A filosofia, a estratégia e a revolução
Não basta então ter claramente definido o panorama socioeconômico em janeiro de 1917 e esperar que dessa fotografia derive uma tática rígida: o caráter dinâmico da situação, próprio do movimento permanente das relações sociais, demanda uma constante interpretação da realidade.
por Manuel Azuaje – traduzido a partir de Tribuna Popular.
Não são poucos os marxistas que renegam a filosofia, por a considerar um exercício ideológico de caráter burguês, alheio à realidade e estéril no momento de transformá-la. Uma dimensão desta abordagem tem seu fundamento em uma leitura simplista da crítica de Marx ao idealismo alemão, especialmente aos jovens discípulos de Hegel, contra os quais escreve – junto a Engels – esse livro enorme destinado à “crítica roedora dos ratos”, mas cujo impacto no século XX é fundamental para a compreensão mais completa do pensamento do mouro de Tréveris, ‘A ideologia alemã’. Não há Marx sem filosofia, ainda que Marx seja muito mais que um filósofo.
Por outro lado, em que pese as contínuas resistências, Marx não foi expulso definitivamente dos estudos da filosofia, ainda que não se possa dizer o mesmo de Vladimir Ilich Uliánov, cuja entrada ao Parnaso das academias filosóficas está absolutamente negada. Pouco ou nada tem Lênin a contribuir com a filosofia, segundo seus sumos sacerdotes.
Ainda que seja justo dizer que Lênin não haveria admitido para si próprio – por bem ou por mal – o adjetivo de filósofo, era sim um aficionado constante da filosofia; e sua leitura minuciosa de Hegel foi determinante na precisa compreensão dos acontecimentos que se sucederam em 1917, assim como na resolução estratégicas deles.
Nos anos imediatamente anteriores à revolução mais importante do século XX, Lênin não só se concentrou em um acompanhamento detalhado dos sucessos mundiais e dos esforços de articulação antibélica destinados a transformar a guerra entre nações em uma guerra civil de classes, mas também se aprofundou em seus estudos sistemáticos de filosofia; especialmente em uma detalhada abordagem de uma obra que até os mais ousados profissionais do campo tendem a evadir: a ‘Ciência da Lógica’ de G. W. F. Hegel.
Desses estudos sai aquele seu aforismo segundo o qual “É completamente impossível entender ‘O Capital’ de Marx, e em especial seu primeiro capítulo, sem ter estudado e entendido a fundo toda a ‘Lógica’ de Hegel. Por conseguinte, há meio século nenhum dos marxistas entendeu Marx!”
Trata-se de uma afirmação exagerada, com a qual Marx não poderia ter estado completamente de acordo porque não havia querido submeter os trabalhadores a semelhante tarefa para assim compreender os elementos econômico-políticos fundamentais que desejava colocar em evidência para a luta.
O que Lênin de fato precisa com exatidão – e é uma verdade como um templo – é a relação entre a lógica dialética de Hegel e a forma de exposição de ‘O Capital’; questão que detalha em numerosas notas que vai escrevendo a medida em que avança em seus estudos e se encontram recolhidas nessa monumental obra intitulada “Cadernos filosóficos”, publicada após sua morte.
Dialética e realidade
Também é certo que Lênin não se aproxima da lógica hegeliana por um afã intelectual ou por puro amor pela sabedoria, mas porque está interessado em entender como ocorrem saltos qualitativos na história, como bem assinala Néstor Kohan. Somente a compreensão do automovimento de uma totalidade sócio-histórica pode captar o modo como a contradição atua como o motor desse movimento, e isso é nada mais, nada menos que a dialética como um modo de pensamento que se ajusta a essa realidade.
Lênin consegue esta compreensão pela leitura de Hegel, e não somente vai lhe permitir voltar criticamente à sua obra anterior como também poder se aproximar de novas ferramentas teóricas, na realidade de acelerada contradição do ano de 1917.
O entendimento da realidade sócio-histórica constituída por relações e não por entes dados permite captar o movimento que produzem as contradições no interior dessas relações, com o qual se percebe a dimensão, direção e sentido das possíveis transformações no interior dessa realidade. Trata-se da coincidência das revoluções possíveis, que não ocorrem mecanicamente, e sim requerem o impulso definitivo através de uma tática e uma estratégia concordantes que só podem se estabelecer se aquele entendimento for correto.
Filosofia para a situação concreta
Uma observação cuidadosa das atividades de Lênin em 1917, assim como uma leitura meticulosa de seus textos – vistos à luz do desenvolvimento dos acontecimentos – revela um pensador que sabe como fazer do marxismo um método para a transformação da realidade; que emprega a dialética a serviço dessa transformação porque, no fundo, é ela a forma mesma do método de Marx.
Produto das discrepâncias suscitadas após a apresentação pública de suas ‘Teses de Abril’, Lênin elabora um documento para uso interno nos debates que se dariam durante as conferências do Partido Operário Social-Democrata Russo. Trata-se das ‘Cartas sobre tática’. O contraponto entre as notas sobre a dialética dos anos anteriores e este texto evidenciam como se dá a análise concreta da situação concreta.
De acordo com Lênin, o marxismo demanda que se realize uma análise permanente de como se relacionam as classes sociais nos determinados momentos históricos. Essa análise vai na contramão de qualquer visão dogmática do marxismo, já que, sendo um guia para a ação, é a ação que dá forma à teoria e não a que deve se adaptar a esquemas teóricos.
Não basta então ter claramente definido o panorama socioeconômico em janeiro de 1917 e esperar que dessa fotografia derive uma tática rígida: o caráter dinâmico da situação, próprio do movimento permanente das relações sociais, demanda uma constante interpretação da realidade.
Não há fórmula definitiva para a estratégia revolucionária; esta emana da observação constante da situação concreta e é a dialética o método mais adequado para essa observação porque permite captar o dinamismo das relações sociais.
Muito tem a dizer este exercício de Lênin para uma “filosofia da práxis” que escape constantemente da tentação de ser “simplesmente” filosofia.