'A formação é tarefa prioritária na construção ideológica do partido proletário' (Guilherme Sales)

A formação partidária é forjar militantes que deem cabo da Revolução Brasileira. É forjar um militante que dialogue e entenda as questões imediatas de determinadas categorias da classe trabalhadora, dos povos indígenas, dos quilombolas, da população LGBTQIA+ e todas as classes oprimidas.

'A formação é tarefa prioritária na construção ideológica do partido proletário' (Guilherme Sales)

Por Guilherme Sales para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Dialogando com outras tribunas que abordaram a questão da formação em nossas fileiras, trago algumas contribuições para o debate congressual e pós-congressual, considerando a proximidade da etapa nacional e a necessidade de ação no campo ideológico no próximo período. Posto isso, essa iniciativa surge no sentido de que parte das formulações ainda são demasiadamente abstratas, e pouco contribuem como ponto de partida para a superação de certa indefinição ideológica que encontramos em diferentes medidas em nossas fileiras. Isso se dá em função tanto do estado organizativo e político em que ainda nos encontramos, quanto pela perspectiva mecânica e pouco relacionada à nossa realidade quando o assunto é escola partidária (ou de quadros) e os meios para superar a artesanalidade.

Sobre esta última [a perspectiva mecânica e pouco relacionada à nossa realidade acerca de políticas de formação], é evidente que essa é uma questão profundamente determinada pelo lamaçal político e teórico que era o velho PCB. Sob a (justa) bandeira de combate à aberração organizativa que é o chamado “centralismo teórico”, o que se operou em níveis locais – mas com determinações nacionais – no antigo partido eram concessões sem limites com os piores tipos de ecletismo, que minavam qualquer tipo de avanço na realidade prática de tão raso, multiforme e pouco esclarecedor era o nosso “direcionamento ideológico”. Em nível nacional, o federalismo profundamente impregnado na forma organizativa daquela moribunda agremiação tornava nula qualquer iniciativa de caráter formativo de militantes – se houvesse uma. Os cursos lançados no canal O Poder Popular são exemplo de pretensa política de formação que nunca foi sequer dada a mínima seriedade pelos militantes e dirigentes da organização, tornando-se quase um hobby para alguns que tinham algum interesse pessoal naquilo.

Neste lamaçal inescapável, qualquer quadro ou referência teórica que era formado, era formado externamente à organização (estudando por conta própria, envolvido com trabalhos de editoração ou compondo grupos não partidários de estudo/pesquisa), ou por iniciativas locais de formação, principalmente em núcleos estudantis da juventude. Esses poucos indicativos que trago já são suficientes para traçar um diagnóstico mais um menos satisfatório do que nos deparamos ideologicamente após o racha: uma organização que ainda enfrenta discrepâncias regionais (as sínteses dos camaradas do Rio Grande do Sul não são as mesmas dos camaradas do Goiás, por exemplo, assim como em SP, camaradas da USP e da Unicamp raramente vão concordar entre si naquilo que for acessório, secundário). Para além disso, em meio aos esforços de realização de nosso congresso, para além da Biblioteca Marxista Leninista, utilizada para basilar alguns debates e desfazer confusões ideológicas, e a criação da comissão nacional de formação, ainda não temos efetivamente um programa sólido e em funcionamento de formação. Tudo isso contribui no diagnóstico de uma organização que precisa forjar unidade real, em seu sentido político. Por isso que, na dimensão mais prática de nossos trabalhos, falo em superação dos métodos artesanais em nossa formação de quadros.

Considero dois aspectos centrais tanto para essa superação quanto para pensar um horizonte formativo que de fato crie quadros. Em primeiro lugar, a necessidade de conectar a formação com a nossa realidade e, por conseguinte, construir uma política nacional de formação e, em segundo, o combate ao ecletismo sem cair no centralismo teórico, a fim de forjar uma linha ideológica coesa.

Acerca dos métodos artesanais e da realidade da nossa terra

Nos meses que seguiram o racha, pudemos enxergar as consequências da ausência da formação. Concomitante ao latente pecebismo e o apego emocional à forma partido-seita, ocorreu uma miscelânia de posicionamentos que, sem se apegar firmemente aos princípios do marxismo-leninismo, desembocaram ora no personalismo, ora no oportunismo. Sem tornar base comum da militância o que pode ser apreendido das principais contradições políticas da cisão, portanto, o inevitável desgaste foi considerável, o que levou à alguns desligamentos e afastamentos.

Já nas fileiras da Reconstrução Revolucionária, nos termos do debate público visando o congresso, esse mesmo legado de amadorismo em relação a formação se expressou tanto em incompreensão generalizada das limitações organizativas e políticas das direções provisórias, quanto em equívocos dos mais diversos, que ao mesmo tempo que marcaram o baixo nível dos debates em curso, forjaram e estão forjando a militância teoricamente. 

Nesse contexto, por uma série de razões, o debate sobre formação foi permeado por desvios em nossas fileiras, entendendo esses desvios enquanto influência da ideologia dominante sobre nossa militância, um elemento a ser superado no seio da organização, dado que obstaculiza politicamente a construção da unidade e o aperfeiçoamento do partido proletário enquanto ferramenta revolucionária da classe operária. 

A ideia de formação, estudo e ensino, assim, está marcada pela perspectiva burguesa ocidental. Sem apreender com outras cosmovisões e sem formular de forma propositiva e consequente sobre uma formação revolucionária e sobre a estrutura partidária em prol de um plano nacional de formação de quadros, que conjugue as necessidades práticas com a formulação criativa de soluções a partir de um referencial teórico científico que seja literatura partidária comum, ficamos presos numa concepção dogmática e esquemática, muito caracterizada pela projeção dos modelos manualescos soviéticos ou chineses.

Uma exposição sólida sobre os princípios de uma formação consequente se encontra na tribuna Formação Política e produção marxista de Fauri [1]. E camarada trás exemplos concretos, usando exemplos hipotéticos do Rio Grande do Sul, de como uma política de formação envolve não só ser responsável pelo ensino, pela sistematização do estudo, mas pela produção da teoria, das estatísticas e da apreensão dos elementos geográficos, culturais e econômicos de determinada realidade. Um aspecto, porém, que não é aprofundado na tribuna é a maturação do porquê ser necessário, central e nacionalmente, a produção desses acúmulos. 

De volta à questão dos desvios em nossas fileiras, o individualismo e o espírito autodidata, fortalecido em parte pela forma pela qual nossos quadros foram forjados diante do abandono e da miséria político-teóricos do velho PCB, e que tende a ser fortalecido no ambiente acadêmico dada a própria relação da educação burguesa com o estudo, são responsáveis pela dispersão e abstração daquilo que se convencionou chamar de “política de formação”. 

Para dar um exemplo, quando um determinado núcleo/célula escolhe estudar o livro Imperialismo de Lenin, qual o objetivo? Em tese, compreender aquele período sobre o qual Lenin discorre e apreender elementos da obra para somar num leque de questões econômicas, sociais e históricas; agora, falando da maneira como se enxerga quando se está embriagado pelo amadorismo, não existe um objetivo claro, se faz a formação porque todo mundo fala desse livro, então se lê ou se faz uma aula expositiva (geralmente de um camarada que já tem esse acúmulo) de seus eixos. O resultado é que quando surge uma polêmica envolvendo a questão do imperialismo, a militância pouco absorveu dos elementos centrais da análise lenineana, e esbarra no fato de que ela não é um manual de formulação imediata sobre o imperialismo hoje e os processos econômicos atuais, porque foi escrita no início do século XX. Logo, a polêmica, por exemplo, sobre a posição que a China ocupa na cadeia imperialista, gira mais sobre abstrações teóricas do que sobre uma análise rigorosa de aspectos econômicos, de elementos materiais do objeto que se pretende estudar. 

É evidente que esse baixo nível de formulação em que nos encontramos – cujas limitações se expressam, por exemplo, na tônica e no giro temático geral de nossas tribunas – está longe de ser culpa individual ou indisciplina com os estudos de nossos camaradas que não seguem o modelo oficial de militante estudioso e versado sobre os principais pontos de polêmica da organização.  É, na verdade, reflexo do fato de que não estamos formando quadros, e de que, na necessidade de se expressar, mas desprovidos de uma política sistemática e nacional de criação de bases teóricas comuns e de consensos políticos, nossos camaradas recorrem às questões e ferramentas que têm para pautar o debate – e daí surgem fenômenos como o fato de que caracterizar setores estratégicos do proletariado brasileiro é mais central para o partido comunista do que nosso nome e logo, mas tivemos mais tribunas versando sobre o segundo tema, acessório, do que sobre o primeiro, central.

Claro que o anacronismo, os perigos das comparações e análises mecânicas é um alerta feito nas formações, mas daí decorre outro problema. A ausência de uma compreensão robusta da conexão entre o imperialismo analisado por Lenin e o desenvolvimento do capitalismo dependente brasileiro faz com que a lacuna seja preenchida por compreensões equivocadas.

O elemento central, portanto, de uma política sólida de formação, é a compreensão da nossa realidade e das nossas tarefas, que o marxismo-leninismo sirva como o instrumento ideológico revolucionário e que, para isso, esteja conectado com nossas especificidades, para construção de uma linha política que estratégia e taticamente dialogue com as necessidades do nosso povo e que busque a hegemonia pautada pelos princípios que aos comunistas são irrenunciáveis.

Referenciais teóricos e combate ao colonialismo cultural

Compreender a realidade brasileira parte da construção de um pilar central que dê sustentação a esse objetivo. Este pilar é a destruição do colonialismo cultural. Uma política de formação que busca forjar quadros que sejam capazes de atuar nas mais diversas áreas e que consiga dar cabo da revolução não pode ser refém de um ecletismo favorável a desagregação do marxismo-leninismo e refém do eurocentrismo.

Esse ecletismo nada mais é do que o instrumento daquele marxismo de cátedra, como chamava Clóvis Moura, ou desdentado, que, desconectado da realidade, deixa de combater o liberalismo. Quem melhor destaca a presença desse liberalismo entre os revolucionários é Mao Zedong. Em Contra o Liberalismo, Mao discorre:

“Os liberais consideram os princípios do Marxismo como dogmas abstratos. Aprovam o Marxismo mas não estão dispostos a pô-lo em prática, ou a pô-lo integralmente em prática; não estão dispostos a substituir o liberalismo pelo Marxismo. Armam-se tanto dum como doutro: falam de Marxismo mas praticam liberalismo; aplicam o primeiro aos outros e o segundo a si próprios. Levam os dois na bagagem e encontram uma aplicação para cada um. É assim que pensam certos indivíduos.” [2]

É também Mao que, num célebre artigo, fala sobre a necessidade de reformar os estudos no Partido Comunista Chinês:

“Aparentemente, muitos camaradas estudam o Marxismo-Leninismo não por necessidades da prática revolucionária, mas apenas por estudar. Assim, embora lendo, não conseguem assimilar o que leem. Apenas sabem citar unilateralmente frases e palavras soltas das obras de Marx, Engels, Lênin e Stalin, sendo incapazes de adotar-lhes a posição, o ponto de vista e o método no estudo concreto da situação atual, e da história da China, nem na análise concreta e solução dos problemas da revolução chinesa. Tal atitude com relação ao Marxismo-Leninismo é prejudicial em extremo, sobretudo entre os quadros dos escalões médio e superior.” [3]

Vale citar, nesse mesmo esforço feito por Mao nas fileiras do PCCh, a atuação de Amílcar Cabral desde a fundação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Uma das primeiras autocríticas feitas pro Amílcar em sua luta pela libertação foi sobre a incompreensão do que era a Guiné Bissau naquela altura. Levando em conta o isolamento dos grupos originários e de como o colonialismo português enxergava aquele território, foi preciso não só repensar a tática da Revolução guineense e cabo verdiana, mas verdadeiramente estudar aquela realidade. É por isso que em A Arma da Teoria [4], e em escritos posteriores, Amílcar chega em sínteses tão contundentes sobre a não exportação mecânica da Revolução e aspectos particulares da conjuntura africana. É relevante apontar que, apesar da enfática posição de Amílcar sobre partir da realidade da própria terra, o PAIGC não deixa de reconhecer aspectos internacionais que era centrais para a combate ao imperialismo e ao colonialismo português. [5]

Esse esforço e essa crítica não são novidades em nossas fileiras. Porém, foi vulgarizada de tal forma, a favor de um debate superficial sobre símbolos e sobre a suposta estética brasileira, que acaba escanteando o central: uma formação voltada para a construção do Partido Comunista no Brasil, e que, portanto, envolva um estudo sistemático da nossa geografia, economia, cultura e sociedade.

Na prática, é impossível construir esse sistemático estudo e essa compreensão nacional, sem falar nos quatrocentos anos de escravidão e, portanto, a construção da literatura partidária passa pela formulação da crítica e da superação daqueles autores marxistas que negaram a questão racial ou a encararam como mera questão de classe, tanto na teoria quanto na prática.

O Órgão Central como centro ideológico à serviço da formação

No sentido de construir uma literatura partidária consequente, o Órgão Central tem o papel fundamental de organização e promoção de uma linha ideológica coesa e acertada, com a superação dos entraves do amadorismo e das concessões ideológicas. Isso vem tanto através do jornal quanto de outras especializações deste organismo de direção.

O jornal tem a capacidade de promover a formação prática des militantes em dois eixos: a) na produção do jornal em si, através das matérias, divulgação de textos e informações; e b) na abertura ao diálogo com a classe trabalhadora em diversos territórios. Este último aspecto é, inegavelmente, uma formação que vai além da Escola de Quadros pensada idealmente. Essa percepção desafia frontalmente a concepção de formação, porque não representa o modelo de grupos de estudo, de exposições e leituras. É impossível pensar a formação partidária nos limites da concepção escolástica burguesa. 

Dito isso, esses elementos dão as condições necessárias para colocar em prática a produção idealizada por Fauri. Tendo as bases das questões principais de determinada localidade, há que se trabalhar na tática adequada. Vê-se assim que a formação não é um fim em si mesmo, mas o meio pelo qual chegaremos mais perto da linha correta na construção da revolução.

Outro aspecto que pode ser destacado quanto ao papel do Órgão Central é a organização dos materiais teóricos inacessíveis aos militantes através da tradução e transcrição. Se temos uma gama de autores europeus ou estadunidenses que renegam o marxismo-leninismo circulando entre nossa militância, atrasando nossa atuação, apartando-nos da realidade nacional, o potencial de trazer autores e autoras do marxismo periférico, com autêntica base marxista-leninista de produção teórica é enorme e poderá engrandecer o referencial teórico do partido como um todo. Isso servirá não pelo mero conhecimento, mas sim para aproximação com realidades distintas e processos revolucionários que dialogam mais ou menos com a realidade brasileira.

Da mesma forma, a agitação e propaganda, que também é referenciada quando o assunto é formação, não escapa da lógica do colonialismo cultural. Mesmo quando se pensa numa estética ou num diálogo mais próximo com as particulares locais, há pressupostos ligados a tradição não só europeia, mas particularmente estadunidense, pelas ligações com o imperialismo e a hegemonia das redes sociais. Portanto, no interior do Órgão Central, a formação tem lugar e municiará o organismo para propagar externamente uma linha coerente com um horizonte revolucionário ligado à nossa realidade. 

Conclusão

Feitos estes apontamentos, entendo que o primeiro passo em direção a uma superação do caráter artesanal é entendê-lo e criticá-lo. Sem esse esforço não há como compreender em que eixos é necessário trabalhar sistematicamente pela melhora. 

Posto isso, começa-se a refletir sobre que princípios políticos tomaremos para pensar a formação, para além dos consensos que parecemos conservar em nossas fileiras. É claro que a formação partidária deve seguir uma linha marxista-leninista e não podemos nos furtar de compreender os elementos básicos do materialismo histórico dialético, principalmente se pensamos em agregar novos militantes. Mas para além disso, como iremos pensar em uma escola de quadros que contemple militantes precarizados, que num primeiro momento podem, por exemplo, trabalhar em uma escala 6x1 ou enfrentar uma rotina de trabalho e estudo insuportável?

Esses aspectos vão de encontro com a urgência em avaliar diferentes instrumentos pedagógicos, tecnológicos e logísticos para alavancarmos nossa capacidade formativa. A profissionalização dos trabalhos partidários é, antes de tudo, possibilitar o trabalho militante, livrar diferentes setores do partido do trabalho amador, caracterizado pelo desgaste físico e psicológico.

Não é possível realmente avançar se desde o princípio se pensa a formação como um grande Cursinho do Partido ou um Liceu. A formação partidária é forjar militantes que deem cabo da Revolução Brasileira em suas diversas frentes. É forjar um militante que dialogue e entenda as questões imediatas de determinadas categorias da classe trabalhadora, dos povos indígenas, dos quilombolas, da população LGBTQIA+ e todas as classes oprimidas em território nacional. 

Pensar as particularidades, no entanto, não pressupõe o abandono do caráter nacional dessa política, diferente do federalismo, que cria um conjunto de direções locais apartadas de um centro ideológico e organizativo. 

Somente nesses termos, do combate aberto com o colonialismo cultural e com os revisionismos (na concepção leninista do termo) diversos, pensando a realidade da nossa terra, forjando no diálogo e contato com as massas nossos quadros, agregando os meios pedagógicos mais avançados, poderemos superar o caráter artesanal da nossa formação e construir um verdadeiro partido revolucionário. 


Referências

[1] Ver https://emdefesadocomunismo.com.br/formacao-politica-e-producao-marxista/

[2] Mao Zedong em Contra o Liberalismo. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/mao/1937/09/07.htm

[3] Mao Zedong em Reformemos Nosso Estudo. Disponível em https://traduagindo.com/2020/09/30/reformemos-nosso-estudo/

[4] Amílcar Cabral, A Arma da Teoria. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/cabral/1966/01/06.pdf

[5] Ver Partir da Realidade da Nossa Terra (https://traduagindo.com/2021/09/08/partir-da-realidade-da-nossa-terra/) e O Papel da Cultura na Luta pela Independência (https://traduagindo.com/2023/07/17/amilcar-cabral-o-papel-da-cultura-na-luta-pela-independencia/)