considerado como relevante no seu contexto. As modificações políticas da sociedade brasileira passam, a partir daí, a ser registradas por essa imprensa.

Miriam Nicolau escreve sobre esta nova fase, concordando com Bastide que “sinal de amadurecimento foi a fundação da Associação dos Negros Brasileiros, que fez uma revisão dos erros anteriormente cometidos, no sentido de uma autocrítica e se apresenta como a saída possível para o negro. Assim, no jornal Alvorada, de 1945, os artigos, de modo geral, têm uma finalidade: mostrar aos negros os objetivos e a importância da A.N.B., criada para que os negros não se dispersassem; ao contrário, temos agora com o advento de uma fase nova da reestruturação dos quadros da nossa vida política e social – a Associação dos Negros Brasileiros. Ideia sugerida, pode-se dizer do amadurecimento das nossas antigas experiências”, segundo texto do jornal Alvorada de 1946.

Em toda esta trajetória da imprensa negra de São Paulo um problema é dos mais importantes e, ao mesmo tempo, angustiante: o problema financeiro. Como manter jornais representativos de uma comunidade cuja maioria era constituída de marginais, subempregados, favelados, biscateiros e desocupados? Ora, como já vimos, esses jornais eram destinados à comunidade negra composta de elementos desarticulados, desajustados ou marginalizados pela sociedade branca. As fontes de financiamento desses veículos, que não tinham publicidade a não ser a do próprio meio, eram, portanto, precárias. Daí a irregularidade dessas publicações. Um dos seus fundadores, Raul Joviano do Amaral, explica como esses jornais conseguiam se manter. Diz ele:

“Os jornais surgiram com a finalidade de integrar associativamente o negro. Os iniciadores da imprensa negra, por pertencerem à base da sociedade, colocados no seu grau mais baixo, não tinham condições econômicas para manter a imprensa. É de se adivinhar as dificuldades que se tinha para editar esses jornais. Como mantê-los, se a coletividade, o grupo não tinham nenhum poderio econômico? Apenas o sacrifício, a boa vontade de abnegados permitiam a existência desses jornais. Muitos deles despendiam o que ganhavam modestamente para manter e publicar esses jornais. Não havia, por isso, uma periodicidade regular de publicação: quando havia dinheiro, o jornal saía com atraso. Uma das maneiras de sustentar esses jornais era frequentar as sociedades negras existentes na época, distribuí-los e pedir uma contribuição para o próximo número. Os próprios diretores, os próprios redatores iam levá-los às sedes dessas associações. Com o tempo foram criadas cooperativas. Mas, mesmo assim, foi muito difícil mantê-los à base da cooperação porque o negro não tinha condições econômicas”.

O sacrifício do negro, para Raul Joviano do Amaral, “foi imenso e o seu êxito se deve a homens humildes como Tio Urutu, que era um cozinheiro do Instituto Disciplinar, como José Correa Leite, que era auxiliar de uma drogaria, o qual, além de escrever e orientar o jornal, tirava dos seus parcos vencimentos uma parcela para mantê-lo, para que ele pudesse sair com alguma regularidade. Outros abnegados da imprensa negra foram Jayme Aguiar, o argentino Celso Wanderley, com O Progresso, Lino Guedes e Salatiel Campos. Todos contribuíram com duzentos réis ou um tostão, o máximo um cruzeiro, para que o jornal saísse. O jornal O Clarim da Alvorada, por isto mesmo, nunca teve caixa e, como o objetivo da imprensa negra era difundir na comunidade negra as suas idéias, os seus organizadores nunca procuraram organizações financeiras para ajudá-la. Também não procuravam os políticos da época. Sem ter praticamente anúncios, ela vivia da solidariedade da comunidade. Foi dentro deste espírito que a imprensa negra viveu por quase vinte anos”.

Por este valioso depoimento de um dos seus organizadores, vemos que essa imprensa vivia na base da solidariedade étnica da comunidade negra de São Paulo. Roger Bastide acha que essa imprensa era o reflexo do pensamento da classe média negra em São Paulo. Mas, pelo depoimento de Raul Joviano do Amaral, o seu suporte eram os homens de baixa renda que municiavam, com os seus centavos e os seus tostões, para usarmos o seu termo, a continuidade dos jornais.

Este problema de manutenção dos jornais é derivado da situação de marginalização do negro de uma forma global. Embora Bastide afirme que esses jornais surgiram de uma classe média negra, o depoimento de Raul Joviano do Amaral parece demonstrar que era, ao contrário, a estratégia de um mutirão permanente entre os negros pobres que dava sustentáculo a esses veículos.

Como vemos, os jornais da imprensa negra surgiram quase que à base de informações, notícias, mexericos e destaques sobre a vida social e associativa da comunidade negra. Com o tempo, no entanto, toma conotações de reivindicação racial e social. Isto aconteceu em consequência do aguçamento da luta de classes e da exclusão do negro dos espaços sociais mais remunerados e socialmente compensadores na estrutura do sistema de capitalismo dependente que se formou após a Abolição.

Segundo Aristides Barbosa, “o preconceito que até 1936, quando se escrevia nos porões do Bexiga: Aluga-se quarto, não se aceita pessoa de cor, e nos jornais saíam anúncios pedindo empregadas brancas, foi-se acalmando. Com isso o negro pensou que o motivo de luta também se acalmou. As contradições raciais ficaram diluídas nas contradições sociais e econômicas. Desta forma o negro pensa que não há mais necessidade de uma imprensa de protesto”.

Com o jornal Novo Horizonte, fundado em 1948, um dos últimos da imprensa negra, a situação se repete: são os velhos que haviam fundado O Clarim da Alvorada que irão ajudar a nova geração. Por outro lado, do ponto de vista organizativo, nada mudou: os seus fundadores têm de sair com os jornais embaixo do braço para vendê-los entre os negros. Por isso, em 1955, o Novo Horizonte desaparece.

Dois outros jornais negros de São Paulo – ainda segundo o depoimento de Jayme Aguiar – foram O Getulino, de Campinas, fundado pelos irmãos Andrade, Lino Guedes e outros, e O Patrocínio, de Piracicaba, fundado por Alberto de Almeida. “Esses dois jornais foram um sucesso. A vinda, logo após a revolução, de jornalistas campineiros negros para São Paulo, como Gervásio Oliveira, Benedito Florêncio, Lino Guedes e outros, possibilitou a sua participação também na grande batalha em prol da grandeza do negro. Todos eles irão participar da imprensa negra paulistana.”

José Correa Leite ainda faz nova tentativa, em 1946, que também não sobrevive por muito tempo. Geraldo Campos de Oliveira edita a revista Senzala. Sugem, ainda, em 1960, Ébano e Niger. A partir daí, a imprensa negra adquire nova conotação e vai-se diluindo ou diferenciando ideologicamente.

Analisando este período da vida do negro paulista, escreve Oswaldo de Camargo: “Os jornais que representam o pensamento da coletividade negra variam segundo a múltipla experiência do negro na vida paulistana. Alguns ficaram apenas no nível do contato de notícias sobre um pequeno grupo de negros; outros alcançaram um alto nível de exposição de idéias; outros ainda se propuseram a ilustrar e preparar o negro para o livre debate e procurar soluções dos problemas comuns dentro da comunidade negra”.

Um nome que não pode ser esquecido aqui, embora não tenha participado ativa e diretamente na imprensa negra, é, incontestavelmente, o de Solano Trindade. Intelectual negro que incorporou à negritude um conteúdo participante e revolucionário, ele dinamiza, de certa forma, esta imprensa, pelos seus flancos, com a sua poesia, e projeta-se, depois, como um dos fundadores do teatro negro no Brasil.

Solano Trindade, embora não escrevesse na imprensa negra, tinha uma visão nítida do papel do negro como potencial de energias capaz de fazer, no Brasil, as transformações estruturais que redundarão no desaparecimento do preconceito de cor e do racismo.

Escrevia em vários jornais e revistas como Temário, Imprensa Popular, O Momento, Tribuna Gaúcha, Paratodos, Literatura, para lembrar apenas alguns. Era neles que Solano Trindade transmitia sua mensagem de otimismo, através de poemas ou de contos.

Nascido em 24 de julho de 1908, foi o grande animador da negritude popular que fundia as reivindicações dos negros aos problemas fundamentais da luta de classes. Nasceu em Recife, uma cidade que naquele tempo tinha muito ainda do bucolismo que o inspirou, levando-o a escrever poemas sobre os pregões da sua terra. Via a ligação daquele comportamento com os padrões culturais africanos. A sua produção na imprensa está ainda para ser recolhida. São Artigos, panfletos, poesias, peças de teatro, que um dia serão reunidos numa demonstração de justiça ao seu trabalho intelectual.

Mas, cabe destacar aqui, Solano Trindade sentiu que somente a imprensa negra não era suficiente para dar o grande recado dos oprimidos e etnicamente discriminados. Recorre, então, a uma linguagem muito mais abrangente e explícita, capaz de completar aquilo que os seus companheiros estavam fazendo na imprensa escrita. Em 1944 junta-se a Haroldo Costa para formar o Teatro Folclórico Brasileiro, do qual se afastará, posteriormente, por questões éticas. Em seguida funda, juntamente com Margarida Trindade e Édison Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro, composto por empregadas domésticas, operários, estudantes e comerciários.

Com o TPB Solano viaja para a Europa, promove espetáculos de canto e dança; o conjunto participa do Concurso Internacional de Danças Populares, dando espetáculos, na Europa, para platéias de dois a cinco mil espectadores. Na Europa foram filmadas as danças brasileiras exibidas pelo grupo.

O que desejamos destacar, aqui, é que Solano Trindade, participando da imprensa e através dela se realizando, fundamentalmente, como escritor negro, transcendeu este tipo de comunicação, procurando no teatro uma forma mais coletiva de se comunicar. E mais: a sua inquietação levou-o, também, a pesquisar formas mais dinâmicas, para transmitir o seu recado, procurando, no cinema, uma nova dimensão para se comunicar. Em função disso, forneceu não apenas mostras de seu repertório para diversos filmes nacionais, mas também, foi ator.

Vivendo apenas de seu trabalho como artista, Solano não se satisfazia com a imprensa, a poesia e mesmo o teatro, pintando também inúmeros quadros nos quais a sua sensibilidade se expressava.

Esta inquietação permanente é que demonstra como a sua procura de transmitir a mensagem do negro brasileiro coloca-o como um dos pioneiros da negritude popular e um participante da imprensa negra, embora escrevendo nos jornais que não eram feitos por negros. Morreu em 1973, deixando grande parte da sua obra inédita.

É este universo contraditório e dramático que, através de uma amostragem dos seus títulos mais significativos, estamos apresentando. Evidentemente, como toda amostragem, ela tem uma margem de erros, mas de qualquer maneira, como primeira aproximação com um assunto quase que desconhecido, abre uma janela de conhecimento, estimulando a curiosidade e o desejo de quem tiver interesse em conhecer o assunto, não apenas como folclore, mas perspectivando esta produção dos negros na área da imprensa como uma contribuição válida à cultura brasileira.


Notas

[1] Este depoimento foi gravado em 15 de junho de 1975.

Nota bibliográfica

As citações de Roger Bastide foram tiradas do capítulo “A Imprensa Negra do Estado de São Paulo”, in Estudos Afro-brasileiros, Ed. Perspectiva, SP, 1973.

As declarações de Jayme Aguiar, José Correa Leite, Raul Joviano do Amaral e Aristides Barbosa são depoimentos prestados e gravados pelo autor, em 15 de junho de 1975.

As citações de Miriam Nicolau Ferrara fazem parte do texto da sua tese de mestrado A Imprensa Negra em São Paulo, mimeografado.

A citação de Oswaldo de Camargo está no seu livro A Descoberta do Frio, Edições Populares, SP, 1979.