'A experiência com transportes na região de Campinas' (Felipe Mir)

E são porque a partir de um debate sobre transportes podemos conversar sobre acesso a cidade, sobre demandas de saúde, educação, cultura e lazer, podemos conversar sobre imperialismo também [...].

'A experiência com transportes na região de Campinas' (Felipe Mir)
"Um pedágio hoje pago na Bandeirantes na altura de Sumaré custa R$10,90, um assalto praticamente. A Arteris, dona da Intervias que é uma das concessionárias da Bandeirantes é uma empresa de capital aberto, sabem quem é dono de quase metade da Arteris? O fundo de investimentos canadense Brookfield Motorways Holdings SRL."

Por Felipe Mir para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Venho por meio deste texto tentar apontar por meio de um relato sobre uma iniciativa da Região Metropolitana de Campinas alguns elementos sobre ação política, pautas populares e nossa atuação e postura.

Tentarei fazer isso ligando os elementos que quero discutir a um caso real pois entendo que a conexão próxima a realidade é tanto importante para fundamentar argumentos, mas também em um esforço de apresentar também ao conjunto dos leitores um pouco dessa região onde nasci, onde cresci e vivi e que com seus altos e baixos eu amo muito e reconheço como meu lar nesse mundo.

A problemática

Quando falamos da Região Metropolitana de Campinas estamos falando de uma região que mais se parece um arquipélago em sua organização espacial, ilhas de serviços públicos ou privados cercadas de mares compostos por ou bairros residenciais periféricos, ou áreas de cultivo agrícola no geral. Essa lógica espacial cria uma condição onde a capacidade de chegar do ponto A ao ponto B é muito relevante. Junto disso a lógica da região sobre o que se define como perto ou longe é também bem diferente da lógica, por exemplo de um habitante da capital do estado. Um trajeto de 16 quilômetros aqui não é uma distancia muito grande, eu por exemplo já percorri diariamente 28 quilômetros no trajeto que fazia entre minha casa e meu trabalho, usando transporte público. Na capital paulista uma distância destas só para ir é uma total insanidade, aqui é normal.

Como pode ser percebido pela exposição inicial na RMC, a questão sobre capacidade de locomoção é um elemento básico e essencial da vida. E o que ocorre é que a lógica de formação espacial de segregação da maioria proletária da população obriga ela a percorrer distâncias significativas para fazer qualquer atividade, vou dar mais alguns exemplos.

Para ir a um cinema precisaria percorrer entre 8 a 13 quilômetros, o grande hospital mais perto fica a não menos de 10 quilômetros etc. Ou seja, para fazer qualquer coisa aqui eu tenho que me deslocar uma média de 10 quilômetros, essa distância passando quase sempre por alguma rodovia. E por fim mais um dado, a região que eu moro é um aglomerado de bairros que tem por volta de uns 38 mil habitantes segundo uma projeção do IBGE de 2015, hoje deve ter bem mais considerando o quanto a área cresceu em moradias populares e privadas construídas.

38 mil pessoas e o local com uma máquina de ressonância mais próxima está 10 quilômetros passando por uma rodovia. 38 mil pessoas e devo contar umas 5 quadras mal cuidadas de esportes em praça pública. 38 mil pessoas e nenhum teatro, nenhum museu, nenhuma galeria de arte, nenhum nada. Por isso que digo que isso é um oceano, porque qualquer coisa que precisamos fazer temos que nos deslocar significativamente para poder fazer.

Tendo essa realidade em mente repito mais uma vez, é bem nítida a importância da capacidade de locomoção aqui, transporte público pode literalmente ser uma questão de vida ou morte. E de todos os locais que já usei transporte público o dessa região de longe é o mais nojento e desgraçado que já utilizei. A primeira coisa que fiz quando juntei um pouco de dinheiro trabalhando foi comprar um carro, porque andar nos ônibus por aqui era algo absolutamente horrível. Já ouvi relatos de camaradas que tem trauma quase de algumas linhas de ônibus na região por terem pegado elas por muito tempo. Quando morei na capital nunca precisei nem pensar em usar carro, foi voltar e não largo mais o automóvel, sempre dou o conselho pra quem se mudou pra cá, tire carteira de motorista e compre um carro, do mais simples possível, mas vai ser melhor que depender de ônibus.

Isso gera uma percepção muito simples: um elemento político central desta região são os transportes públicos que hoje são um grande sistema de tortura constante pra qualquer pessoa que dependa deles para se locomover por essa região. Pois bem, vamos então a ações.

Transportes da RMC e suas perspectivas

Bom, com tudo bem certo sobre a realidade da região tiramos a conclusão lógica descrita no parágrafo anterior, transportes são algo com muito potencial. E são porque a partir de um debate sobre transportes podemos conversar sobre acesso a cidade, sobre demandas de saúde, educação, cultura e lazer, podemos conversar sobre imperialismo também, o que vou exemplificar abaixo.

A região é cortada por três grandes rodovias que são essenciais, são elas a Rodovia dos Bandeirantes, a Rodovia Anhanguera e a Rodovia Dom Pedro I. A região onde moro, por exemplo é toda delimitada de dois lados pela Anhanguera e pela Dom Pedro. Sabendo isso eu vou te contar uma informação muito interessante, sabe o que essas três rodovias têm em comum? Todas são administradas por conceções privadas. A Bandeirantes pela CCR AutoBAn, a Anhanguera pela CCR AutoBAn e pela Intervias (Arteris) e a Dom Pedro pela Rota das Bandeiras. 

Um pedágio hoje pago na Bandeirantes na altura de Sumaré custa R$10,90, um assalto praticamente. A Arteris, dona da Intervias que é uma das concessionárias da Bandeirantes é uma empresa de capital aberto, sabem quem é dono de quase metade da Arteris? O fundo de investimentos canadense Brookfield Motorways Holdings SRL. 

Então veja, um fundo, ligado a uma empresa de investimentos canadense fundada em 1899 exporta capitais e faz contratos com o governo brasileiro para controlar uma parte da rodovia que passa na região onde eu moro e que cobra o absurdo de R$10,90 para deixar eu passar de um lugar para o outro e tem interesse vital em manter a região que eu moro sem um sistema ferroviário que melhoraria muito minha vida em prol de um sistema rodoviário que ajuda muito ela a ganhar dinheiro me cobrando para poder ir de um lado a outro da região em que eu nasci!

Aqui temos um exemplo do que é imperialismo, diga-se, etapa do capitalismo caracterizada pela exportação de capitais para periferias a fim de garantir novos pontos de reprodução deste capital baseada na exploração do povo. Me desculpem pela explicação de imperialismo não totalmente certinha, mas acho que deu pra captar a ideia né.

Junto disso fazendo uma pesquisa rápida você vai descobrir que a RMC é também cortada pelo sistema ferroviário, por aqui passa a Linha 1 da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, também chamada de Linha Tronco (Jundiaí-Colômbia), ela vai de Jundiaí onde se conecta com a linha Santos-Jundiaí até a cidade de Colômbia. Esta ferrovia começou a ser construída no ano de 1869 sendo o primeiro trecho inaugurado em 1872.

Quando falamos de ferrovias uma coisa muito relevante é falar de que tipo de veículo passa por elas. Pensem assim, uma ferrovia é um trilho composto por duas barras de aço que estão a uma certa distância uma da outra, esta distância determina então a largura que tem que existir entre um rodeiro e outro (rodeiro é o nome da roda do trem), essa largura chama-se de bitola, sim o nome é bem emblemático rs.

Quando falamos então dos tamanhos de trens no Brasil atualmente a maioria dos trilho é construída com tamanho padrão unificado em todo território nacional, desta forma se facilita muito o transporte e se reduz custos e problemas como ter que trocar cargas de vagão de um trecho a outro por conta que o vagão atual não é capaz de se locomover sobre o trecho de ferrovia a frente. A bitola usada no Brasil hoje é em geral a irlandesa de 1.600 milímetros.

Essa linha ferroviária que descrevi passa pelas seguintes cidades da RMC: Valinhos, Vinhedo, Campinas, Sumaré e Nova Odessa. Em algumas destas cidades inclusive existem pontos de parada e estações. Essa ferrovia que hoje é controlada pela concessionária Rumo Logística não transporta nenhuma pessoa, apenas carga. A Bitola da ferrovia é a irlandesa, sabe qual outro sistema ferroviário usa a bitola irlandesa também? A CPTM. Sabe o que impede hoje a região de ter um sistema de transporte ferroviário que ligue todas estas cidades? Absolutamente nada.

Nossa situação e como os transportes entraram na história

Pois bem, cortamos para nós. Uma reclamação comum a militância da RMC era de que existia tanto uma dificuldade de comunicação como uma disjunção dos trabalhos, o que acontecia era que cada organismo de base fazia seu trabalhinho isoladamente, muito ocasionalmente conversando uns com os outros e sem uma linha que ligasse todos os trabalhos e criasse um conjunto de objetivos comuns a região.

A situação então de disjunção da organização criava um sentido de isolamento constante dos organismos e junto disso dificultava também interações entre eles. Os trabalhos não tinham perspectiva maior que fugisse a suas próprias localidades e não se conectavam, uma listagem dos trabalhos dos organismos na região iria mostra que cada um atirava para um lado diferente sem uma lógica comum, era como um corpo onde uma perna ia pra um lado, outra ia pro outro e os braços se balançavam sem sentido enquanto o tronco se contorcia em formas das mais esquisitas, tudo isso sem ter uma cabeça.

Essa cabeça, seria criada quando foi gerado o CL de Campinas, uma instância de direção que poderia guiar os trabalhos em diferentes locais, com diferentes pessoas em prol de um objetivo único, ou seja, cada local na sua especificidade iria se conectar com outros locais dos mais diversos, e a ideia é que para isso deveríamos ter um elemento político unificado e que centralizaria nossos debates e ideias e este elemento foi a pauta dos transportes.

Como já pode ter ficado explicado a questão dos transportes além de permitir uma conexão com debates que ultrapassam os próprios transportes é também um elemento central da vida da população da RMC, quer você viva em um acampamento do MST, quer você viva numa favela ou em um bairro periférico o transporte é um elemento comum e vital a todos. O uso deste debate permitiria que a gente pudesse fazer um processo de ultrapassar a mera consciência local e permitir que alguém da roça percebesse que tem problemas muito parecidos com alguém de uma quebrada e que eles então deveriam se unir e lutar juntos.

Essa luta também deveria ser digna e animadora. Vejam, protesto contra aumento de passagem é igual natal, todo ano tem um porque todo ano aumenta a passagem. Além disso esse tipo de mobilização segue uma lógica clássica da esquerda moderna, a posição sempre defensiva, nunca propondo coisas, mas sempre resistindo. E gente, eu não quero ser resistência, eu quero é ser vanguarda. O nosso trato a pauta de transportes não seria então o já batido e cansativo resistir contra os aumentos de passagens, mas avançar, exigir o impensável, exigir uma rede da CPTM por toda a região!

Obviamente isso não saiu bem como planejado.

Problemas meio graves

A realidade é que a proposta do elemento unificador dos trabalhos na região encontrou entraves dentro da própria militância que impediu um desenvolvimento satisfatório até o momento deste trabalho. E vamos lá.

Acredito que o entrave inicial se deve a própria formação do espírito da militância. Vejam, normalmente temos uma militância que tem palavras muito avançadas que fala sempre de vanguarda etc e tal e por aí vai. O problema é quando isso entra no campo da ação, a esquerda como um todo no Brasil hoje desaprendeu a avançar. Ficamos tão imersos em uma lógica de se defender que não sabemos mais atacar, e isso é geracional. Nossa geração sempre se mobiliza para defender algo, não para exigir uma novidade. Milito desde 2018, sempre foi isso.

Essa cultura recuada e defensiva tira de nós o espírito de luta e limita nossa visão. Além disso ela é um lugar muito confortável para um movimento que é chefiado por pessoas que ou são ou agem como pequeno-burgueses, ou seja, que estão em posições confortáveis e apenas tem que defender o que já tem porque o risco do ataque é de por em cheque suas próprias vantagens. E essa lógica formou toda uma geração de militantes que não sabem nem como formular um ataque e que quando vem um avanço ser proposto questionam ele de toda forma que puderem encontrar.

Essa barreira hoje na região foi aparentemente superada, mas a realidade é que não foi. E isso se justifica pelo simples fato que o atual CL de Campinas não formulou praticamente nada sobre como fazer com que a pauta de transportes se realize enquanto campanha e elemento unificador dos trabalhos na região desde que isso foi aprovado no ativo da RMC ocorrido em janeiro deste ano. E dizer isso não é dizer que o CL é pequeno-burgueses, porque não é, a maioria dos membros eleitos do CL são todos da camada proletarizada do partido. O problema é que eles foram ensinados a pensar na militância não como proletários.

O que ocorre então não é que a tarefa está sendo sabotada ou algo do gênero. O problema me parece é que os militantes tem dificuldade de imaginar, de serem criativos e pensarem para além de simplesmente ações contra algo que estão tentando fazer, de uma resistência. Existe uma dificuldade criativa de entender e propor ações ofensivas e isso impacta diretamente na proposta porque ela é por natureza ofensiva.

Junto disso existe o elemento da dificuldade de flexão dos trabalhos locais de cada organismo de base em prol de um objetivo em comum. O que ocorre é que muitos organismos com a pauta unificadora precisarão flexionar seus trabalhos existentes em linha de conseguir a partir deles chegar aos elementos unificadores do debate de transportes, o que não é impossível e nem muito difícil, mas exige sim mudanças na forma de ação. E o problema que se enfrenta com isso é de que os organismos, principalmente os que tem algum tipo de trabalho corrente tendem a ficar aconchegados a uma forma de atuação e com isso mudanças nessa forma tendem a ser algo muito estressante e mais difícil de fazer devido ao aconchego que o costume proporciona.

Com isso hoje temos lutas políticas muito importantes dentro do partido na RMC para possibilitar que uma campanha como essa de transportes veja a luz do dia, são elas, o combate a ideologia e cultura pequeno-burguesa que permeia o partido e a formação da militância no sentido de enxergar que seu local não é seu local, mas ele deve ser um ponto de uma rede muito maior e que toda essa rede necessita andar em conjunto, caso contrário ela nunca terá a chance de crescer e conquistar objetivos.

Conclusão

Com essa exposição espero poder tanto mostrar um pouco dos desafios e oportunidades que temos na RMC, mas também fazer um esforço para me conectar com camaradas de outros lugares, principalmente de fora do meu estado para que possamos trocar estas experiências.

Para além disso acredito que as informações sobre os transportes da região poderão servir como motivador a camaradas de outros locais a pensar a possibilidade de também tratarem de transportes em suas localidades.

Por fim quero deixar mais um apontamento, acho muito estranho a dificuldade que a militância tem de definir uma linha de atuação. Muitas vezes se passa dias e semanas pensando na melhor pauta a tratar e muitas vezes estas são pautas excessivamente complicadas. A ideia de tratar de transportes surgiu de forma muito natural, ela veio da vivência da desgraça que é depender de ônibus na RMC. E acredito que muitas vezes os melhores temas vêm assim, de nossas dores reais. A dificuldade de achar essas dores talvez diga muito sobre o perfil de parte da nossa militância também.