'A flexibilidade como característica dos trabalhos de TI e suas relações com a precarização da saúde do trabalhador' (A. K. Fer.)

A dominação ideológica apoiada sobre a ideia de “empreendedor de si mesmo” acaba por normalizar o ritmo exaustivo de trabalho, fazendo com que o trabalhador constantemente questione os seus limites a cada renovação de metas e prazos.

'A flexibilidade como característica dos trabalhos de TI e suas relações com a precarização da saúde do trabalhador' (A. K. Fer.)
"A flexibilidade é entendida como certa “liberdade” do trabalhador em desempenhar as suas funções dentro daquele processo produtivo. Na fase atual do capitalismo, dominam as empresas divididas em unidades autônomas, organizadas por projetos, característica forte dos players do setor de TI. Nesse cenário, os trabalhadores mais valorizados são aqueles com capacidade de adaptação e autonomia."

Por A. K. Fer. para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

A flexibilização do trabalho surge como uma estratégia para manutenção do lucro na indústria diante de crises econômicas e da implementação de políticas neoliberais a partir da década de 1970 no Japão. Com a abertura da economia japonesa, as relações entre as empresas nacionais e internacionais passam a ser algo cada vez menos duradouro e ligado à demanda instantânea, e, por isso, as formas de organização da produção e do trabalho passam a ser cada vez mais flexíveis. Na verdade, o Toyotismo surge exatamente como uma forma de estabelecer relações de trabalho e produção orientadas à manutenção de uma “fábrica mínima”, ou seja, com um número reduzido de trabalhadores e máquinas, porém com a capacidade de produzir grandes volumes de mercadorias em prazos curtos de tempo para cumprir com os contratos firmados com as empresas estrangeiras, além dos produtos terem maior qualidade a fim de evitar o retrabalho.

A adoção do modelo toyotista acabou por promover uma mudança no perfil dos trabalhadores da indústria. Se antes, no modelo fordista, o operário era aquele estereótipo que vemos no filme “tempos modernos”, em que o trabalhador é semi-especializado em micro-funções que alienam totalmente o seu conhecimento sobre a mercadoria produzida, no modelo toyotista os trabalhadores precisam de alta qualificação para operar uma cadeia de funções mais complexas.

É claro que a flexibilização não se manifesta somente no Japão. A partir da década de 1970, muitos países abriram suas economias e adotaram o neoliberalismo e muitas empresas nacionais olharam para o toyotismo como a melhor forma de cumprir as demandas firmadas em contratos com empresas internacionais. No Brasil, a flexibilização começa a se manifestar a partir da década de 1990 com a ampla adoção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), nas formas de contratação formal dos novos trabalhadores dessa categoria e na terceirização.

O perfil do trabalhador de TI

Software é um conjunto de instruções sistematizadas e elaboradas a fim de coordenar uma máquina eletrônica, o hardware, para cumprir os mais diversos processos e resolver problemas. As soluções de software atualmente permeiam não só várias das esferas da vida cotidiana como entretenimento, mediações financeiras e educação, mas também estão fortemente presentes na indústria. Estima-se que só no Brasil serão abertos 800 mil novos postos de trabalho nessa área até 2025, porém, são formados somente 53 mil profissionais por ano. Além disso, os investimentos no setor de TI no Brasil em 2022 somaram 247,4 bilhões de reais, segundo o relatório da Associação Brasileira de Empresas de Software.

As formas de contratação desses profissionais são as mais variadas. Nos Estados Unidos elas se caracterizam tipicamente como mais flexíveis, na forma de contrato de prestação de serviços. No Brasil o regime de CLT ainda parece representar a maior parcela da contratação desses profissionais, o que acaba por garantir alguma proteção ao trabalhador, ainda que essa não seja total. Porém a contratação na forma de contrato de prestação de serviços também têm se mostrado uma tendência nesse mercado, principalmente após a contra-reforma trabalhista de 2017.

A flexibilidade é entendida como certa “liberdade” do trabalhador em desempenhar as suas funções dentro daquele processo produtivo. Na fase atual do capitalismo, dominam as empresas divididas em unidades autônomas, organizadas por projetos, característica forte dos players do setor de TI. Nesse cenário, os trabalhadores mais valorizados são aqueles com capacidade de adaptação e autonomia. Nas organizações orientadas a projetos, o valor de si (o trabalhador) no trabalho passa ser medido na sua capacidade de entrega enquanto autônomo do resto do processo produtivo. O trabalho volta a ser visto como obra, uma vez que a responsabilidade da sua reprodução, a partir do desenvolvimento das competências daquele que trabalha, passa a ser somente do trabalhador, o transformando em “empreendedor de si mesmo”. Assim, fortalecidas a percepção do papel do “eu”, o indivíduo toma para si a responsabilidade de seu valor no trabalho e é gerada uma validação moral para a ideia de meritocracia, promovendo um maior envolvimento emocional na produção.

O trabalhador desenvolvedor de software dispõe de alta qualificação e competências, o que, em um mercado com déficit de profissionais, permite uma fácil e rápida recolocação no mercado de trabalho. Isso inspira em muitos trabalhadores um certo nomadismo, facilitado pela autonomia e a flexibilização, em função da busca por melhores salários. Com isso, na tentativa de fidelizar seus talentos, as empresas oferecem a esses trabalhadores altos salários, que contribuem para percepção do profissional de TI de que esse não pertence ao grupo de trabalhadores “clássicos”.

Precarização da saúde do trabalhador de TI

Esse perfil do trabalhador de TI aqui apresentado gera o paradoxo de que: apesar da enorme recompensa material, que distância esses profissionais do perfil típico de trabalhador pertencente às massas, a flexibilização promove uma precarização semelhante à imposta ao grupo de “trabalhadores clássicos”.

Em empresas orientadas a projetos no ramo de software, é comum que sejam oferecidos aos clientes prazos excessivamente curtos para a entrega do produto. E por isso as jornadas de trabalho da equipe responsável pelo desenvolvimento são expandidas em determinado patamar do projeto. E como se não bastassem as horas a mais cumpridas no escritório, sendo muitas vezes necessário somente um computador para a realização do trabalho, a fronteira entre tempo e espaço de trabalho e tempo e espaço pessoal muitas vezes se confundem. Fazendo com que o trabalhador cumpra horas de trabalho não remuneradas em sua casa, muitas vezes perdendo noites e feriados. Para esses trabalhadores a tecnologia borrou (ou extinguiu) o modelo de jornada de trabalho de 8 horas diárias em 5 dias por semana. Com o uso da tecnologia aplicada a comunicação, é perfeitamente possível (e comum), que os profissionais de TI recebam novas tarefas fora do seu horário de expediente a depender das demandas dos clientes.

Em decorrência da impossibilidade de manter uma rotina e o desafio do controle de todos os elementos do trabalho, há um estresse permanente gerado pelas exigências com as quais o trabalhador deve cumprir. A dominação ideológica apoiada sobre a ideia de “empreendedor de si mesmo” acaba por normalizar o ritmo exaustivo de trabalho, fazendo com que o trabalhador constantemente questione os seus limites a cada renovação de metas e prazos.

Essa cultura do setor de TI aqui exposta se assemelha de muitas formas à cultura empresarial japonesa. No ambiente de alta competitividade do mercado japonês após a segunda guerra, onde surgiu o toyotismo, as grandes corporações começaram a empregar trabalhadores ultra-qualificados diretamente das universidades, submetendo-os a uma cultura corporativa orientada à precisão, protocolos comportamentais rígidos e jornadas extraordinariamente longas de trabalho. Dentro da cultura do aparato corporativo japonês existem muitas expectativas sobre esses trabalhadores, de forma que cumprir horas extras não remuneradas mostra um comprometimento com a empresa que o emprega, sendo algo admirado e fortemente relacionado à masculinidade.

Por isso, era comum que no Japão os trabalhadores dessas corporações cumprissem 60 horas semanais de trabalho. O estresse provocado pela pressão social e as jornadas exaustivas de trabalho levou muitos trabalhadores à morte, originando o conceito de karoshi, que é definido como morte pelo excesso de trabalho. Em 2011 foram relatados 2700 casos de karoshi no Japão.

Acredito que de muitas formas o trabalho no setor de TI se assemelha a esse ambiente de competitividade japonês. Com a diferença de que: a pressão promovida pelas expectativas sobre o trabalho não partem somente das empresas, que esperam um trabalhador autônomo e em um processo de desenvolvimento permanente de suas competências, necessário em um ambiente competitivo e de constantes inovações tecnológicas, mas também do própria trabalhador que se vê responsável e emocionalmente envolvido em sua obra, o trabalho.

Essa pressão sobre o trabalhador, assim como no Japão, serve como apoio para ultra-exploração desses trabalhadores com jornadas de trabalho expandidas e exaustivas. E mesmo que exista certo retorno material dessa exaustão, muitas vezes esse não compensatório, propiciando a expropriação das condições afetivo-intelectuais do trabalhador.

O termo Burnout, do inglês, se refere aquilo que atingiu seu esgotamento pela falta de energia, ou seja, aquilo que parou de funcionar pelo estresse. O termo também se refere a adoecimento por estresse no trabalho.

Os primeiros profissionais em que o Burnout é identificado são aqueles que têm seu trabalho voltado ao cuidado, como professores e médicos. Nessas profissões existe certa responsabilidade do trabalhador com as pessoas as quais deve atender, promovendo envolvimento emocional com a produção. De forma semelhante, ao entender novamente seu trabalho como obra, o trabalhador de TI pode se ver emocionalmente envolvido com a sua produção.

Além disso, a flexibilização torna os empregos cada vez mais instáveis. Uma vez que os postos de trabalho estão ligados a projetos, é comum que os trabalhadores percam seus empregos quando as empresas concluem as entregas aos seus clientes. Isso acontece devido ao caráter da reprodução do software enquanto mercadoria, que se difere em muito da reprodução das mercadorias produzidas pelas indústrias clássicas. A reprodução de um carro envolve uma linha de produção inteira. Já a reprodução de um software, muitas vezes é digital e não precisa de mais trabalhadores para além daqueles responsáveis pela venda [1]. Assim a flexibilização também gera insegurança no trabalhador, que gera nele ansiedade e validação moral na auto-cobrança, que faz com que ignore seus limites.

A luta sindical como única saída

Muitos podem pensar que os trabalhadores de TI têm seu trabalho garantido em um ambiente competitivo em que a demanda por software não tem previsão de diminuir. Porém, isso não é verdade, devido a especulação financeira.

Durante a pandemia de Covid-19 vimos as ações de empresas de tecnologia disparar. O que fez com que estas assumissem grandes demandas e contratassem muitos trabalhadores. Porém, empresas de capital aberto não existem para cumprir demandas de mercados, mas sim para distribuir lucro entre seus acionistas. E por isso, mesmo fazendo todo sentido que essas empresas contratarem novos trabalhadores, muitas das maiores big-tecs do mundo demitiram metade dos seus funcionários.

Pois lhe pergunto: a demanda da produção dessas empresas cai após a demissão dos trabalhadores? A resposta é óbvia: não! E por isso os trabalhadores que ficam terão seus trabalhos precarizados.

O fato da profissão de desenvolvedor de software não ser regulamentada no Brasil torna difícil (e inexistente) o combate à precarização dos trabalhos de TI. Logo, concluo que a construção de um sindicato forte seria a única forma de impedir novas demissões em massa como as que aconteceram no setor de TI no último ano. Mas para além da garantia dos empregos dos trabalhadores do setor, que conseguem se recolocar rapidamente no mercado de trabalho, a união da categoria se faz necessária para impedir a precarização da saúde do trabalhador, que pode levar à casos de burnout e até de morte por excesso de trabalho (karoshi).


[1] Existe aqui uma grande simplificação (um recorte), uma vez que os software muitas vezes são oferecidos como serviços que requerem manutenção constante. Porém, ainda nesses casos, é improvável que a equipe empregada na construção (ou codificação) seja mantida ao final dessa etapa.